No
século XIX, grande parte do cotidiano de Porto Alegre foi registrado em
crônicas presentes em publicações da época. Este tipo de narrativa teve na
figura de Antônio Álvares Pereira Coruja (1806-1889), cuja alcunha era
“Coruja”, o seu pioneirismo entre os porto-alegrenses.
Nascido,
em Porto Alegre, no dia 30 de agosto de 1806, nosso primeiro cronista, de
acordo com o pesquisador Lotário Neuberger, era filho do português José Pedro
Álvares de Souza Guimarães e da gaúcha Felícia Maria da Silva. De origem humilde,
teve que trabalhar, desde cedo, como sacristão, na Igreja Nossa Senhora Madre
de Deus (Igreja Matriz).
A
responsável por sua alfabetização, por volta de 1811, foi a gaúcha, natural de
Rio Pardo, Maria Josefa B. Pereira Pinto (1775-1837), considerada a primeira
mulher jornalista no Brasil. Monarquista convicta, ela defendia o retorno do
dom Pedro I, que havia abdicado do trono, 07 de abril de 1831, além de
combater os liberais farroupilhas, por meio de seu periódico “ Belona Irada
contra os Sectários de Momo”(1833 -1834).
Como
meio de sobrevivência, nossa primeira jornalista fundou, em Porto Alegre, uma
escola primária, em sua própria casa, na qual o nosso cronista foi
alfabetizado. As aulas eram ministradas, na Rua da Cadeia, para ambos os sexos,
sendo o local absorvido mais tarde pela Avenida Senador Salgado Filho. Este foi
o primeiro curso no Brasil, que reuniu meninos e meninas na mesma sala,
ratificando o quanto esta mulher foi vanguarda em sua época.
Após
esta etapa, Coruja seguiu seus estudos com o mestre português Antônio Ávila, na
Rua do Cotovelo (Atual Riachuelo), próximo ao Arquivo Público do Estado.
Conhecido por ser muito rigoroso, que punia, com castigos, o aluno não
cumpridor de suas determinações, este professor ganhou a alcunha de “Amansa
Burros’. Aos 9 anos, em 1816, Coruja se aproximou do Pe. Tomé de Souza - famoso
professor de latim da cidade -, do qual foi aluno, tendo aulas de português,
latim, matemática e filosofia.
Existem
algumas versões quanto à origem de sua alcunha “Coruja”. Uma delas afirma que o
nosso cronista em sua primeira aula, com o Padre Tomé, ao apresentar-se, chamou
a atenção do discípulo Cândido Batista que gritou: “Olhem, parece mesmo uma
coruja”. A partir de então, a alcunha se difundiu, sendo esta a maneira que, o
nosso gramático, historiador, dialectólogo, político e empresário, ficou
conhecido, popularmente, durante a sua vida.
A
jornada do mestre
Em
1826, designado pelo Presidente da Província, o futuro Visconde de Camamu,
Coruja viajou ao Rio de Janeiro, para cursar o método de ensino mútuo do inglês
Joseph Lancaster. Tratava-se de um curso, que teve a duração um ano, do qual
saiu habilitado e nomeado professor régio. Retornando para Porto Alegre, ele
passou a exercer o cargo.
No
dia 02 de agosto de 1827, ele abriu, na Rua da Graça, uma escola de ensino
mútuo, conhecida como “Casa Queimada”, para alfabetizar em grupo. Este método
não foi generalizado devido à falta de professores que soubessem aplica-lo. De
acordo com o historiador Aurélio Porto (1879-1945), a escola possuía grande
variedade de livros didáticos à venda. O nosso cronista lecionou também
na escola do seu antigo mestre, Antônio Ávila (o Amansa Burros), de 1827 a
1835, quando, então, eclodiu a Revolução Farroupilha (1835-1845). O importante
escritor Múcio Teixeira (1857-1926), que pertenceu à Sociedade Partenon
Literário (1868) - a mais antiga sociedade literária do Brasil -, descreveu o
nosso cronista Coruja:
“
(....) um homem feio de sombrancelhas hirsutas, nariz adunco, boca rasgada e
cabeça grandemente achatada.”
