Apoio
dos mais ricos ao deputado fascista revela como estão presentes, entre as elites,
ideias de opressão dos pobres, submissão ao estrangeiro branco e predação da
natureza
Joaquim
Alves da Silva Jr | Outras Palavras | Imagem: Jean-Baptiste Debret
“…
só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor.
Ele é quem nos fala de suas façanhas.
É ele também, quem relata o que decidiu aos índios e negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas.
O que a documentação copiosíssima nos conta
é a versão do dominador.”
Darcy Ribeiro
A
ideia desta breve reflexão é remontar pontos históricos da formação do Brasil
enquanto Estado e relacioná-los ao recente contexto de intensificação, por um
lado, da violência direcionada às diferentes comunidades marginalizadas, e, por
outro, ao paradigma de desenvolvimento extrativo e destruidor da
biodiversidade. Esses componentes são pilares estruturais de um sistema de
dominação que se consolidou durante período colonial, sendo galvanizado
institucional e culturalmente por meio da constante reestruturação motivada
ideologicamente pelos discursos que lhe correspondem ao longo do tempo. São
três os casos recentes a serem comentados: a condenação a 11 anos de prisão
imputada ao Rafael Braga, a palestra do deputado federal Jair Bolsonaro na
Hebraica do Rio de Janeiro e a intensificação do desmatamento em paralelo ao
aumento do genocídio na Amazônia. Em primeiro lugar, retornarei ao quadro
histórico do século XIX para entender a inserção do Brasil nas relações
comerciais e políticas do Atlântico, bem como a moldagem das influências
externas no desenvolvimento do contexto interno do país.
A
hegemonia inglesa no Atlântico, o tráfico de escravos e a escravidão
Ao
final do século XVIII, há uma intensa remodelação nas regras do jogo
imperialista concentrando a disputa entre a Inglaterra e a França, confrontando
duas perspectivas: a livre cambista e a colonial expansionistai. Em paralelo, o continente americano
seria palco de um dos fatos mais extraordinários da história ao lado da
independência das Treze Colônias inglesas e do movimento bolivarianista de
independência das colônias espanholas: a revolta escrava da então colônia
caribenha francesa de Saint-Domingues, a mais importante produtora de café e
açúcar da época, resultando na Revolução do Haiti em 1791ii.
Esse
momento catalisou inúmeros movimentos abolicionistas na América Latina, em
paralelo à reação virulenta das elites coloniais coagindo revoltas de forma
violenta. Ademais, surgiu um novo cenário de dominação política e econômica do
Novo Mundo, concentrando-se na recém-independente República dos Estados Unidos
da América e no Império britânico. Enquanto o Caribe seria continuadamente
dominado no âmbito comercial pelos norte-americanos, os britânicos
fortaleceriam seus laços com as Américas espanhola e portuguesa, abrindo também
um lento caminho para a colonização da África e da Ásia. Na América Latina, os
processos de independência foram marcados por três características principais:
o controle das elites regionais sobre os novos Estados; a reorientação à expansão
dos sistemas de monoculturas tropicais em proveito à crise de oferta do Haiti
e; o aumento do tráfico escravista com base no plantation e outras
matérias primas fundamentais ao impulso da Revolução Industrialiii.
O
Brasil, a era da liberdade e o imperialismo escravista
A
problemática da escravidão e do tráfico de povos africanos no início do século
XIX era algo teoricamente contrário aos preceitos liberais, o que levou ao
surgimento de movimentos abolicionistas e acordos internacionais nas metrópoles
sob a liderança britânica. No entanto, a distinção entre tráfico de
escravos e o sistema escravocrata nos esclarece os reais
caminhos da “era da liberdade”. A pesar de os britânicos verem o fim do tráfico
com bons olhos, tomar uma atitude mais enérgica em relação ao escravismo não
era um consenso entre as elites, divididas entre a detentora das colônias e a
pequena, mas crescente, elite industrialiv.
Mesmo
a linear divisão entre os abolicionistas do norte e escravocratas do sul pode
ser demarcada com menor linearidade com a entrada dos Estados Unidos como
potencia imperialista: a dependência de escravos para o avanço ao oeste, o que
levou a um acordo entre abolicionistas e escravagistas no início do século XIXv. Neste mesmo período, a república
americana se transformaria na segunda potência marítima no mundo. Tecendo laços
com Cuba, daria continuidade ao “ótimo negócio” tráfico de humanos, tanto para
os escravistas do sul como os abolicionistas do norte. Os últimos, produtores
de navios, controlariam o comércio atlântico do continente americanovi.
