sábado, 7 de maio de 2016

Brasil. O EXEMPLO: A VOZ NEGRA DO RIO GRANDE DO SUL



“Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que a mão branca sujava”  ( Gilberto Gil / A mão da limpeza)
  

Lutando por justiça, inclusão social e combate ao racismo, um periódico marcou sua presença de forma indelével na imprensa gaúcha, sendo o porta-voz da comunidade afrodescendente no estado: “O Exemplo” (1892-1930).

O semanário, que trazia como subtítulo “Jornal do Povo”, foi criado no Salão de Barbeiros Calisto, na Rua dos Andradas, conhecida como Rua da Praia, nº 247. No seu primeiro número, em seu editorial, “O Exemplo” apresentou a sua proposta:

“O nosso programa é simples e podemos exará-lo em duas palavras: a defesa de nossa classe e o aperfeiçoamento de nossos medíocres conhecimentos”.

Este importante periódico, fundado em 11 de dezembro de 1892, traz como diferencial o fato de ser criado e dirigido, exclusivamente, por negros, embora aceitasse a contribuição de intelectuais brancos em sintonia com seu caráter democrático e aberto à discussão. Circulando aos domingos, este semanário teve a sua frente, entre outros nomes, Arthur de Andrade (redator e editor), Esperidião Calisto (redator), Tácito Pires (redator), Alcibíades A. dos Santos (redator). Ainda, na “comissão de redação”, merecem registro os nomes dos irmãos Sérgio de Bittencourt e Aurélio de Bittencourt Júnior, que eram filhos do grande jornalista e escritor Aurélio Veríssimo de Bittencourt.  Entre 1920 e 1930, em sua fase final, destacou-se, como diretor, Dario de Bittencourt.   

De acordo com o historiador Marco Antônio Lírio de Mello, na Revista “Ponto & Vírgula” de novembro de 1986:

“Nascida da persistência e do idealismo de um punhado de operários gráficos negros, barbeiros, pedreiros, alfaiates, homens comuns, essa imprensa deu visibilidade e reforçou uma nova identidade que estava em construção, enquanto afro-brasileiros. Mantida por colaboradores que nem sempre saíram do anonimato, assinantes que a sustentaram durante décadas a fio, fizeram algo de inédito e de muito especial na história dos subalternos no Brasil –que foi pensar, sistematicamente, a si próprios enquanto grupo étnico, enquanto cidadãos, e enquanto constituintes de uma identidade nacional”.

Em sua primeira fase, “O Exemplo” circulou até 1897, retornando em 1902. Durante sua existência teve outras interrupções, encerrando a sua circulação, em definitivo, no primeiro semestre de 1930. Em sua última fase de 1916 a 1930, “O Exemplo” incentivou jovens autores, publicando textos de Reinaldo Moura, Dante de Laytano, Augusto Meyer, Walter Spalding e Breno Pinto Ribeiro, entre outros nomes, que, atualmente, fazem parte da galeria de honra dos nossos historiadores e literatos.

Na luta pela afirmação dos afrodescendentes, o periódico tinha uma índole integracionista.  Entre 1908 e 1911, “O Exemplo” passou a defender os trabalhadores, em geral, o movimento operário e o sindicalismo. O jornal se constituiu no porta-voz dos negros, dos mulatos e “pardos”, considerado como um dos periódicos mais engajados no combate contra a discriminação racial no Rio Grande do Sul,  constituindo-se numa referência histórica do Movimento Negro no Brasil.
   
A diversidade de temas abordados torna a sua leitura obrigatória a todos que se dedicam à pesquisa sobre o negro no Rio Grande do Sul. Do racismo à religião, o jornal trazia matérias importantes, contemplando aspectos sociais, políticos e culturais da comunidade afrodescendente.
                                                           
No ano de 1902, o jornal criou a Escola O Exemplo. Esta funcionava à noite, e seus professores ministravam o ensino primário, com exceção do ensino religioso, pelo fato que o jornal pregava a liberdade de culto. A escola contou com a presença de Felippe Eustáchio, Victal Batista, Esperidião Calisto, Tácito Pires e Arthur Rocha.

Quanto ao preconceito, em relação à prática dos cultos de matriz africana, no dia 13/11/1902, o jornal estampou, em suas páginas, a matéria com o título “Batida Nojenta”:

“Um acto de violência inqualificável foi o que a polícia administrativa praticou na noute de 5 do corrente, pelas 11 horas da noute invadindo criminosamente o prédio 94 da rua Fernando Machado, onde alguns moradores entregavam-se a officios de seu culto, e conduzindo não só a estes como aos demais moradores e vizitantes, até o posto policial”.

