A
justiça, em Portugal, é divina. Nada se assemelha mais ao reino dos céus do que
o sistema judicial português: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar na prisão
Ricardo
Araújo Pereira – Visão, opinião
ando
se soube que o tribunal tinha autorizado Ricardo Salgado a ir passar as férias
à sua casa da Comporta, os invejosos do costume indignaram-se: como era
possível que um homem que devia estar detido fosse passar férias a uma casa que
devia ter sido arrestada, gastando dinheiro que devia ter sido confiscado? Começo a ficar cansado destas pessoas, que não percebem a sorte que têm. A
justiça, em Portugal, é divina. Nada se assemelha mais ao reino dos céus do que
o sistema judicial português: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar na prisão. Ricardo Salgado pode ter uma mansão em
Cascais mas, por mais que tente, não consegue lugar num quartinho modesto de
dois metros por dois na Carregueira. E, como é sabido, os prazeres simples são
os melhores da vida. Não é fácil ser rico em Portugal.
Do
ponto de vista semântico, a vida de Ricardo Salgado não é melhor. As palavras
têm importância, pelo menos para mim. É muito frequente ir a um destes novos
restaurantes e constatar que retiro mais prazer da leitura da descrição do
prato do que da degustação da comida em si. Ora, como todos sabemos, quem leva
a vida mais privilegiada em Portugal são os ciganos. Tanto nas tascas como na
televisão, importantes cientistas sociais informam-nos que a generalidade dos
ciganos vive à conta de benesses do Estado. Deve ser um modo delicioso de viver
e, no entanto, é inacessível a Ricardo Salgado. O que ele faz é aproveitar
inteligentemente amnistias fiscais. De acordo com os jornais, entre 2005 e 2011
aproveitou três, regularizando 26 milhões de euros não declarados, pagando uma
taxa insignificante de imposto. Trata-se de uma existência triste, que nada tem
a ver com viver à conta de benesses do Estado. Primeiro, consiste em
aproveitar, que é o que se faz aos restos. Segundo, é uma manobra inteligente,
pelo que deve dar trabalho. Terceiro, trata-se de uma amnistia, que é um
instituto tão reles que, nos Estados Unidos, o Presidente o reserva para perus.
Deprimente.
Na
raiz desta discriminação está, parece-me, um preconceito relativo à maneira de
vestir. Salgado usa colarinho branco. Se vestisse colarinho preto, talvez
tivesse a fama dos ciganos. De resto, milionários e ciganos mantêm estilos de
vida quase iguais: tanto uns como outros só casam dentro da sua comunidade, e
normalmente fazem casamentos de arromba. É uma injustiça que uns tenham a fama
e outros o proveito. A fama é a melhor.
Cartoon
de João Fazenda
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