quarta-feira, 16 de março de 2016

SUA MAJESTADE O SAMBA




O termo samba, desde o século XVIII, já era conhecido no Brasil Colônia e em Portugal graças aos viajantes que tiveram contato com danças africanas em Angola e no Gongo. De forma mais ampla, os nomes dados a estas danças era batuque e samba, Este último termo se originou da palavra africana semba que significa umbigada. Ao som de tambores e palmas, o semba tem uma coreografia própria, na qual o participante é convidado para dançar no centro da roda quando recebe uma “umbigada” de alguém que já se encontra a dançar.

A roda, na tradição da “Mãe África”, simboliza a energia em movimento e pode representar tanto a alegria como a tristeza.  O espaço do sagrado e do profano, por meio da dança, expressa-se, retratando histórias e os mitos presentes no universo cultural do negro. Com o passar do tempo, a expressão batuque cedeu espaço para a palavra samba que passou a denominar de forma genérica qualquer festa popular.

As raízes do samba

O samba se constitui num legado importante de resistência da cultura africana no Brasil, e assumiu uma identidade local, com algumas variações, a partir da sua essência.   Em uma classificação de caráter básico, encontramos três importantes variações: o samba baiano, o samba paulista e o samba carioca.

O samba, nascido no Recôncavo Baiano, trazia como característica o acompanhamento feito pelo pandeiro, violão e chocalho, podendo ocorrer a presença de castanholas e berimbaus. O solista canta um verso e a roda presente responde em coro. Caso não haja refrão, trata-se de um “samba corrido”; já quando se refere à perda de uma chave é chamado de “samba de chave”. Quanto ao aspecto coreográfico, o samba baiano de raiz inclui passos importantes, como o ‘Corta a jaca” “Separa o visgo” e “Apanha o bago”.

A segunda manifestação, o samba paulista, é uma adaptação cabocla da tradição africana. Embora permaneça como uma dança de terreiro e de poeira, ele se diferencia pela ausência de umbigadas. Segurando, pelas duas pontas, um lenço sobre a cabeça, as mulheres solistas dançam com os braços erguidos.

A terceira variação se apresenta na forma do samba urbano carioca. Este não se derivou diretamente, a exemplo do baiano e do paulista, da coreografia africana. È evidente que a influência do batuque foi irrefutável, porém ainda teria que esperar até o início do século XX, para se configurar, de forma singular, ao agregar também a influência europeia, resultando naquilo que o consagrado escritor Mário de Andrade (1893-1945) definiu como um segredo que só o carioca consegue decifrar.

O samba conquista o seu espaço

Nesta ambiência surgiram nomes, como Heitor dos Prazeres. João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Sinhô, que compuseram sambas conhecidos como sambas-maxixe. As características modernas do samba urbano  se tornaram presentes no final da década de 1920, quando ocorreram inovações em duas frentes: uma com o grupo de compositores de blocos carnavalescos oriundos do Estácio de Sá e Osvaldo Cruz e outra com os compositores dos morros cariocas da Mangueira, Salgueiro e São Carlos.  Não é por acaso que  este samba é identificado como "original" ou "de raiz".
  
Na medida em que, no Rio de Janeiro, o samba vai se consolidando como uma expressão musical urbana e moderna, ele também conquista os espaços nas rádios, difundindo-se, de forma rápida, ao mesmo tempo, pelos morros cariocas e bairros da zona sul do Rio de Janeiro. De criminalizado e olhado com preconceito e desconfiança, devido a sua origem africana, o samba, passo a passo, conquistaria de forma definitiva  o seu espaço no cenário musical brasileiro.

O primeiro samba gravado

O princípio desta longa jornada, percorrida pelo samba, leva-nos até o ano de 1916 quando vivenciávamos a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e o presidente do Brasil era Wenceslau Brás (1868-1966). Dentro deste contexto histórico, na Rua Visconde de Itaúna, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, reunia-se, com certa frequência, um grupo de amigos, visando a confraternizar e a saborear a famosa moqueca da baiana, nascida em Salvador, Hilária Batista de Almeida (1854-1924), conhecida como tia Ciata, que chegou ao Rio de Janeiro com 22 anos.

De acordo com a tradição oral, o presidente Wenceslau Brás sofria bastante com erupções na epiderme que o torturavam de forma intensa.  Como nenhum médico conseguira lhe curar, ele pediu socorro a Tia Ciata que, com ajuda de seu Orixá Oxum, por meio de alguns trabalhos magísticos, recuperou a saúde que estava fragilizada do presidente da República.  O presidente ficou muito grato pela cura obtida com a graça dos Orixás. Diante disso, decidiu nomear o companheiro de tia Ciata, João Batista, para ocupar importante cargo na polícia carioca.