“O Exemplo”, enquanto espaço de memórias negras, tornou-se um mecanismo de reapropriação da memória e da história do passado do negro em Porto Alegre. No edital do seu primeiro número, em 11 /12/1892, registrou:

“Se não conseguirmos o alevantamento da nossa classe, ao menos não a deixaremos jazer no pó do olvido”. 

Segundo as pesquisas da historiadora e doutora Maria Angélica Zubaran, da ULBRA, o final da década de 1910 foi marcado por tensões raciais nos locais de trabalho, confrontos na rua e ocasionalmente por revoltas, a exemplo da “Revolta da Chibata”, liderada pelo negro gaúcho João Cândido (1880-1969), em novembro de 1910, no Rio de Janeiro, devido aos castigos corporais aplicados nos marujos em sua maioria pobres e negros.

Dentro deste contexto de denúncias, entre outras matérias, “O Exemplo”, de 1º de maio de 1910, trouxe a público a “Roda dos Expostos” da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, devido à forma como eram tratadas as órfãs e acusou o Juizado de Órfãos de agências de escravos como registra o trecho abaixo:

(…) “convertendo, de vez em quando, a Roda dos Expostos em depósito de crias e o juizado de Órfãos em agência de consignação de escravos, onde sob o embuste de padrinho ou tutor, (…) são adquiridos rapazinhos para copeiros, rapariguinhas para “criadas de dentro” e cozinheiras, enfim, para todo o serviço ( até para mulher dos patrões)” (…).

No editorial de 02 de janeiro de 1928, em sua última fase, “O Exemplo” expõe o seu ideário:

“O Exemplo surgiu não com o único escopo de dar combate ao preconceito de cores, mas colimando um fim ainda mais grandioso, que envolve o máximo interesse da comunhão brasileira: o combate ao analfabetismo, pregando aos nossos símiles a necessidade primordial de fazerem da Instrução seu lábaro sagrado, a companheira inseparável da sua existência, porque conquistando-a estará conquistando o nivelamento indispensável para que todos, identificados nos mesmos superiores ideais de grandeza da Pátria, trabalhem de mãos dadas e sem tolas preocupações de cores, pela consecução desses sublimes e formosos ideais!”

 “O Exemplo”, como outros periódicos que se inserem no conceito de Imprensa Negra, denunciava os problemas vivenciados pela comunidade afrodescendente após Abolição, revelando o seu cotidiano e opiniões acerca de questões políticas, culturais e econômicas.  Temas, ligados ao custo de vida, ao desemprego, à saúde, à educação, à violência policial e às mobilizações contra o racismo e a exclusão social, estão presentes nas páginas deste semanário combativo e comprometido com os interesses e os anseios de significativa parcela da população.

Fonte de pesquisa indispensável para estudantes, pesquisadores, historiadores e profissionais afins, “O Exemplo” aborda, em suas páginas, questões fundamentais ligadas à luta dos afrodescendentes, em prol da cidadania, após uma abolição que trouxe a liberdade a uma imensa população de escravizados. Infelizmente, esta liberdade trouxe consigo a marca da exclusão social, do preconceito - aliado ao estigma da escravidão-, maquilado pelo discurso da chamada “Democracia Racial”.

Uma parte dos originais, da coleção de “O Exemplo”, encontra-se sob a guarda do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa que, em setembro de 2016, completará 42 anos de existência, em Porto Alegre (RS), prestando valoroso serviço à comunidade cultural dedicada à pesquisa historiográfica.

Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=FPfWe69Tspc Estudo do Prof. Ms. Roberto dos Santos da ULBRA sobre imprensa negra no RS.

*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom

Bibliografia
MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul (1873-1974). Porto Alegre: [s.n.], 2004
MIRANDA, Marcia Eckert; LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
MÜLLER, Liane Susan. As contas do meu rosário são balas de artilharia: irmandade, jornal e sociedades negras em Porto Alegre 1889-1920. Porto Alegre, 1999. Dissertação de Mestrado. PPGH/PUCRS.
SILVEIRA, Oliveira. Três coleções preservam jornal da comunidade negra. CORREIO DO POVO, Porto Alegre, 8 out 1972, p. 22.
SILVA, Jandira M.M. da; CLEMENTE, Ir. Elvo; BARBOSA, Eni. Breve histórico da imprensa sul-rio-grandense. Porto Alegre: Corag, 1986.
ZUBARAN Maria Angélica. Comemorações da liberdade de memórias negras diaspóricas. Anos 90 / Revista do Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre, v.15, n. 27, Ed. UFRGS, 2008.

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