Wallerstein
analisa: revolução robótica, capturada pela ideologia do “mercado”, ameaça
destruir empregos em massa. Até FMI alarma-se. Mas sistema já parece incapaz de
se corrigir
Immanuel
Wallerstein – Outras Palavras -Tradução: Antonio Martins
A
ideologia neoliberal dominou o discurso político, em termos globais, nos
primeiros quinze anos do século. O mantra era: a única política viável para os
governos e movimentos sociais era dar prioridade para algo chamado “o mercado”.
A resistência a esta crença tornou-se mínima, porque mesmo os partidos e
movimentos que se consideravam de esquerda – ou ao menos à esquerda do centro –
abandonaram sua ênfase traducional em medidas de Bem-estar Social e aceitaram a
validade desta posição, orientada pra o mercado. Argumentavam que só era
possível, quando muito, amenizar seu impacto, mantendo uma pequena parte das
redes de segurança históricas que os Estados haviam construído ao longo de mais
de 150 anos.
As
políticas resultantes reduziram radicalmente a tributação sobre os setores mais
ricos da população. Ao fazê-lo, elevaram o abismo entre os muito endinheirados
e os demais. As empresas – em especial as maiores – puderam ampliar seus lucros
reduzindo o número de empregos ou movendo-os para o exterior.
A
justificativa oferecida pelos proponentes era a que esta política iria, ao
longo do tempo, recriar os empregos que haviam sido perdidos; e que o valor
adicional criado, ao se permitir que o “mercado” prevalecesse, acabaria se
espalhando de algum modo pela sociedade. É claro que, para permitir a
prevalência do mercado foi necessária muita ação política nos Estados. O
chamado “mercado” nunca foi uma força independente da política. Mas esta
verdade elementar foi solenemente ignorada ou, quando debatida, ferozmente
negada.
Tudo
isso terminou? Existe de fato o que um artigo recente no Le Monde chamou
de um “tímido” retorno das instituições doestablishment às preocupações
com demanda sustentada? Há ao menos dois sinais neste sentido, ambos de efeito
considerável. O Fundo Monetário Internacional (FMI) é, há muito, o pilar mais
forte da ideologia neoliberal, impondo seus requisitos a todos os governos que
lhe pedem empréstimos. No entanto, num memorando lançado em 24 de fevereiro, o
FMI tornou públicas suas preocupações sobre como a demanda mundial tornou-se
anêmica. Ele exortou os ministros das Finanças do G-20 a deixar as políticas
monetaristas e estimular os investimentos – em vez da poupança –, para
sustentar a demanda por meio da criação de empregos. Foi quase um giro de 180
graus.
Mais
ou menos ao mesmo tempo (em 18 de fevereiro), a Organização para a Cooperação
Econômica e o Desenvolvimento (OCDE), um segundo grande pilar da ideologia
neoliberal, lançou um memorando anunciando um giro semelhante. Afirmou que era
urgente promover “coletivamente” ações que sustentassem a demanda global.
Minha
questão é: a realidade está se insinuando? Parece que sim, embora apenas
timidamente. O fato é que, em todo o mundo, o “crescimento” prometido, na forma
de produção com maior valor agregado, jamais ocorreu. É claro que o declínio é
desigual. A China continua crescendo – num ritmo bem mais lento, que ameaça
conduzir a um declínio ainda maior. Os Estados Unidos ainda parecem estar
“crescendo”, em grande medida porque o dólar ainda parece ser, em termos
relativos, o lugar mais seguro onde os governos e os muito ricos podem deixar
seu dinheiro. Mas a deflação parece ter se tornando a realidade dominante na
maior parte da Europa e das chamadas “economias emergentes” do Sul global.
Estamos
agora num jogo de espera. As tímidas mudanças recomendadas pelo FMI e OCDE
enfrentam a realidade de uma demanda global declinante? O dólar será capaz de
resistir à perda crescente de confiança em sua capacidade de ser um repositório
estável de valor? Ou estamos transitando para uma nova, e muito mais severa,
mudança no chamado “mercado”, com todas as consequências políticas decorrentes?
A
queda da demanda global é a consequência direta da queda do emprego global. Nos
útimos 200, ou tavez 500 anos, sempre que uma mudança tecnológica eliminou
empregos em algum setor produtivo, houve resistência por parte dos
trabalhadores afetados. Os que resistiam envolviam-se nas chamada
reivindicações “ludistas”, para manter as tecnologias anteriores.
Do
ponto de vista político, a resistência ludista foi sempre um fracasso. As
forças do establishment sempre disseram que novos empregos seriam
criados para substituir os perdidos, e que haveria um crescimento renovado.
Estavam certas. Novos empregos foram de fato criados – mas não entre os
trabalhadores industriais. Surgiram entre as profissões ligadas aos serviços,
de “colarinho branco”. Em consequência, a longo prazo, a economia mundial
presenciou uma redução dos empregos industriais e uma significativa elevação no
percentual dos trabalhadores de “colarinho branco”.
Aceitou-se
sempre que os empregos de “colarinho branco” não estavam sujeitos a ser
eliminados. Presumia-se que, por requerem interação entre seres humanos, não
haveria máquinas capazes de substituir trabalhadores em carne e osso. Não é
mais assim.
Um
grande avanço tecnológico permite agora que as máquinas envolvam-se em cálculos
de imensos volumes de dados, uma função antes exercida, por exemplo, por
consultores financeiros de base. As novas máquinas já podem processar dados que
um indivíduo levaria várias vidas para calcular. O resultado é que tais
máquinas já começaram a eliminar os postos destes trabalhadores de colarinho
branco. É verdade que isso ainda não afeta os postos de alto nível ou as
posições de supervisão. Mas é possível enxergar para onde sopra o vento.
Antes,
quando os postos de trabalho na indústria eram eliminados ou reduzidos, podiam
ser substituídos por postos de colarinho branco. Mas hoje, se as posições de
colarinho branco desaparecerem, onde serão criados os novos empregos? E se não
forem criados, o efeito geral será reduzir severamente a demanda efetiva.
Contudo,
a demanda efetiva é uma condição sine qua non para o capitalismo,
enquanto sistema histórico. Sem demanda efetiva, não pode haver acumulação de
capital. Esta é a realidade que parece estar se insinuando. Por isso, não
surpreende que as preocupações emerjam. Não é provável, porém, que as “tímidas”
tentativas para lidar com esta nova realidade possam fazer qualquer diferença
real. A crise estrutural do sistema está aflorando abertamente. A grande
questão não é como repará-lo – mas o que irá substituí-lo.
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