A
colônia brasileira da época depara-se com a crise da cana-de-açúcar em vista da
crescente competição com outras colônias, além da necessidade de garantir de
suas fronteiras territoriais. Com o apoio britânico, ocorre transferência da
Coroa portuguesa em 1808, abandonando a metrópole a Napoleão. Já o processo de
independência em 1822 marca o início da história institucional brasileiravii. No período subsequente, até metade
do século XIX, o alinhamento Brasil-Inglaterra foi continuamente enfraquecido,
em muito pelo crescente combate ao tráfico escravista por parte dos ingleses, a
exemplo da Convenção Antitráfico de 1826, assinada entre britânicos e
portugueses, ou na influência na promulgação da Lei Feijó Barbacena de 1831,
que proibia a escravidão de pretos aportados no império a partir daquela dataviii.
Por
sua vez, o crescente império norteamericano não sofria até então a fiscalização
britânica. Já o Brasil fortaleceria o comércio escravista centrado no baronato.
Somente na primeira metade do século XIX, o Brasil recebeu aproximadamente 40%
de todo o contingente de cerca de cinco milhões de escravos vindos da África
durante toda a Históriaix. Há uma crescente insatisfação das
elites regionais com a ingerência britânica nas tomadas de decisões relativas à
restrição do tráfico escravista. A tensão diplomática se materializou com o
aumento de impostos de importação e medidas protecionistas pelo lado do império
(Tarifa Alves Branco, de 1844) e a Inglaterra outorgando, de forma unilateral e
em caráter internacional, o comércio escravista como ato de pirataria (Lei Bill
Aberdeen, de 1845)x.
Esse
momento refletiu nas disputas entre a elite escravagista e o império,
defensoras de perspectivas teoricamente díspares: a manutenção do sistema
escravocrata e o liberalismo. Contudo, o controle cada vez maior dos canais
parlamentares garantiu a promulgação de inúmeras legislações favoráveis às
elites senhoriais e direcionadas à manutenção da escravidão. Destaca-se a Lei
de Terras de 1850, fundamental para instituir a propriedade privada sem
qualquer tipo de alteração na estrutura fundiária ou o fomento aos pequenos
lavradores, posseiros ou escravos libertosxi. Mesmo a Lei Eusébio de Queirós que
proibiu o comércio escravista (curiosamente publicada doze dias antes da
promulgação da Lei de Terras), foi elaborada cuidadosamente para tirar as
responsabilidades da elite rural em relação aos escravosxii.
Um
dos casos de apoio mútuo entre a monarquia e a elite escravocrata ocorreu no
episódio da tentativa dos EUA importarem seus escravos para a Amazôniaxiii. A ideia girava em torno de “uma
necessidade absoluta de que os negros libertos [fossem] transportados para fora
da jurisdição dos Estados Unidos, onde jamais poderão desfrutar de igualdade
política ou socialxiv”. A proposta lastreava a pretensão
de dominação territorial norteamericana que, contudo, acabou sendo vetada por
Dom Pedro II. Havia a necessidade de proteger o ciclo econômico da borracha, em
franca expansãoxv. Ainda assim, os EUA realizariam
uma contínua campanha a favor do livre comércio na maior bacia hidrográfica do
mundo.
Uma
das questões mais importante da época girava em torno da ideia de “raças” e as
implicações nacionalistas inspiradas pelas abordagens norteamericanas e
europeias de eugenia. Em paralelo à preocupação da elite rural com as
crescentes revoltas escravistasxvi, a questão racial foi o pano de
fundo ao então embrionário meio intelectual brasileiro. As nascentes
instituições educacionais da época eram palco privilegiado deste debate, cujo
objetivo principal era o estabelecimento de critérios diferenciados de
cidadaniaxvii. Isso se traduz na abordagem da
incapacidade dos negros e mestiços ao trabalho livre, o que serviu como uma das
justificativas à imigração europeia.
Enquanto
a abolição era de fato promulgada em 13 de maio de 1888, o golpe
senhorial-militar que marcaria o início da República Velha seria dado um ano
depois. O caminho do modo de produção capitalista e de uma legislação
formalmente liberal, instituídas via políticas de colonização e distribuição de
terras às famílias europeias, conviveu com o trabalho escravo ou no máximo
livre, especialmente nas zonas cafeeirasxviii.