Coruja,
a Maçonaria e a Revolução Farroupilha (1835-1845)
No
ano de 1831, o professor Coruja se tornou redator do jornal “O Compilador
em Porto Alegre” (1831-1832) que foi criado por alguns liberais, como
Francisco das Chagas Martins Ávila e Souza (o Padre Chagas), Pedro José
de Almeida (Pedro Boticário) – redator de “Idade de Pau” e o próprio Coruja que
fundaram, no dia 31 de julho, daquele ano, o “Gabinete de Leitura”. Na
realidade, o Gabinete encobria, por motivos de perseguições de ordem política e
religiosa, a nossa primeira loja maçônica “Filantropia e Liberdade“. A decisão,
quanto à invasão de Porto Alegre, pela Ponte da Azenha, dando início a mais
longeva guerra civil no Brasil, ocorreu nesta loja, que se localizava na Rua do
Rosário, atual Vigário José Inácio. O jornal “O Continentino” (1831-1832) era órgão
oficial desse “Gabinete de Leitura”, que também mantinha uma escola de
primeiras letras.
No dia 18 de setembro de 1835, Bento Gonçalves da Silva (1788-1847) abriu a reunião que decidiu o início da Revolução Farroupilha (1835-1845). Estavam presentes na Loja Filantropia e Liberdade: José Gomes Jardim (1774-1854), Onofre Pires (1799-1844), Pedro Boticário (1799-1850), Vicente da Fontoura (1807-1860), Paulino da Fontoura (1800-1843), Antônio de Souza Neto (1803-1866) e Domingos José de Almeida (1797-1871) e o próprio Coruja que fundaram, no dia 31 de julho, daquele ano, o “Gabinete de Leitura”. Na realidade, o Gabinete encobria, por motivos de perseguições de ordem política e religiosa, a nossa primeira loja maçônica “Filantropia e Liberdade“. A decisão, quanto à invasão de Porto Alegre, pela Ponte da Azenha, dando início a mais longeva guerra civil no Brasil, ocorreu nesta loja, que se localizava na Rua do Rosário, atual Vigário José Inácio. O jornal “O Continentino” (1831-1832) era órgão oficial desse “Gabinete de Leitura”, que também mantinha uma escola de primeiras letras.
Em
07 de abril de 1835, realizaram-se eleições para a Assembleia Provincial que
contou com a participação de Coruja do Partido Liberal. Não atingindo o número
de votos, ele ficou como suplente de deputado. Ainda no mesmo ano, o Presidente
da Província, Fernandes Braga, nomeou Coruja para lecionar a cadeira de
Filosofia Racional e Moral. Passados alguns meses, em 14 de setembro, ele
assumiu uma cadeira na Assembleia e tornou-se o primeiro secretário da Mesa.
A
família e o exílio no Rio de Janeiro
Os
liberais farroupilhas dominaram a Capital da Província de 20 de setembro de
1835 a 15 de junho de 1836, quando esta foi retomada das mãos dos
revolucionários liberais. Dentro deste período, em 30 de dezembro de
1835, o professor Coruja se casou com a riograndina Catarina Lopes e teve um
filho adotivo que foi abandonado à porta de Antônio Marques da Cunha. Anterior
à criação, em 1838, da Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia, cuja
finalidade era receber as crianças enjeitadas, era um costume deixá-las à porta
de uma residência. Este filho adotivo recebeu o nome de Antônio Álvares
Pereira Coruja Júnior.
Quando
Manuel Marques de Souza (1804- 1875) – futuro Conde de Porto Alegre – retoma a
Capital, Coruja e outros liberais, incluindo o presidente da Província José
Marciano Ribeiro, são presos e exilados para o Rio de Janeiro. O navio de
guerra Pojuca, que levava os traidores do Império, chegou ao seu destino, em 18
de agosto de 1836. Em outubro daquele ano, foram soltos por ordem de
habeas corpus, voltando para Porto Alegre. Aqui, ao desembarcarem, foram
encarcerados a bordo do Presiganga, o navio-prisão, do qual havia escapado o
futuro Conde de Porto Alegre, responsável pela retomada do poder imperial na
Capital gaúcha.
No
ano de 1837, quando chegou a Porto Alegre o presidente Araújo Ribeiro, Coruja
foi liberto da prisão. Após esses acontecimentos, nosso cronista decidiu
retornar para o Rio de Janeiro, onde viveu o resto da sua existência.
Desencantado
com as questões políticas, que havia vivenciado na Província, nosso cronista
passou a dedicar-se, de forma exclusiva, ao estudo, ao ensino e à educação. Sua
esposa, a professora Catarina Lopes, e o filho adotivo chegaram a Capital do
Império em 1837, O casal tinha em comum à dedicação ao Magistério.
