quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Portugal. MORRER DE FRIO EM 2016


Pedro Ivo Carvalho* – Jornal de Notícias, opinião

Não raramente conseguimos projetar nos infortúnios pessoais os defeitos daconjuntura. Em particular porque há conjunturas que só adquirem dimensão quando são humanizadas. A história triste de Manuel Escobar é paradigmática de como esta relação entre números e pessoas é manifestamente desvantajosa para as segundas. Ainda para mais quando esbarra numa muralha de estereótipos: interioridade, solidão, miséria, burocracia do Estado.

Sim, é possível: ainda há, em Portugal, quem morra sozinho e de frio. Rodeado de lixo. No Dia Internacional dos Direitos Humanos. Manuel Escobar tinha 68 anos. Foi notícia no JN em novembro, aquando de um apelo desesperado por um lugar de acolhimento num lar. Voltou a ser notícia cerca de um mês depois, quando foi encontrado pela GNR em casa, cheio de hematomas, em condições degradantes e gelado. Acabaria por morrer com sinais de hipotermia no Hospital de Mirandela. A lição, a haver alguma lição a reter, é a de que todos sabiam que isto podia acontecer, mas ninguém foi capaz de evitar que isto acontecesse. É uma lição em forma de novelo: tão enrolada que dificilmente se desatará o nó da responsabilidade.

Há anos que somos confrontados com o envelhecimento do país. Com o abandono transversal a tantas almas e geografias. Nas cidades e nas aldeias, os velhos adquirem a condição de corpos lentos e carentes. Estorvos. É, por isso, mais fácil esquecermo-nos que existem."Acabaram por desistir dele por ser uma pessoa difícil", explica Berta Nunes, presidente da Câmara de Alfândega da Fé. Manuel Escobar viveu e morreu no coração de uma tempestade perfeita.

Dono de uma personalidade conflituosa, pediu, durante meses, para que o institucionalizassem num lar. Assim aconteceu. A Segurança Social providenciou-lhe um lugar em Mirandela. De onde terá saído por vontade própria. Foi para casa. Recusou uma família de acolhimento. A de sangue estava longe: dois filhos emigrados e desempregados. Apenas um sobrinho mais perto. Não suficientemente.

Durante meses, assistentes sociais da Câmara de Alfândega da Fé procuraram uma solução junto da Segurança Social. "Não havia família de acolhimento nem vaga social para sexo masculino no distrito de Bragança", foi a resposta de protocolo. Nos dias de frio, Manuel dormia no quartel dos bombeiros. Porque lhe tinham cortado a luz em casa. Uma entidade parceira da Segurança Social ficou responsável por visitas diárias, que contemplavam "alimentação, higiene habitacional e tratamento de roupa". Mas as últimas imagens da casa onde ficou esquecido não coincidem com nenhum compromisso de proximidade.

Manuel estava sinalizado pela família, pelos vizinhos, pela GNR e pela Segurança Social. Mas morreu sozinho, de frio, num país que desistiu dele por não querer ver os sinais. Em 2016.

* Editor executivo adjunto

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