Tudo
indica: Washington e talvez Paris foram informadas da tentativa de derrubar
Erdogan — e permitiram que ela avançasse. Agora, presidente aproveitará para
voltar-se à Ásia
Pepe
Escobar ~Outras Palavras - Tradução Vila Vudu
Em
pleno espantoso expurgo, incansável, de amplo alcance, que não dá sinais de
arrefecer, com 60 mil (e cada dia mais) funcionários públicos, acadêmicos,
juízes, procuradores de justiça, policiais, soldados já presos, demitidos,
suspensos ou que tiveram cassadas as licenças para trabalhar, já não parece
restar qualquer dúvida de que o governo turco foi, sim, muito bem informado de que estava em
organização um golpe militar, para o dia 15 de julho. É muito possível que a
informação tenha chegado até ele graças à inteligência russa, mas
evidentemente nem Moscou nem Ancara revelarão qualquer detalhe. Assim sendo, e
de uma vez por todas: não foi autogolpe encenado.
Importante
analista do Oriente Médio, secular, que assistiu de Istambul a todo o golpe,
esclareceu o contexto político antes até da declaração – esperada – do estado
de emergência (se a França pode declarar estado de emergência, por que a
Turquia não poderia?):
“Ficaram
sabendo com 5-6 horas de antecedência que havia um golpe em andamento, e
deixaram que prosseguisse, sabendo, como sabiam, que fracassaria (…), o que
promoveu Erdogan ao status de semideus, entre seus apoiadores. O caminho está
aberto para ele fazer o que queira (uma presidência forte, e remover o princípio
secularista da Constituição). Assim estará preparado o cenário para introduzir
alguns aspectos da lei da Xaria. Erdogan já tentou esse movimento nos primeiros
anos do governo do AKP, quando tentou introduzir a Zina, lei estritamente
islamista, que criminalizaria o adultério e abriria o caminho para criminalizar
outras relações sexuais que o islamismo considera ilícitas, uma vez que a Zina
é geral, não trata só de adultério. Mas a União Europeia objetou, e Erdogan
recuou.”
A
mesma fonte da inteligência acrescenta que:
“nas
semanas que levaram a esse desfecho, Erdogan permaneceu discreto e calado, o
que não é usual. Mas o primeiro-ministro foi substituído e o novo anunciou
política exterior completamente nova, que previa inclusive recompor relações
com a Síria. Teria o próprio Erdogan concluído que a política para a Síria era
insustentável? Ou a ideia lhe teria sido imposta pelos mais velhos do partido,
considerado o terrível dano que aquela política já causara à Turquia, além do
que já fizera à Síria? Se lhe foi imposta, nesse caso o golpe fracassado dá a
Erdogan oportunidade para reafirmar a própria autoridade também sobre o alto
escalão do AKP. Com certeza, veio em momento muito oportuno”.
O
historiador turco Cam Erimtan ajuda a compreender o contexto. Explica como:
“no
início do próximo mês, o Alto Conselho Militar da Turquia (YAŞ, na sigla em
turco) vai-se reunir, e espera-se que grande número de oficiais sejam
dispensados. O Estado turco deve entrar num exercício de limpeza, com remoção
de todos e quaisquer opositores ao governo do AKP. Esse golpe-que-não-foi-golpe
serve pois como munição poderosa para faxina nas fileiras (…) mesmo que o
presidente ande apontando o dedo para o outro lado do Atlântico, contra a
figura sinistra de Fethullah Gülen e sua suposta organização terrorista FETÖ
(Fettullahçı Terör Örgütü, ou Organização de Terror Fethullahista), insinuando
que os organizadores do golpe seriam parte da mesma organização claramente
impalpável, e possivelmente não existente”.
O
resultado final não será agradável:
“Erdoğan
já está sendo citado como Comandante-em-chefe da Turquia, o que indicaria,
dentre outras coisas, que vê a tentativa de golpe como ataque pessoal direto
contra ele. Sejam quais tenham sido os motivos dos conspiradores, o resultado
final da ação deles será a aceitação muito mais ampla, apaixonada e
entusiasmada da política de Erdoğan, de sunificação e, talvez, o desmonte
discreto do estado-nação turco, a ser substituído por uma “federação anatoliana
de etnias muçulmanas” – possivelmente ligada a
um califado ressuscitado, e a um possível retorno da Xaria à
Turquia”.
É
como se Erdogan tivesse sido abençoado com um efeito “Poderoso Chefão” reverso.
No filme, obra prima de Coppola, Michael Corleone diz “No instante em que você
pensa que saiu, eles puxam você outra vez para dentro”. No caso do Poderoso
Chefão Erdogan, no instante em que ele pensou que estivesse inapelavelmente
dentro da arapuca, “Deus” – como ele admitiu – o puxou para fora. É o Sultão do
Vaivém.
Leões
contra Falcões
Com
Erdogan firmando suas garras de ferro dentro da Turquia, garras de ferro
pré-existentes – OTAN/Turquia – vão-se lentamente dissolvendo no ar. É como se
o destino da base aérea Incirlik estivesse pendurado e balançando, enforcado –
literalmente –, nuns poucos, selecionados fios de radar.
Há
desconfiança extrema em todo o espectro na Turquia de que o Pentágono sabia do
que os “rebeldes” estavam preparando. Não há quem não saiba que não cai um
alfinete em Incirlik sem que os norte-americanos saibam. Membros do AKP
destacam o uso da rede de comunicação da OTAN para coordenar os putschistas e
assim escapar da inteligência turca. No mínimo, os putschistas podem ter
acreditado que contariam com a OTAN para garantir-lhes a retaguarda. Pois
nenhum “aliado na OTAN” dignou-se a alertar Erdogan sobre o golpe.