O
mestre Coruja no Rio de Janeiro
Em
02 de julho de 1839, Coruja foi anistiado por decreto do Regente Araújo Lima,
embora permanecesse, em vigor, a ordem de não retornar a Província gaúcha.
Ainda nesse ano, foi recebido como membro efetivo do Instituto histórico e
Geográfico do Brasil tendo sido o tesoureiro por 20 anos.
Considerado
o primeiro gramático no Brasil, o nosso cronista fundou, em 1841,em sua
residência, o Liceu Minerva, à Rua São José, 56, tendo sido o diretor até o ano
de 1856.
Em
1860, no Rio de Janeiro, Coruja se tornou presidente da Cia. de Seguros Feliz
Lembrança, da qual foi o fundador. Ele também fundou a Sociedade Imperial
Amante da Ilustração e a centenária Sociedade Sul-Rio-Grandense. Membro efetivo
do Supremo Conselho do Grande Oriente do Brasil, ele recebeu, em 1866, a
condecoração de Cavaleiro da Ordem da Rosa.
Os
fracassos financeiros
Em
1879, a empresa Caixa Depositária Sociedade Glória do Lavradio, fundada por
Coruja, faliu e dessa crise ele não se recuperaria mais, pois teve que entregar
tudo o que tinha de bens aos credores. Já em 1872, havia falido uma casa
bancária também fundada, em sociedade, por ele. Dizem que o mestre Coruja,
bastante envergonhado, com os acontecimentos, deixou de circular durante o dia
e no Carnaval costumava visitar os parentes mascarado. A ruína, do seu primeiro
empreendimento, é atribuída à má índole do seu sócio Costa Guimarães.
Quase
meio século longe de sua amada Porto Alegre, não impediu que o nosso cronista
escrevesse sobre a cidade, onde viveu a sua infância e juventude. O transcorrer
dos anos foram dramáticos para Coruja, pois, em 07 de janeiro de 1880, faleceu
a sua esposa Catarina e, após seis anos, o filho adotivo, o Comendador Coruja,
com o qual foi morar após sua irreversível falência econômica.
Suas
crônicas
Dentro
deste quadro de dores e perdas financeiras e afetivas, Coruja passou a escrever
as crônicas, que o consagraram, pela sua importância histórica, como “O
primeiro cronista gaúcho”. Os registros de Coruja, acerca da nossa Capital,
principalmente, após o período da Revolução farroupilha (1835-1845), são fontes
imprescindíveis para o pesquisador que se debruçar sobre a história da Nossa
Senhora Madre de Deus de Porto Alegre.
A
partir de 1880, Antônio Álvares Coruja escreveu sua famosa série de crônicas
sobre Porto Alegre. “As Antigualhas, reminiscências de Porto Alegre” foram
inicialmente publicadas, como folheto, em 1881, pela Tipografia do Jornal do
Comércio (1864-1911). Entre os anos de 1883 a 1889, suas crônicas foram
publicadas na “Gazeta de Porto Alegre” (1879-1884). O importante Anuário da
Província do Rio Grande do Sul publicou também seus trabalhos no período de
1885 a 1889.
Já
no século XX, as crônicas do nosso escritor Coruja, em 1947, aparecem na
“Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul” do número
105 a 108. Em 1983, foram publicadas pela Companhia de Seguros Gerais com notas
explicativas graças à excelente pesquisa do historiador Sérgio da Costa Franco.
Outra série dessas crônicas foi publicada pela Secretaria Municipal de
Cultura, sob a coordenação de Luís Augusto Fischer, denominada de Série Coruja.
Os
aspectos da antiga cidade, como seus costumes, ruas e personagens, estão
presentes em suas crônicas intituladas: Reminiscências de Porto Alegre,
Antigualhas, Origem dos nomes de algumas famílias conhecidas, As alcunhas de
Porto Alegre e outras alcunhas e As ruas de Porto Alegre, entre outras.
A
produção intelectual do mestre Coruja foi intensa, a exemplo das obras:
“Compêndio da Gramática Nacional” (1835), que teve várias reedições; “Manual
dos Estudos de Latim” (1838), “Compêndio de Ortografia da Língua Nacional”
(1848), “Aritmética para Meninos” (1850). “Manual de Ortografia da Língua
Nacional” (1850), “Lições de História do Brasil” (1855), “Coleção de frases e
vocábulos usados na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul”
(Londres,1856), que foi publicada cinco vezes, inclusive, na famosa
revista gaúcha “Província de São Pedro” nos números 7-10 de 1946 e por último
em “Vocabulário Sul-Rio-Grandense” publicado, em 1964, pela Editora Globo.