A
dupla face predatória do sistema escravista de plantation
A
exploração da força de trabalho escravista está intrinsecamente relacionada com
a forma de manejo dos recursos naturais. Entre o início da colonização até
final do século XVIII, o Brasil participava do sistema mercantil extraindo
recursos florestais e minerais. Havia uma agropecuária de caráter
diversificado, visando o atendimento do mercado interno com as crescentes
incursões para as Minas Gerais, bem como a cana-de-açúcar no nordeste e sudeste
para exportação. Contudo, o sistema agrícola empreendido foi rapidamente
sobrepujado pelas colônias inglesas, francesas e holandesas, que desenvolviam
técnicas de melhorias partindo das experiências e aprendizados na África e Ásiaxix.
Com
uma lógica arcaica baseada na abertura de áreas de plantio por meio do fogo, da
usurpação das terras de indígenas e de pequenos posseiros, o sistema(?)
agropecuário era improdutivo e predatório. A extração madeireira completava o
ciclo exploratório, pois esta não somente fornecia lenha doméstica e para a mineração,
como também para o avanço da grande lavoura por meio das suas cinzas. Nenhuma
importância era dada à pesquisa da biodiversidade, ao conhecimento ecológico
local, ou mesmo à utilização potencial desses recursos.
A
vinda da Coroa ao Brasil no início do século XIX traz renovações liberais e
científicas. Ligada a império britânico, a metrópole tentava superar o
paradigma mercantil de exploração irracional da biodiversidade. Há o exemplo do
surgimento de naturalistas brasileiros tais como José Bonifácio de Andrada e
Silva, assim como a construção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, também
fundado em 1808, que abriu caminho para ações de conservação da Mata Atlântica.
Entretanto, como argumenta o historiador Warren Deanxx, as elites rurais do centro sul,
especialmente as fluminenses, instigadas pelo ciclo cafeeiro, estabeleceriam
uma estratégia calcada em quatro movimentos.
Em
primeiro lugar, a elite forçaria manutenção da escravidão até as últimas
possibilidades: a Coroa portuguesa tinha a intenção de extinguir o tráfico de
escravos, fato este que já ocorria em outras colônias conjuntamente à crescente
pressão britânica. Por outro lado, a expansão do café e a intensificação do
tráfico escravista seguiram. Havia resistência ao uso de técnicas para
melhorias produtivas, causando não somente a sobre-exploração do trabalho
escravo como a expansão da grande lavoura sobre os ecossistemasxxi. Adicionando o fato de que foi a
escravidão, e não o café, a “atividade econômica” mais rentável da época para
baronato rural;
Em
segundo lugar, as elites acabariam com os obstáculos ao monopólio privado
sobre terras públicas: ao final do século XVIII houve uma tentativa de maior
controle sobre as terras da Coroa em relação ao regime de sesmarias, nada mais
que um sistema de doação de terras públicas às elites rurais. Neste período
surgiu uma corrente de pensadores reformistas que defendiam a necessidade de
fixação dos limites das propriedades, parcelamento para pequenos posseiros e
escravos libertos, reivindicação de terras abandonadas e a promulgação de
políticas de conservação mais sólidas. Seria hoje o que chamamos de reforma
agrária e, obviamente, nunca passaria do campo das ideias da época, enquanto a
realidade mostrava um aumento sem precedentes de aberturas de terras e
intensificação do tráfico escravista para nutrir o ciclo cafeeiro;
Em
terceiro, temos a remoção de indígenas das terras e recrutamento forçado
para o trabalho: aqui não há conflitos entre elites rurais, Coroa ou mesmo as
correntes liberais da época. A escravidão de povos africanos não significava
alívio algum aos indígenas, forçados às constantes fugas pelo avanço do plantation.
A lógica da assimilação ou extinção seguia: capturados para trabalhos forçados,
crianças vendidas, mulheres prostituídas, fixação das ‘aldeias’, algo semelhante
ao processo de genocídio indígena durante a conquista do oeste nos EUAxxii. A elite rural organizava milícias
caçadoras de indígenas, comumente chamados de bugreiros, com atuação em São
Pauloxxiii e em Santa Catarinaxxiv. Como se apreende de uma frase dita
na época: “A terra encharcada de sangue é terra boaxxv”.
