Pedro
Ivo Carvalho* – Jornal de Notícias, opinião
Não
raramente conseguimos projetar nos infortúnios pessoais os defeitos daconjuntura.
Em particular porque há conjunturas que só adquirem dimensão quando são
humanizadas. A história triste de Manuel Escobar é paradigmática de como esta
relação entre números e pessoas é manifestamente desvantajosa para as segundas.
Ainda para mais quando esbarra numa muralha de estereótipos: interioridade,
solidão, miséria, burocracia do Estado.
Sim,
é possível: ainda há, em Portugal, quem morra sozinho e de frio. Rodeado de
lixo. No Dia Internacional dos Direitos Humanos. Manuel Escobar tinha 68 anos.
Foi notícia no JN em novembro, aquando de um apelo desesperado por um lugar de
acolhimento num lar. Voltou a ser notícia cerca de um mês depois, quando foi
encontrado pela GNR em casa, cheio de hematomas, em condições degradantes e
gelado. Acabaria por morrer com sinais de hipotermia no Hospital de Mirandela.
A lição, a haver alguma lição a reter, é a de que todos sabiam que isto podia
acontecer, mas ninguém foi capaz de evitar que isto acontecesse. É uma lição em
forma de novelo: tão enrolada que dificilmente se desatará o nó da
responsabilidade.
Há
anos que somos confrontados com o envelhecimento do país. Com o abandono
transversal a tantas almas e geografias. Nas cidades e nas aldeias, os velhos
adquirem a condição de corpos lentos e carentes. Estorvos. É, por isso, mais
fácil esquecermo-nos que existem."Acabaram por desistir dele por ser uma
pessoa difícil", explica Berta Nunes, presidente da Câmara de Alfândega da
Fé. Manuel Escobar viveu e morreu no coração de uma tempestade perfeita.
Dono
de uma personalidade conflituosa, pediu, durante meses, para que o
institucionalizassem num lar. Assim aconteceu. A Segurança Social
providenciou-lhe um lugar em Mirandela. De onde terá saído por vontade própria.
Foi para casa. Recusou uma família de acolhimento. A de sangue estava longe:
dois filhos emigrados e desempregados. Apenas um sobrinho mais perto. Não
suficientemente.
Durante
meses, assistentes sociais da Câmara de Alfândega da Fé procuraram uma solução
junto da Segurança Social. "Não havia família de acolhimento nem vaga
social para sexo masculino no distrito de Bragança", foi a resposta de
protocolo. Nos dias de frio, Manuel dormia no quartel dos bombeiros. Porque lhe
tinham cortado a luz em casa. Uma entidade parceira da Segurança Social ficou
responsável por visitas diárias, que contemplavam "alimentação, higiene
habitacional e tratamento de roupa". Mas as últimas imagens da casa onde
ficou esquecido não coincidem com nenhum compromisso de proximidade.
Manuel
estava sinalizado pela família, pelos vizinhos, pela GNR e pela Segurança
Social. Mas morreu sozinho, de frio, num país que desistiu dele por não querer
ver os sinais. Em 2016.
*
Editor executivo adjunto
Sem comentários:
Enviar um comentário