Durante os encontros, o grupo, além das conversas e reflexões sobre a vida, compunha canções carnavalescas. A residência de tia Ciata foi a célula mater, donde se originou, “Pelo Telefone” (1917), o primeiro samba urbano gravado no Brasil. Tia Ciata e as baianas Veridiana e Presiliana fundaram os primeiros blocos e ranchos carnavalescos no Rio de Janeiro, Na verdade, também era uma forma de mascarar os cultos do candomblé, na época, proibidos pelas autoridades.

O Censo de 1849 informava que de cada três habitantes da Corte, no Rio de Janeiro, um era africano A baiana tia Ciata foi protagonista na formação da “Pequena África” carioca, atraindo negros de todo os lugares na busca de orientação, de proteção e de ajuda financeira. Havia 74 mil africanos livres e escravos na capital do Império.

A primeira Escola de Samba

A casa da baiana tia Ciata foi o principal local, no qual se tocavam músicas e ritmos africanos daquela comunidade. Nele se originaram sambas históricos e exímios compositores. No ano de 1926, devido às perseguições policiais, alguns compositores  fundaram uma "escola de samba". O nome, na realidade, visava a driblar a repressão policial, pois se tratava de uma associação recreativa que não tinha fins voltados à educação. A primeira escola carioca fundada, em 12 de agosto de 1928, foi batizada com o nome "Deixa Falar". O destino determinou que divisões internas, a partir do fracasso de seu primeiro desfile, como rancho, dela se originasse a União da Estácio de Sá.  

No ano de 1932, o prefeito Pedro Ernesto organizou o primeiro desfile oficial de escolas de samba na Praça Onze de Junho. Naquele ano, a Estação Primeira de Mangueira foi a grande vencedora.  A partir desta iniciativa, os desfiles passaram a ser anuais, contando com uma grande presença de público.  Hoje, o Carnaval carioca assumiu uma dimensão internacional. Considerado o maior espetáculo do mundo, o desfile do grupo especial das escolas de samba ocorre no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, localizado nesta área que outrora foi reduto e resistência cultural do samba.

A origem do samba “Pelo Telefone”

A origem do primeiro samba nos remete ao dia 30 de outubro de 1916, quando o chefe de Polícia, da então capital federal, o Sr. Anaurelino Leal, publicou um edital nos jornais, determinando a sua oficialização: “ao delegado do distrito... que lavre auto de apreensão de todos os objetos de jogatina”. Estava, naquele momento, iniciando-se uma intensa campanha contra o jogo. Segue a transcrição da ordem: “Antes, porém de se lhe oficiar ,comunique-se-lhe esta minha recomendação por telefone”.

Após esta determinação oficial, durante uma reunião na casa de tia Ciata, apareceu o boêmio Didi da Gracinha e mostrou aos presentes um verso, cuja originalidade tem sido discutida. Ernesto Joaquim Maria dos Santos, cuja alcunha era Donga, estava presente naquele encontro e, mais tarde, embora os protestos dos amigos, registrou a composição como de sua autoria. O polêmico verso era assim: “O chefe da Polícia / Pelo Telefone / Mandou avisar / Que na carioca / Tem uma roleta / Para se jogar” .

Alguns autores afirmam que foi incorporada à letra original uma quarta parte que iniciava por ‘Olha a rolinha / sinhô, sinhô’. Em fevereiro de 1917, ano em que o samba “Pelo Telefone” foi gravado pela primeira vez, o verso ‘O Chefe da Polícia” foi substituído pela expressão “O Chefe da Folia”. Há consenso dos estudiosos de que a composição, de Donga e Mauro de Almeida, apresenta as características rítmicas, melódicas e harmônicas necessárias que confirmam seu pioneirismo como o primeiro samba urbano gravado. Foi um longo caminho percorrido desde o período colonial no Brasil, para que este gênero musical se configurasse como uma marca da nossa diversidade cultural, fazendo parte da identidade do povo brasileiro. Como afirma o verso do genial Dorival Caymmi (1914-2008) presente na inesquecível canção “Samba da minha terra”:  “Quem não gosta de samba bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé”.