O
quarto ponto foi enfraquecer a legislação florestal: no período colonial,
a Coroa proibia o corte de pau-brasil e de madeira de lei, bem como tinha o
monopólio sobre a extração e venda dos mesmosxxvi. Ao início do século XIX, a
extração madeireira, seja pela sua retirada em propriedades privadas, seja na
interlocução com comunidades locais e indígenas, alimentava a indústria naval e
as crescentes serrarias. Paradoxalmente, a dependência em relação à Europa era
espantosa a ponto de o Rio de Janeiro importar mogno da Jamaica mais barato que
os preços praticados das madeiras de leis locais, estas amplamente subsidiadas
aos europeus. Outro interesse de exportação eram os animais e flores raras. A
caça, tanto para alimentação dos posseiros como atividade de lazer das classes
médias da época, extinguia rapidamente a fauna local, especialmente em áreas
próximas às periferias urbanas.
O
período em questão iniciaria a consolidação da unidade nacional marcada pela
desigualdade estrutural do regime de acesso a terra, em adição à pratica
predatória que destruiu boa parte da Mata Atlântica, não sendo nada além de um
prelúdio ao que ocorreria com outros ecossistemas brasileiros. Após a proibição
do tráfico de escravos, houve a migração de trabalhadores livres para o sudeste
e para a região amazônica, esta última incentivada pelo ciclo da borracha. Já a
região sul estabeleceria um regime diferenciado, em vistas da colonização de
povoamento e da sua crescente importância regional como produtor de alimentos e
de madeira para a nascente indústria paulista. A política de distribuição de
terras em lotes familiares para os colonos europeus foi o pilar desta
diferenciação estrutural no sul. Não que a região em questão não tenha se
aproveitado do trabalho escravoxxvii, ou mesmo que não tenha destruído
suas florestas de araucáriasxxviii,
pelo contrário.
A
questão atual é a mesma de sempre…
A
evolução dos dois últimos séculos para os dias atuais evidencia um flagrante
continuísmo do sistema desigual e predatório desenvolvido no Brasil, tanto na
sua dimensão social como ecológica. Não faltam fatos históricos desta
continuidade, tanto na repressão às periferias urbanas como no meio rural. Ao
exemplo do avanço das commodities para o centro-oeste e Amazônia sob
o mesmo modelo predatório e violento ocorrido na Mata Atlântica no século
retrasado. O crime ambiental de Mariana completa um ano e meio sem qualquer
solução. Acompanhamos a entrega dos recursos naturais e minerais, especialmente
após a crise do sistema capitalista ocorrida em 2008, a exemplo da Petrobrásxxix. A tragédia farsesca vira piada
geopolítica, uma das empresas mais importantes do mundo desmantelada e entregue
aos mesmos imperialistas de sempr – estes sim, plenamente “aptos” a explorar
recursos encontrados por pesquisa e tecnologia brasileirasxxx.
Por
sua vez, a questão racial nunca foi enfrentada com o devido vigor;0, ao
contrário, piorou ao longo do tempo. A condenação ao Rafael Braga por tráfico
de drogas com provas que expõem duvida não é nada diferente do que já ocorria
em finais do século XIX como método de controle das comunidades marginalizadasxxxi, ou mesmo com o aumento da
violência nas periferias urbanas, em Terras Indígenas ou em comunidades
camponesas durante a ditadura civil-militar. As “provas” da condenação — 0,6 g
de maconha e 9,3 g de cocaína – estão sendo usadas neste momento por qualquer
pessoa das classes médias e altas no Brasil. É uma amostra do racismo
institucional instalado na era Vargas e mantido até os dias atuais sob o mito
da democracia racial. Quando não reproduzido, esse mito é simplesmente
enterrado do amplo debate intelectual e social crítico, com raríssimas exceçõesxxxii. Desta forma, compreende-se o
porquê de boa porção da sociedade brasileira não se chocar com Claudias sendo
arrastadas por camburões, torturas aos Amarildos, assassinatos de Marias
Eduardas em escolas, jovens indo comprar lanche e sendo alvejados por 111
tiros, cento e onze tiros, CENTO E ONZE TIROS. Todos sob o jugo da força
estatal de segurança. O círculo vicioso da violência institucional segue
instrumentalizada pela lógica do soldado e do apartheid socialxxxiii.