Os
derradeiros meses de existência do nosso primeiro cronista foram bastante
difíceis com a sombra da miséria a acompanhá-lo. Coruja teve que aceitar abrigo
em república de estudantes e até morar em cortiço. Assim faleceu o ilustre
professor e pedagogo de mais de uma geração de brasileiros. Antônio Álvares
Pereira Coruja deixou este mundo, às 17 horas, no dia 04 de agosto de 1889, num
modesto quarto da Rua Conde d’Eu, atual Frei Caneca, nº 108, no Rio de Janeiro.
Seu atestado de óbito registra como causa mortis “miséria orgânica”. Devido à
sua extensa contribuição cultural, o mestre Coruja mereceu um extenso
necrológio do Anuário da Província do Rio Grande do Sul de 1890.
A
figura do mestre Coruja, embora a grandeza do seu trabalho, não é devidamente
reconhecida no resto do Brasil. Em nosso Estado, de acordo com a Ata de 27 de
junho de 1907, a Câmara Municipal de Porto Alegre deu o nome de Comendador
Coruja a uma rua no bairro Floresta.
A
Caixa Econômica Federal, criada, em 04 de novembro de 1861, com o nome de Caixa
Econômica e Monte de Socorro, lembrou-se do nome do mestre Coruja, que foi o
seu primeiro depositante com a quantia de dez mil réis. Nas comemorações do
centenário desta instituição, por ordem de sua diretoria, Coruja foi
homenageado, quando se concedeu o prêmio de Cr$ 50, 000,00 à menina Teresinha
Gazola de Barros. Esta menina, que, á época, tinha seis meses, era filha do
Capitão Edwy dos Santos Pessoa de Barros, neto do Comendador Coruja Júnior. Já
a Caixa Econômica Federal de Porto Alegre, em suas dependências, possui um
quadro emoldurado com a fotografia do nosso primeiro cronista e gramático,
evidenciando a importância desse gaúcho.
O
nome do porto-alegrense Antônio Álvares Pereira Coruja, devido à grandeza de
seu trabalho, é motivo de orgulho para todos os brasileiros, que seguem na luta
por uma educação de qualidade e inclusiva, desenvolvendo valores que formem
cidadãos conscientes e responsáveis diante dos desafios de construirem uma
sociedade mais fraterna e menos desigual e excludente. De origem humilde,
Coruja descobriu, desde cedo, o valor da educação, como ferramenta, que liberta
o ser humano dos grilhões da ignorância e da exploração do homem pelo homem.
*Pesquisador
e coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da
Costa
Imagens
1-
Imagem de Antônio Álvares Pereira Coruja
2-
Capa do livro " Antigualhas, Reminiscências de Porto Alegre"
3-
Rua da Praia ou Rua dos Andradas em 1860 / A mais tradicional via do centro de
Porto Alegre
4-
Compêndio de Ortografia da Língua Nacional de 1848
Bibliografia
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1956.
CORUJA,
Antônio Álvares Pereira. Antigualhas, Reminiscências de Porto Alegre.
Porto
Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983.
COSTA
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Comunicação Social Hipólito José da Costa – 30 anos”. Porto Alegre: CORAG, 2004.
FERREIRA
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MARTINS,
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Marcia Eckert; COSTA LEITE, Carlos Roberto Saraiva da. Jornais raros do
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Sandra Jatahy. Memória Porto Alegre: espaços e vivências, Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1999.
PORTO
ALEGRE, Aquiles. Homens ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, s/d.
PORTO,
Aurélio. Professor A. A. Pereira Coruja. Rio de Janeiro: Boletim da Sociedade.
Felipe de Oliveira, nº 08, jul / 1944.
SPALDING,
Walter. Cronistas da cidade. Porto Alegre: Boletim Municipal, Vol. V, Ano IV,
nº 10, jan–abr /1940.
2 comentários:
No Texto "Coruja: o primeiro cronista gaúcho", quando cito o jornal do maçom Pedro José de Almeida - o Pedro Boticário -, com o o título de "Pau Bate ", retifico: o nome é "Idade de Pau" (1833-1835). O autor.
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