Ao
contrário do que acredita, o presidente empossado hoje dirige um
país parasitário, incapaz de qualquer ato relevante sem articulação
com a China
Yanis
Varoufakis - Outras Palavras - Tradução Manuela Beloni
Se
Donald Trump entende de alguma coisa, é o valor da falência e da reciclagem
financeira. Ele conhece os caminhos do sucesso via remissões e amortização da
dívida e da criação de ativos a partir de passivos. Mas será que ele realmente
compreende a diferença profunda entre a dívida de países desenvolvedores
dívidas e a dívida de uma superpotência? Ele realmente entende que a dívida
privada da China é como um barril de pólvora sob a economia global? Muito
depende do conhecimento dele sobre o assunto.
Trump
foi eleito em uma onda de descontentamento com o establishment e com
a má gestão pré e pós o colapso de 2008 e sua recessão. Sua promessa sobre
estímulo à economia doméstica e políticas protecionistas, que visam trazer de
volta trabalhos industriais, o levou à Casa Branca. Mas o que ele pode trazer
depende da compreensão que ele tem do papel utilizado nos EUA dos chamados
“bons e velhos tempos”, do papel que ele pode desempenhar agora e da
importância da China dentro deste contexto.
Antes
de 1971, a hegemonia global norte-americana era baseada em um superávit dos EUA
em relação ao mundo capitalista, que foram estabilizados através da reciclagem
de parte do seu excedente destinado à Europa e o Japão. Isto serviu como base
para uma estabilidade econômica e para um rápido declínio da desigualdade em
todos os lugares. Mas, como os EUA escorregaram para uma posição deficitária,
aquele sistema global já não poderia mais funcionar, dando origem a ascensão do
que tenho chamado de a fase do Minotauro Global.
De
acordo com a mitologia antiga, o Rei Minos, de Creta, deve a sua hegemonia ao
Minotauro, o trágico monstro aprisionado no palácio de Minos. A intensa solidão
do Minotauro era comparada apenas ao medo que inspirava em terras distantes e
selvagens porque seu apetite voraz só poderia ser saciado por carne humana –
garantida pelo rei Minos. Assim, um navio cheio de jovens era vendido a Creta
por Atenas, levando os tributos humanos para a besta. Este árduo ritual era
essencial para preservar a Pax Cretana e a hegemonia do rei.
Depois
de 1971, podemos dizer que a hegemonia norte-americana cresceu de forma análoga
a este processo. O Minotauro nada mais é do que o déficit comercial dos EUA,
que tem consumiu quantidades crescentes de exportações. O crescente e rápido
déficit norte-americano foi financiado por bilhões de dólares, vindos de
receitas líquidas diárias diretas para Wall Street, pelos empresários
estrangeiros situados em lugares distantes; uma forma de tributo moderno do
Minotauro Global.
Quanto
mais o déficit cresceu, maior era o apetite pelo capital europeu e asiático. O
que fez o Minotauro verdadeiramente global foi sua função: ele ajudou a
reciclar o capital financeiro (lucro, poupança e excedentes). O que manteve as
brilhantes fábricas alemãs ocupadas e devorou também tudo o que foi sendo
produzido no Japão — e posteriormente, na China. Mas ao mesmo tempo Wall Street
aprendeu como potencializar este fluxo de capital através de exóticos
instrumentos financeiros. Foi dada assim a largada para a explosão financeira,
inundando o mundo em dívidas.
No
outono de 2008, o Minotauro foi mortalmente ferido após confrontar-se com o
muro da dívida privada, sub-produto de seu apetite. Enquanto o Banco Central
(Fed) e o Tesouro desafogavam o mercado dos EUA (às custas dos norte-americanos
mais pobres deixados de lado a partir dos anos 1970), nada seria o mesmo: a
capacidade de Wall Street em continuar “fechando” o circuito de reciclagem
global desapareceu. O setor bancário norte-americano deixou de aproveitar os
déficits comerciais e orçamentais dos EUA para financiar a demanda interna e
sustentar o resto das exportações líquidas mundiais. Daquele momento em diante
a recuperação da economia mundial seria praticamente impossível.
