Carvalho
da Silva* – Jornal de Notícias, opinião
No
último mês sucederam-se acontecimentos que marcam um daqueles tempos históricos
dramáticos, em que parece haver um ensandecimento coletivo. Entre esses
acontecimentos, relevem-se: o ressurgimento do terrorismo internacional numa
proliferação de formas, com os principais líderes políticos incapazes de
desencadearem abordagens novas e coerentes do problema; a tentativa de golpe e
contragolpe na Turquia, país de grande relevo no plano geoestratégico e
potência militar, com a comunidade internacional fazendo denúncias incipientes
da ditadura perigosa que ali se está a instalar; a presença em cena de atores
políticos da extrema-direita como Donald Trump e o reforço deste campo político
na Europa; a intensificação da militarização da Europa, por ação conjugada dos
EUA e da NATO, num contexto em que a UE desbaratou toda a sua capacidade de
relacionamento externo nas mais diversas direções; um "apagamento"
significativo do problema dos refugiados quando nada está resolvido; a estúpida
lateralização do processo decorrente da decisão do Reino Unido sair da UE, por
parte dos principais dirigentes desta; algumas novas expressões de domínio do
poder financeiro e do atrofiamento que este impõe às democracias.
A
análise política que lemos e ouvimos, nos grandes meios de Comunicação Social,
trata cada uma destas situações de forma isolada, enquanto os alinhamentos
noticiosos alimentam um turbilhão de dramas. Neste cenário as pessoas sentem-se
incapazes de agir na resolução dos seus problemas concretos e são conduzidas à sensação
de caos iminente.
Sejamos
"radicais" no sentido de "tomar as coisas pela raiz",
honestos e rigorosos na abordagem deste quadro. Cada um destes graves
acontecimentos a que assistimos tem especificidades, mas há raízes comuns. E
todos atentam contra a dignidade humana.
Na
hiperglobalização das últimas décadas algo correu muito mal e o seu falhanço
será, muito para além de outros fatores de cada realidade nacional, uma das
principais causas dos dramas que estamos vivendo. Sem medos, esta realidade,
deve ser enfrentada. O estilhaçamento do campo político do Estado-nação e dos
espaços políticos nacionais de governação onde a democracia se exerce foi
manifestamente visível desde o início da crise financeira internacional. Vale a
pena lembrar que a profunda instabilidade política no Magreb e no Médio Oriente
nasceu de uma ação política deliberada e gananciosa para desarticular países e
poderes estruturados, dos efeitos de uma crise internacional que deixou milhões
no desemprego e sem acesso a bens básicos. Na Europa assistimos durante anos à
imposição da austeridade, à construção de tratados ao serviço dos poderosos, à
criação de mecanismos entregues a tecnocratas formatados pelo poder financeiro
e pela cartilha neoliberal que, sem mandato popular, exercem a efetiva
governação de países.
Face
a este aparente ensandecimento coletivo, os poderes de facto desta
hiperglobalização reagem com uma fuga para a frente, reforçando mecanismos e
práticas que deram azo a este caos. "Patifes" do FMI têm o
descaramento de afirmar que os problemas da banca portuguesa - grave à nossa
escala, mas uma gota no quadro global - contaminam o sistema financeiro
mundial. Os mandantes da UE andam entusiasmadíssimos com a possibilidade de se
proporem, e pela primeira vez se poderem aplicar, sanções a Portugal e Espanha,
enquanto insistem na adoção de novos acordos internacionais de comércio, como o
TTIP, que reforçam o modelo neoliberal de livre-comércio, a austeridade
permanente e o esvaziamento das democracias nacionais.
O
projeto europeu chegou a um tal descalabro que em tudo o que toca estraga.
Temos de nos opor a este rumo. A questão central é dar vida à democracia, que
jamais sobreviverá debaixo de estruturas e regras antidemocráticas, ou de
governações sem mandato popular. É preciso devolver capacidades e competências
às instituições e aos poderes dos espaços onde a democracia pode ser efetivada.
Não abdicarmos do direito a ter emprego digno, combate à pobreza, mais justiça
social e desenvolvimento humano. E de trabalhar para uma Europa de cooperação,
de partilha solidária, de harmonização no progresso.
*
Investigador e professor universitário
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