Como
ele, cria da ditadura, pôde ser líder de FHC, Lula e Dilma. Seus interesses:
mineração e aristocracia financeira. O que seu protagonismo revela sobre o
esvaziamento da democracia
Antonio
Martins – Outras Palavras
“Tem
que ter o impeachment, não tem saída (…) Tem que resolver esta porra. Tem que
mudar o governo para estancar esta sangria”, diz o então senador Romero Jucá
(PMDB-RR), ao telefone. Seu interlocutor, Sérgio Machado, ex-presidente da
Petrobrás Transportes (entre 2005 e 2015, por indicação do PMDB), e alvo da
Lava Jato, concorda: “É, um acordo. Botar o Michel, num grande acordo
nacional”. Ao que Jucá completa: “Com o Supremo, com tudo”.
Se
alguém ainda duvidava que o impeachment da presidente Dilma está sendo tramado
para preservar a corrupção na vida institucional brasileira, o
diálogo revelado esta manhã será um esclarecimento definitivo. Jucá, que poucas
horas mais tarde prometeu licenciar-se do ministério do Planejamento de Michel
Temer, não terá – tudo indica – sobrevida longa. Como atuava, assumidamente,
como uma espécie de porta-voz informal do “presidente” (leia entrevista concedida
a El País), sua queda será, também, um duro golpe contra o governo
interino.
Mas
o episódio permite examinar algo ainda mais crucial. Jucá teve presença
destacada em quase todos os governos da Nova República – de José Sarney a Dilma
Rousseff. Seu ziguezague partidário constante revela muito mais que uma
possível tendência oportunista. No Congresso, ele nunca frequentou o “baixo
clero”; sempre foi personagem central. Seu protagonismo duradouro, suas
vitórias seguidas e os interesses em favor dos quais atuou demonstram como o
sistema político brasileiro bloqueia a democracia. Seja qual for o partido no
poder, ele funciona, essencialmente, para ampliar a dominação da aristocracia
financeira, expandir a predação da natureza e manter um oligopólio de mídia que
esconde do país seus problemas essenciais.
Pernambucano
de origem e economista de formação, Jucá ligou-se à política durante a
ditadura. Ocupou desde 1979 – então, aos 25 anos – postos de segundo escalão
nas gestões dos governadores Moura Cavalcanti e Marco Maciel (Arena-PDS).
A queda do regime, em 1984, não frustrou seus planos – ao contrário. Após a
transição sem ruptura que marcou o início da Nova República, Marco Maciel foi
homem forte do governo José Sarney. Jucá integrava a equipe de jovens
tecnocratas formada pelo ex-govenador. Rapidamente chegou às presidências da
Fundação Projeto Rondon (1985) e da Funai (1986). Neste último posto, pratica
atos que lhe renderão, mais tarde, as primeiras acusações (que sempre
contestou) por corrupção, formação de quadrilha e peculato – a apropriação ou
desvio de valores ou bens móveis de propriedade pública.
Dois
anos depois, dá o passo que o levará à distante Roraima. É nomeado por Sarney,
com aprovação do Senado, para o governo do então território federal.
O mandato durará apenas dois anos. Em 1990, Jucá não consegue eleger-se
governador do Estado, recém-criado. Mas é em Roraima que descobre um dos eixos
de sua atuação política: a defesa da expansão do capitalismo – em especial,
mineradoras e agronegócio – em terras intocadas ou habitadas por índios.
A
estreia de Jucá neste papel ocorre já em 1989. A partir de 1987, o território
ianomâmi fora invadido por 40 mil garimpeiros, o que gerou conflitos, mortes e,
após a difusão das notícias em todo o país, uma primeira grande crise. O
governador não-eleito bloqueia a retirada dos garimpeiros das terras indígenas,
alegando que buscava proteger suas famílias. Cinco anos depois, em 1994,
elege-se senador pelo PPR (um precursor do atual PP, dirigido então por Paulo
Maluf). Irá se reeleger em 2002 (pelo PSDB) e em 2010 (pelo PMDB).
Ao
longo de toda a sua atuação parlamentar, Jucá advogará – na tribuna do Senado,
em artigos e entrevistas – contra a demarcação das terras originais indígenas,
argumentando que suas dimensões estão “superdimensionadas”. É o autor do
Projeto de Lei (PL)1610/1996,
aprovado pelo Senado há uma década e ainda não votado na Câmara, devido a seu
caráter polêmico e à oposição de povos indígenas. O projeto autoriza mineração
em terras demarcadas dos povos originais, mesmo quando estes se oponham a tal
exploração. É, por isso, considerado, por muitos, afronta ao Artigo 231
da Constituição, segundo o qual garante-se aos índios o respeito à “sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, além dos “direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Embora
o PL1610 tramite agora na Câmara, Jucá não se cansa de defendê-lo, da tribuna
do Senado. Sabe converter uma causa dos grupos econômicos ligados exploração do
subsolo num interesse também pessoal. Em agosto de 2012, a revista Época noticiou que
Marina Jucá, filha do senador, é proprietária da Boa Vista Mineração, uma
empresa interessada em extrair ouro em lavras na fronteira entre Brasil e
Venezuela – em parte, situadas em terras habitadas há séculos pelos índios
Macuxi e Wapichana.