A
fala do deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) e capitão da Reserva
do Exército no Clube Hebraica do Rio foi chocante, o que não é novidade. O fato
a ressaltar é como a divulgação dessa palestra foi tratada como banalidade pela
maior parte das instituições e organizações, públicas ou privadas, civis ou
militares. Muitas dessas comportam pessoas pretas como quadros e não foram
capazes de emitir qualquer nota oficial em condenação. Nada de diferente da
ideia de sociedade que se moldou historicamente. Numa das pesquisas eleitorais
elaboradas pelo Datafolha, o deputado tem os melhores percentuais de intenções
de votos entre as camadas mais ricas e com maior escolaridadexxxiv. Outro ponto a ser ressaltado é o
local onde a palestra ocorreu, demonstrando que as contradições geradoras da
exclusão e da desigualdade ocorrem em todos os meios políticos e instituições,
incluindo as representantes dos povos que já sofreram com o preconceito e o
fascismo.
A
atenção dada pelo deputado à possibilidade de “uso econômico” de Terras
Indígenas ocorre em paralelo ao recente aumento da violência no campo, como
observado no Maranhão com a comunidade indígena Gamelaxxxv. Há o avanço contra a legislação
voltada ao licenciamento ambiental e à estrutura estatal de proteção à
biodiversidade, a exemplo das propostas de redução de unidades de conservação,
além da criminalização de antropólogos, indígenas e procuradores dos
Ministérios públicos com o relatório da CPI da Fundação Nacional do Índio
elaborada pela bancada ruralistaxxxvi. Recentemente, um edital foi
liberado pelo Ministério do Meio Ambiente para a contratação de empresas
privadas com o objetivo de gerar informações espaciais da Amazônia, trabalho
este já realizado pelo competente Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) há cinco décadasxxxvii.
Em adição, discute-se a aprovação do Projeto de Lei n0 6442/2016, com o
objetivo de reduzir a legislação trabalhista do meio ruralxxxviii para
um modelo típico de relações pré-capitalistas, com o pagamento parcial do
trabalho via alimentação, a possibilidade de venda das férias e dias descanso
ao empregador, o aumento das horas trabalhadas, a participação no prejuízo em
ano de colheita ruim, etc. Tal sistema se traduziria em termos concretos na
volta ao regime de escravidãoxxxix.
Mesmo
a finda fase progressista não passou de uma ilusão com enorme urgência de ser
superadaxl. A estruturação das políticas
sociais e de um Estado mais funcional foram pontos muito positivos,
especialmente às comunidades pretas que se viram pela primeira vez como parte
da agenda governamental no âmbito do governo federal. A implantação da Secretaria
Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e das cotas raciais para
concursos públicos são alguns exemplos virtuosos. Contudo, nada justifica um
governo pretensamente progressista aprovar a Lei Antiterrorismo. Sem falar na
miopia direcionada à dimensão ambiental. Relembremos da aprovação de um “Código
Florestal Ruralista” e da pouca atenção dada às reivindicações de movimentos
ambientalistas e de comunidades afetadas por grandes obras. Junte tal contexto
à ausência da formação política de base e temos a janela de oportunidade à
reação elitista, operacionalizada pela porção fascista da classe média, esta
acompanhada de elevada carga de ódio às minorias majoritárias, movimentos de
esquerda e comunidade LGBT. O resultado foi (mais um) golpe com relevantes
perdas das poucas conquistas populares e da insuficiente estrutura estatal que
se formara.
Porém,
o sistema político brasileiro é cindido na origem. Ora é puxado pelo populismo
no executivo, ora pelo parlamentarismo conservador elitista, este último com
apoio do judiciário e das forças armadas quando necessário. Mestre Celso
Furtado já nos alertava sobre a característica inata de um legislativo
que, controlado pelas oligarquias rurais desde a época colonial, impediria
quaisquer tipos de reformas de basexli. Aliás, todas as mudanças
institucionais importantes no país se deram por meios elitistas, sejam eles
políticos ou econômicos, incluindo a Constituição Federal de 1988xlii. Do outro lado do abismo, os
“mestiços” que batalham diuturnamente, os verdadeiros construtores desta nação
incompleta, são feitos de tolos pelas “meritocráticas” classes médias e altas
que os exploram sistematicamente. Ainda assim, esses batalhadores tentam vencer
todos os tipos de obstáculos, preconceitos, violências e assimetrias de acesso
às condições básicas de uma vida dignaxliii. Como bem afirma Jessé Souza, no
Brasil poucos são os heróis que superam esse enorme quadro de adversidades.
