Miguel
Guedes - Jornal de Notícias, opinião
Hoje
é o primeiro dia português sem Cavaco Silva. Começa a contar. Se o
ex-presidente da República (PR) se abstiver da sua pose de ex-estadista e
resolver gozar a sua modesta reforma de cerca de 12 mil euros/mês do Fundo de
Pensões do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Aposentações (que não chegam
para pagar as suas despesas, segundo a execução orçamental do também
ex-ministro das Finanças), desapareceu hoje e para longe da vista o mais
visível ícone da revanchista menoridade política do pós-25 de Abril. Cavaco
encerrou, ontem, um ciclo de 30 anos em que representou o seu papel no limite
da perfeição, parte activa no descrédito crescente dos portugueses pela classe
política.
Enquanto
Dias Loureiro e Isaltino Morais procurarem novos negócios em Timor, recordaremos
sempre Cavaco e "sus muchachos". Será recordado. Enquanto Passos
Coelho considerar que não vê problemas éticos na contratação de Maria Luís
Albuquerque pela "Arrow Global"; enquanto Carlos Costa, governador do
Banco de Portugal, se sentir frustrado como "um polícia que chega atrasado
ao local do homicídio", esquecendo-se de acrescentar que sempre esteve a
ver o homicida e a vítima; enquanto o comissário europeu Moscovici sentenciar o
Orçamento do Estado português e caso o PS se sinta posteriormente empurrado
para a formação de um novo Bloco Central; enquanto e no entretanto...
lembraremos sempre Cavaco.
Cavaco
Silva sempre foi um convite à abstenção. Convicto de que nos deixou a melhor
imagem de si, deixa-nos com o menor índice de popularidade de que há memória.
Recordará o contexto como uma ingratidão. Depois de elogiar os "cofres
cheios" celebrados por Maria Luís (especialista em falências desde o
primeiro dia em que a vimos), Cavaco Silva poderá usar o "pin" que o
define na reforma e na lapela: uma bandeira de Portugal, em miniatura e
diminuído, com o rosto de Sousa Lara, o monárquico-laranja sub-secretário da
Cultura no tempo do também ex-primeiro-ministro, esse mesmo, o homem que José
Saramago por três vezes acusou de censor e que Cavaco resolveu condecorar in
extremis antes de cessar funções enquanto PR. As derradeiras prioridades
revelam os maiores desejos por cumprir e salientam a marca de água do homem da
rodagem de automóveis pré-congresso.
Indiscutivelmente,
o seu maior legado é aquele que subsiste para a Direita sob o nome de
"geringonça": o acordo da Esquerda que tudo fez por evitar, sem pejo
em declarar como proscritos a parte dos portugueses que considera como menores
em opinião e direitos, no pior discurso de um presidente em democracia. Foi
Cavaco que acabou por lhes dar posse. Os sapos não se engolem só à custa de
Mário Soares em meados da década de 80. Nós convivemos com muitos. Ontem foi o
último dia na companhia de um dos homens do pântano.
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