Depois
do ferimento mortal do Minotauro, os EUA deveriam não só agradecer ao Fed e ao
Tesouro por ajudarem a evitar uma nova Grande Depressão. Os EUA foram também
salvos pelo Dragão: o governo chinês aumentou os investimentos nacionais sem
precedentes a fim de preencher a lacuna criada pela contração de gastos nos EUA
e na Europa. Por muitos anos a China permitiu a criação de créditos pelos seus
bancos formais, e os bancos das sombras (“shadow banks”), permitindo também se
beneficiar do dinheiro fácil do Fed, pegando empréstimos em dólar. De maneira
resumida, o Dragão entrou em cena para reequilibrar as contas do Ocidente
quando o Minotauro já não podia mais.
Os
líderes chineses sabiam o que estavam fazendo. Estavam criando uma bolha
insustentável de investimentos para dar uma chance de ação conjunta à Europa e
EUA. Infelizmente nenhum dos dois o fizeram: os EUA devido ao impasse entre o
presidente Barack Obama e o congresso controlado pelos Republicanos, e a Europa
por razões dolorosas demais para serem colocadas aqui novamente. Quando a
tempestade atingiu o ano de 2015, com as taxas de juros norte-americanas
subindo e os preços das commodities caindo, a China teve que
impulsionar, mais uma vez, a criação de crédito.
Hoje,
o boom do crédito da China é sustentado por garantias quase tão ruins
quanto àquelas em que a Bear Stearns, Lehman Brothers, e os demais bancos
estavam confiando em 2007. Além disso, como o renminbi chinês está extremamente
sobrevalorizado, as corporações estão pegando dólares emprestados para pagar
antecipadamente sua dívida lastreadas em dólares, pressionando uma queda na
taxa de câmbio.
O
plano de Trump para ajudar os que foram deixados de lado desde a década
de 1970, na medida do possível, parece se desdobrar em dois eixos: um estímulo
doméstico e uma negociação bilateral sob a ameaça de tributos aduaneiros e
contingentes. Mas se ele jogar duro com a China, empurrando os chineses para
reavaliar o renminbi através de ameaça de imposição de impostos aduaneiros,
pode ser que acabe estourando a bolha da dívida privada da China — e
desencadeando um dilúvio de consequências desagradáveis que superaria qualquer estímulo doméstico
que introduzisse.
Neste
caso, os gastos de Trump com infraestrutura iriam se transformar mais em um
benefício às corporações, implicando um efeito ínfimo. Isso, por sua vez, iria
preparar o cenário para uma futura política austeridade, e também um pânico
sobre o avanço das taxas de juros norte-americanas e o estouro do orçamento
federal, pressionando os atuais os compromissos governamentais não financiados
(tal qual Segurança Social).
Para
que a estratégia econômica a médio prazo de Trump tenha alguma chance de
sucesso, ele precisa compreender que não é a dívida pública norte-americana que
deve ser reestruturada, mas sim a dívida privada chinesa. Caso contrário os
rendimentos do Tesouro dos EUA poderiam se elevar bruscamente, enfraquecendo
severamente a sustentabilidade da dívida.
Da
mesma forma, Trump deve se dar conta de que ele não pode fazer a “América
grande novamente” ressuscitando o estímulo sem financiamento de Ronald Regan.
Este truque funcionou quando o Minotauro estava preso e bem alimentado, mas não
irá funcionar quando o Dragão acabar com seu fogo. Se ao invés disso, Trump
realmente quiser equilibrar a economia norte-americana, provendo o crescimento
e beneficiando aqueles esquecidos aos quais ele prometeu, ele deve trazer de
volta Franklin D. Roosevelt e seguir a reforma keynesiana de Bretton Woods.
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