Já
o racismo é parte de um sistema maior de dominação e, seja nas antigas
metrópoles ou nas antigas colônias, todo país com tal herança é um país racistaxliv. Entretanto, no Brasil a questão
racial é uma construção social que permeia a sociedade em sua totalidade.
Dificilmente surgirão quaisquer perspectivas de mudança sem o amplo
reconhecimento desse problema. Só resta saber quando os campos ditos
progressistas conseguirão alcançar tal nível de autocrítica e humildade para
reconhecerem suas falhas históricas em relação ao tema. Em paralelo, a
destruição ambiental e o círculo vicioso do desenvolvimento-subdesenvolvimento
mostra que a sobre-exploração humana não está dissociada da sobre-exploração da
biodiversidade. Assim como não há separação entre o potencial controle social
com o controle territorial dos recursos naturais. Essa é a base para a lógica
de manutenção da complexidade ecológica ao mesmo tempo em que esta sirva às
necessidades humanas básicas. A questão ambiental perpassa as dimensões
socioculturais, ecológicas, político-institucionais e econômicas. Ou seja, a
questão ambiental é fundamentalmente uma problemática humana.
Não há evidência de mudança estrutural
positiva neste quadro, mas o caminho parece ser o trabalho no cotidianoxlv direcionado aos excluídos
deste debate, conjuntamente à construção crítica da política alçada ao plano
regional e internacional, visando à superação dos sistemas coloniais de sempre,
bem como suas variações pós-modernas. Talvez, a busca por um verdadeiro
universalismo passe pela relação recíproca em respeito às diversas expressões
culturaisxlvi e pelos princípios
ecossocialistasxlvii.
Notas
i# Camille Ramondeau, Laura V.
Lammerhit, Natasha P. Silva e Renata Postal. O tráfico de escravos e a
hegemonia sistêmica no século XIX. FRoNteiRA, Belo Horizonte, v. 10, n.
19, p. 7-23, 10 sem, 2011.
ii# Eric Williams. Capitalismo y
Esclavitud. Madrid: Traficantes de Sueños. 2011.
iii# Tâmis P. Parron. A política da
escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. 2015.
502p. Tese (Doutorado em História Social). FFLCH. USP. 2015.
iv# João D. A. C. L Carvalho. “Para
britânico se lamentar”? As relações entre Brasil e Inglaterra e a lei de 1831. Sociais
e Humanas, Santa Maria, v. 27, n. 3, set./dez. p. 9-17, 2014.
v# Camile Ramondeau et al., 2011, op.
cit.
vi# Tâmis Parron, 2015 op. cit.
vii# Lilia M. Schwarcz. O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
viii# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op.
cit.
ix# Maria Cristina C. Wissenbach. A
Escravidão na África e o Tráfico Atlântico de Escravos (Parte 2). 2015.
Disponível em: <https://goo.gl/cxcwMB>. Acesso em: 21 abr. 2017.
x# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op.
cit.
xi# Maicon C. Silva e Lauro F. Mattei. A
transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil: um processo de
acumulação primitiva em uma economia dependente. REBELA, v. 5, n. 2,
mai./ago. 2015.
xii# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op.
cit.
xiii# Carlos Haag. O dia em que o
Brasil disse NÃO aos Estados Unidos. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, n.
156, p. 80-85, fev. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/IxAp9i>. Acesso
em: 23 abr. 2017.
xiv# Camille Ramondeau et al., 2011, p. 19
xv# Celso Furtado. A Operação Nordeste.
In: Rosa F. de D’Aguiar, Celso Furtado: Essencial. São Paulo: Companhia
das Letras. 2013.
xvi# Alberto Costa e Silva. O Brasil, a
África e o Atlântico no século XIX. Estudo Avançados, São Paulo. v. 8, n.
24, p. 21-42, 1994.
xvii# Lilia M Schwarcz, 1993, op. cit.
xviii# Maicon C. Silva e Lauro F. Mattei,
2015, op. cit.
xix# Tâmis Parron, 2015, op. cit.
xx# Warren Dean. A ferro e fogo: a
história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das
Letras. 1996.
xxi# Rafael Marquese. Paisaje, esclavitud
y médio ambiente en la economia cafetalera brasileña: Vale do Paraíba, siglo
XIX. Asclepio, v. 67, n. 1, 2015.
xxii# Dee Brown. Enterrem meu coração
na curva do rio: a dramática história dos índios norte-americanos. L&PM.
