Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
A
nossa decisão principal nunca poderá ser sobre a vida, só sobre a morte. Credos
e religiões à parte porque, mesmo para os mais indefectíveis crentes, se há
milagre primordial é o da vida: nenhum homem se aproxima ou assemelha a Deus ao
ponto de a entender por simples ou mundano decreto. Por crença, desejo ou medo.
Na morte há todo um mistério que não tem propriamente ligação ao acto de morrer
mas sim à continuação ou perpetuação da vida. Sempre o mistério da vida, essa
que alguns antecipam como novinha em folha após o fim da linha do tempo que
ainda vamos sabendo contar. Se nem tempo, família ou condição podemos escolher
aquando da erupção, que possamos optar em consciência sobre o momento de fazer
pausa ao movimento. Que possamos escolher sobre algo verdadeiramente
significante, já agora e sobretudo, quando entendermos que a dor é mais
presente do que uma vida em simulação. Em determinados casos, morrer não é só
uma fatalidade. Nos momentos em que a dignidade se confunde com o sofrimento de
um condenado, morrer é quase uma obrigação.
A
frio, dizem os burocratas da moral que ninguém é insubstituível. A frio,
poderiam dizer que ninguém se substitua. Sobretudo, que ninguém se arrogue como
detentor do espaço de liberdade final de alguém. Não é legítimo viver um
simulacro da vida dos outros. Como escreviam Paul e Linda McCartney, "Live
and Let Die". O "Movimento cívico para a despenalização da morte
assistida", cujo manifesto assino e subscrevo, lançou as bases para um
debate que se deve ter com urgência. Depois de algumas batalhas pela liberdade
e autodeterminação da pessoa terem sido ganhas (o consentimento informado, o
direito de aceitação ou recusa do tratamento, a condenação da obstinação
terapêutica e o Testamento Vital), é imperioso caminhar para a despenalização e
regulamentação da morte assistida.
Nem
os direitos humanos se referendam nem um presidente da República deve ter medo
que uma bomba lhe rebente nas mãos. Pela complexidade do tema, as questões
fundamentais levantadas pela morte assistida devem ser amplamente debatidas.
Mas quem quiser afunilar o debate em razões ideológicas, religiosas ou de
costumes pode lembrar-se que, há cerca de uma década, estudos apontavam para
que 50% dos idosos em Portugal (e com uma amostra de pessoas que não sofriam de
doenças terminais, graves ou crónicas) admitiam a legalização da eutanásia e
que 40% dos médicos oncologistas portugueses estavam disponíveis para a
praticar. Acontece todos os dias. Pelo fim do sofrimento e do sentimento de
culpa, pela autodeterminação e pela dignidade, pelo fim da penalização de quem
ajuda aqueles que anseiam pôr um fim onde a sua ou outra vida se eleve.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
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