O samba e o Carnaval em Porto Alegre

Na galeria dos sambistas gaúchos, entre outros nomes importantes, destacam –se Lupicínio Rodrigues (1914- 1974).Lourdes Rodrigues (1938-2014) , Zilah Machado (1928-2011),  Túlio Piva (1915-1993) e Durgue Costa, o Cigano, bastante conhecido na noite porto-alegrense por compor e interpretar diversos gêneros musicais. Em Porto Alegre, os espaços de resistência cultural da população afrodescendente, considerados o berço do samba, foram a Colônia Africana, o Areal da Baronesa e a Ilhota. Neste último, numa noite chuvosa, nasceu  Lupicínio Rodrigues (1914-1974), carinhosamente chamado de  Lupi. Ainda menino, ele fugia de casa para as rodas de samba que ocorriam nesse local.

Aos 14 anos, aquele que, mais tarde ficou conhecido, em todo o Brasil, como “O Rei da dor de Cotovelo”, compôs sua primeira música para o Cordão “Os Prediletos”, cujo título era “Carnaval”. Estes locais tinham uma população majoritariamente negra e neles surgiu uma série de blocos carnavalescos e uma tribo carnavalesca, composta, exclusivamente, por mulheres, cujo nome era “As Iracemas”.

A Academia de Samba Praiana introduziu, em Porto Alegre, o modelo que se conhece como escola de samba, baseado no Carnaval carioca. Sua origem nos remete a jovens pelotenses que se reuniam na extinta Lancheria Praiana. Este local se localizava na Rua dos Andradas, conhecida como Rua da Praia, e ali, em 1960, surgiu a ideia de se criar uma escola de samba. O famoso figurinista Cattani que faleceu em 2006, inovou e encantou o público, quando a Praiana, em 1961, desceu a Borges de Medeiros, apresentando o enredo "Coroação de Dom Pedro".
   
Até a década de 50, o Carnaval de rua era visto com “maus olhos” por grande parcela da sociedade gaúcha, sendo considerado uma festividade de negros, principalmente devido à presença majoritária da cultura europeia. Já na próxima década, ele passou a ganhar bastante popularidade, quando passou a seguir, de acordo com a nossa realidade econômica, o modelo dos carnavais do eixo Rio – São Paulo. Essa significativa mudança ocorreu, em 1961, quando a Academia de Samba Praiana elaborou seu carnaval com tais características.  

Ao final deste período, o nosso Carnaval começou a ser mais valorizado, pois os meios de comunicação começam a pensar a festa de forma comercial, percebendo as chances de lucrar com o evento. A primeira escola de samba de Porto Alegre, Bambas da Orgia, foi fundada em 06 de maio de 1940. Sua origem está ligada ao Bloco “Os Turunas” do bairro Santana. Ao passar do tempo, nosso Carnaval vem se qualificando. A cada ano, os desfiles que ocorrem, desde 2004, na Pista de Evento Carlos Alberto Barcellos, no Complexo Cultural do Porto Seco, tem apresentado, como espetáculo, uma evolução bastante qualitativa.

Como um apelo às futuras gerações, ao encerrar este breve histórico sobre a origem do samba, é importante que se registre esta joia da música brasileira: "Não deixe o samba morrer". Composto por Edson Conceição e Aloísio Silva, este samba foi gravado de forma brilhante, em 1975, pela cantora Alcione, “A marrom”, constituindo-se num clamor em prol do samba e pela defesa de suas raízes como legado cultural do negro em nossa formação cultural.  

“Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba pra gente sambar”...

Viva o samba!  Salve a Praça Onze e meu Agô às baianas da tia Ciata.

*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom

Bibliografia
COPSTEIN, JAYME. Samba cinquentão mais dois. Publicado no Correio do Povo de  13 de  agosto de 1968. Porto Alegre / RS.
MARCOMDES, Marcos Antônio. Enciclopédia da música brasileira – erudita, folclórica e popular. Arte Editora/Itaú Cultural/Publifolha, 1998.
MATTOS, Jane Rocha de. “Que arraial que nada, aquilo lá é um areal”: O Areal da Baronesa: Imaginário e História (1879-1921). Mestrado em história. PPGH-PUCRS, Porto Alegre, 2000.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Jorge Zahar, 2001. Disponível em PDF.
SILVA, Josiane Abrunhosa da. Bambas da Orgia: um estudo sobre o carnaval de rua de Porto Alegre, seus carnavalescos e os territórios negros. Porto Alegre, 1993. Dissertação de mestrado. PPG em Antropologia Social, UFRGS, 1993. BSCSH/UFRGS;
TINHORÃO, José Ramos Música Popular — Um Tema em Debate.  São Paulo: Editora 34, 1997.

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