2003.
xxiii# Warren Dean, 1996, op. cit.
xxiv# Caroline Macário. Caçadores de
índios. 2016. Diário Catarinense. Disponível em:
<https://goo.gl/SpHy9v>.
Acesso em: 20 abr. 2017.
xxv# Warren Dean, 1996, p. 255.
xxvi# Rodrigo Medeiros. Evolução das
tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente e
Sociedade, São Paulo, v. 9, n. 1, jan./jun. 2006.
xxvii# Rosane A. Rubert e Paulo S. Silva. O
acamponesamento como sinônimo de aquilombamento: o amálgama entre resistência
racial e resistência camponesa em comunidades rurais negras no Rio Grande do
Sul. In: Emília P. Godoi, Marilda A. Menezes e Rosa A. Marin. Diversidade
do campesinato: expressões e categorias. V. 1. São Paulo: Editora UNESP. 2009.
xxviii# Miguel Mundstock Xavier de Carvalho.
Os fatores do desmatamento da floresta com araucária: agropecuária, lenha e
indústria madeireira. Revista Esboços, Florianópolis, v. 18, n. 25, p.
32-52, ago. 2011.
xxix# Andrey Cordeiro Ferreira. Crise
do capitalismo e a nova ofensiva global pelos recursos naturais pós-2008. Le
Monde Diplomatique-Brasil, São Paulo, mar. 2016. Disponível em:
<https://goo.gl/wJREe2>. Acesso em: 4 abr. 2016.
xxx# Ildo Sauer. Nas Entranhas do
Pré-Sal (Parte 1). Nocaute TV. 11 out. 2016. Disponível em:
<https://goo.gl/3RI7m4>. Acesso em: 25 abr. 2017.
xxxi# Célia M. M. Azevedo. Onda negra,
medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Paz e Terra: Oficinas
da História: Rio de Janeiro. 1987. 267p
xxxii# José J. Carvalho. O confinamento
racial do mundo acadêmico brasileiro. REVISTA USP, São Paulo, n. 68, p.
88-103, dez./fev. 2006.
xxxiii# Frantz Fanon. Os Condenados da
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xxxiv# Ricardo Borges. Bolsonaro tem
melhor resultado no Datafolha entre ricos e escolarizados. Folha de São Paulo,
30 abr. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/ZfJBK0>. Acesso em: 1 mai.
2017.
xxxv# Congresso em Foco. Ataque a
grupo de índios deixa vítimas com mãos decepadas no Maranhão. Disponível em
<https://goo.gl/5JJc2Q>. Acesso em: 02 mai. 2017.
xxxvi# Alceu Castilho. Relatório da CPI
da Funai criminaliza antropólogos, procuradores, CIMI CTI e ex-ministro. Outras
Palavras, 3 mai. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UYkgBS>. Acesso em:
3 mai. 2017.
xxxvii# Herton Escobar. Governo Federal
quer observação privada da Amazônia. Estadão, 3 mai. 2017. Disponível em:
<https://goo.gl/UzhPNN>. Acesso em: 3 mai. 2017.
xxxviii# Carta Capital. Trabalhador rural
poderá receber casa e comida no lugar de trabalho. Disponível em:
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participação: democracia participativa e representação política no debate
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xliii# Jessé Souza e William Nozaki. O
Brasil não conhece o Brasil: ou, porque as camadas populares não são como as
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(online), São Paulo. 20 abr. 2017. Disponível em:
<https://goo.gl/1xf6jH>. Acesso em: 25 abr. 2017.
xliv# Frantz Fanon, 1968, op. cit.
xlv# Luis Felipe Miguel, 2017, op. cit.
xlvi# Frantz Fanon. Racismo e Cultura. In:
Frantz Fanon. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Augusto de Sá.
1980.
xlvii# Miguel Fuentes. El peligro de um
eco-suicidio planetário como problema estratégico central de la Izquierda.
Entrevista a Michael Löwy. Viento Sur, Bilbao, 06 mai. 2017. Disponível em
<https://goo.gl/fYycFp>. Acesso em: 8 mai. 2017.
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