E
há também a saga do avião para reabastecimento de jatos em voo, que
reabasteceria os F-16s “rebeldes”. Todos os aviões de reabastecimento em voo em
Incirlik são do mesmo modelo – KC-135R Stratotanker – para norte-americanos e
turcos. Trabalham lado a lado, sob o mesmo comando: a 10ª Main Tanker Base,
cujo comandante é o general Bekir Ercan Van, devidamente preso no domingo
passado – e sete juízes já confiscaram todos os controles da torre de
comunicações da base. Não por acaso, o general Bekir Ercan Van é muito próximo
de Ash Carter do Pentágono.
O
que aconteceu no espaço aéreo turco depois que o Gulfstream IV de Erdogan
deixou o litoral do Mediterrâneo e aterrissou no aeroporto Ataturk em Istambul
já está quase completamente mapeado – mas ainda há buracos
crucialmente importantes na narrativa, abertos à especulação. Erdogan tem-se
mantido de boca fechada em todas as entrevistas, e resta esse cenário estilo Missão
Impossível, com dois F-16s “rebeldes”, “Leão I” e “Leão II”, em “missão
especial”, com ostransponders desligados; o encontro deles com os “Falcão
I” e “Falcão II”; um dos “Leões” pilotado por ninguém menos que o homem que
derrubou o Su-24 russo em novembro passado; o hoje já famoso avião de
reabastecimento em voo que decolou de Incirlik para reabastecer os “rebeldes”;
e mais três duplas extras de F-16s que decolaram de Dalaman, Erzurum e
Balikesir para interceptar os “rebeldes”, inclusive a dupla que
protegia o Gulfsteam de Erdogan (que voava sob prefixo THY 8456, disfarçado
como voo da Turkish Airlines).
Mas
quem estava por trás de tudo isso?
Erdogan
em missão dada por Deus
O
conhecido “vazador” saudita “Mujtahid” causou frisson porrevelar que
os Emirados Árabes não apenas “tiveram uma função” no golpe mas, também porque manteve a Casa de Saud no circuito. Como se já não
houvesse aí problemas que bastassem, o autodeposto emir do Qatar, Sheikh Hamad
al-Thani, muito próximo de Erdogan, afirmou que
EUA e outra nação europeia (alta probabilidade de ser a França) montaram toda a
operação, com envolvimento da Arábia Saudita. Ankara, como seria de prever, negou tudo.
O
Irã, por sua vez, viu claramente o jogo de longo prazo e apoiou firmemente Erdogan desde o início. E mais uma
vez ninguém falará sobre o assunto, é claro, porque a inteligência russa sabia
perfeitamente de todos esses passos – o que o rápido telefonema do presidente
Putin a Erdogan, imediatamente depois do golpe, só confirma.
Mais
uma vez, os fatos básicos: todos os agentes operadores de inteligência no sul
da Ásia sabem que sem luz verde do Pentágono, todas as facções militares turcas
encontrariam imensa dificuldade – senão absoluta impossibilidade – de organizar
qualquer golpe. Além disso, durante aquela noite fatídica, até que se teve
certeza de que o golpe fracassara, nenhum dos conspiradores – de Washington a
Bruxelas – foi apresentado precisamente como “o mal”.
Uma
fonte da alta inteligência norte-americana, que não acompanha o consenso da
Av.Beltway [o cinturão rodoviário que circunda Washington e define seu
perímerto], não precisa de meias palavras. Para essa fonte,
“os
militares turcos jamais dariam um passo sem luz verde de Washington.
Planejou-se o mesmo para a Arábia Saudita em abril de 2014, mas o movimento foi
bloqueado nos mais altos escalões em Washington, por um amigo da Arábia
Saudita”.
Essa
fonte, que é capaz de pensar fora da caixa, adere à hipótese que se tem de
tomar como hipótese chave e atual hipótese de trabalho: o golpe aconteceu, ou
foi acelerado, essencialmente, “por causa da repentina reaproximação de
Erdogan com a Rússia”. Turcos de todo o espectro jogam gasolina ao fogo,
insistindo que é mais que provável que as bombas contra o aeroporto de Istanbul
tenham sido uma Operação Gladio. Não param de surgir rumores, de leste e de
oeste, já sinalizando que Erdogan deixará a OTAN mais dia, menos dia; para
integrar-se à Organização de Cooperação de Xangai.
Apesar
de Erdogan ser ator no qual absolutamente não se pode confiar e canhão
geopolítico giratório, não se deve descartar a possibilidade de que esteja a
caminho um convite de Moscou-Pequim, em futuro não muito distante. Putin e
Erdogan terão encontro absolutamente crucial no início de agosto. Erdogan
conversou por telefone com o presidente do Irã Hassan Rouhani. O que disseram disparou
calafrios pela espinha da OTAN:
“Hoje
estamos decididos, mais que antes, a contribuir para a solução dos problemas
regionais, de mãos dadas com a Rússia e em cooperação com eles”.
Assim
sendo, mais uma vez está configurada a disputa crucial que definirá o século
21: OTAN contra a integração da Eurásia, com o Sultão do Vaivém da Turquia
exatamente no meio. “Deus” com certeza brincou com esse cenário arrepiante,
quando falou diretamente a Erdogan, pelo Face Time.
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