Mas
o senador não seria uma figura proeminente no Congresso se se limitasse a
defender interesses familiares, ou os favores oferecidos às empresas ávidas em
minerar os grotões do país. Seus negócios são maiores. Desde seu primeiro
mandato, Romero Jucá tem proposto, relatado ou defendido projetos que preservam
os interesses da aristocracia financeira junto ao Estado. Servindo a distintos
governos, ele especializou-se em batalhar para que a parcela de recursos
públicos destinada ao pagamento de juros fosse mantida ou ampliada,
sobrepondo-se a investimentos sociais.
Começa
com FHC. Em abril de 1995, Jucá deixa o PPR e filia-se ao PFL (atual DEM), que
compõe com o PSDB a base de apoio ao governo. Em 1996, é um dos grandes
defensores do Fundo
de Estabilização Fiscal (FEF), que retira
20% das verbas destinadas pela Constituição a Saúde e Educação. Sua atuação aproxima-o
do presidente; ele migra para o PSDB e exerce pela primeira vez, entre 1999 e
2003, o posto de líder do governo no Senado.
Mas
sente a mudança de ares e bandeia-se. Reeleito em 2002 pelo PSDB, passa ao PMDB
no ano seguinte para integrar-se à base de apoio a Lula. Torna-se breve
ministro da Previdência (2005) e, de novo, líder do governo no Senado – de 2006
até o 2012. Nesse ano, Dilma troca-o por outro peemedebista, Eduardo Braga, que
também irá traí-la mais tarde, na votação do impeachment.
Mas,
mesmo após deixar a liderança, Jucá segue com o governo – ou, melhor, com a
aristocracia financeira. Em 2015, afinado com a política de “ajuste fiscal” a
que a presidente adere, atua como relator doProposta
de Emenda Constitucional (PEC) 143, ainda em tramitação. O objetivo é o
mesmo da FEF para a qual trabalhara dez anos antes, sob FHC. Mas agora, Dilma e
Jucá defendem que, além da União, também os Estados e Municípios possam desviar
para outros fins recursos destinados a investimentos sociais. O ministério
da Saúde alerta: a proposta retirará, a cada ano, R$ 35 bilhões do SUS.
Há
alguns meses, Jucá tornou-se partidário do golpe contra Dilma. Diz ter
concluído que a presidente perdeu
condições de governabilidade. Sua proximidade de Temer e seu protagonismo
no Senado tornaram-no figura central no “governo” interino. Em 12 de maio,
assumiu o poderoso ministério do Planejamento. Foi chamado, mais uma vez, a
cumprir um conhecido papel. Conforme contou a O Globo há dias,preparava-se
para propor nesta segunda-feira, no Congresso, medida que autoriza a União a
desviar para outros fins – leia-se: pagamento de juros – uma parcela ainda
maior (agora, 25%) dos recursos destinados a Educação e Saúde.
Como
tantos outros, entre seus pares, Jucá percebeu que o esvaziamento da democracia
exige o controle da mídia. Em 2014, a Procuradoria Geral da República processou-o por
falsidade ideológica. Diz ter apurado que o senador serviu-se de um “laranja” –
o empresário Geraldo Magela – para adquirir, quatro anos antes, a TV Caburaí,
afiliada à Rede Bandeirantes em Roraima. O artigo 54 da Constituição proíbe
deputados e senadores de possuírem concessionárias de serviços públicos – caso
das emissoras de rádio e TV. A medida é comumente contornada por meio de
artifícios como o utilizado por Jucá em Roraima.
O
senador é citado em outros casos de corrupção. Em 19/5, o ministro Marco
Aurélio Mello autorizou a quebra
dos seus sigilos bancário
e fiscal, entre 1996 e 2002. Acolheu denúncia segundo a qual houve, no período,
superfaturamento de obras financiadas por recursos federais destinados, por
meio de emendas propostas por Jucá, ao município deCantá (RR). Parte do
valor pago a mais pelas empreiteiras teria sido destinada ao cofres do senador.
Jucá
também é citado nas delações premiadas de dois dos investigados pela Operação
Lava Jato. Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás, relacionou-o entre
28 políticos que receberiam propinas a partir de desvio de recursos da estatal.
Também o senador Delcídio Amaral teria feito
denúncias a seu respeito. Até o momento, foram convenientemente
ocultadas pela Procuradoria Geral da República e pela mídia – certamente, para
que a opinião pública associe apenas ao PT a corrupção que domina a vida
institucional brasileira.
É
provável que o vazamento de seu diálogo com Sérgio Machado torne mais difícil a
vida dos golpistas. Já será um enorme favor. Mas quem examina os interesses que
Jucá defendeu ao longo de mais de duas décadas no Senado; e a facilidade com
que estes interesses tornaram-se centrais para todos os governos do período
percebe que o buraco é bem mais embaixo. Ou a sociedade encara a urgência
desesperada da Reforma Política, ou “democracia” será, cada vez mais, sinônimo
de mesmice e hipocrisia.
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