Embora
o termo democracia esteja enevoado pelas meninges dos Assizes desta vida,
democracia quer dizer “poder do povo”. E este só consegue ter poder quando
oitenta por cento dele não está na miséria.
Nuno Ramos de
Almeida | jornal i | opinião
Comecemos
com uma pequena história. Era uma vez uma familiar minha que trabalhava numa
importante organização internacional. Essa delegação era dirigida por um
funcionário da ONU, por mandatos de alguns anos. No início dos anos 80, esse
diretor foi substituído. O homem, antes de vir viver para Portugal, mandou um
telex a perguntar “se havia comida em Lisboa e produtos nas prateleiras dos
supermercados”. Apesar dos esclarecimentos dados de cá, ele que tinha visto,
durante anos, horas de notícias sobre a situação de guerra civil em Portugal
nas televisões, aterrou no Aeroporto de Lisboa com as bagagens pejadas de latas
de comida. Durante os anos da revolução portuguesa, a comunicação social falava
que Portugal estava a ferro e fogo, que escasseavam bens de primeira
necessidade, que andavam conselheiros cubanos pelas matas a preparar a guerra
civil e que o país vivia numa ditadura militar comunista.
Uma
das séries de literatura de aeroporto mais famosas da época, tinha o cognome de
SAS (Sua Alteza Sereníssima), e contava a história de um príncipe austríaco
falido, Malko Linge, que colaborava com a CIA na salvação do mundo livre e o
combate aos ogres comunistas. Durante os anos quentes da revolução, sai um
livro dessa série chamado “Sourcières du Tage”, em que Malko é chamado a
Lisboa, depois de dois agentes portugueses da CIA terem sido mortos a rajadas
de G3 por militares portugueses. Aí colabora com a resistência democrática,
feita de antigos agentes da PIDE, envolve-se sexualmente com uma Amália,
provavelmente com Maria seria o único nome português de mulher que o escritor
Gerard de Villiers conhecia, consumando o coito nas mesas do Grémio Literário,
onde a resistente era gerente.
O
intrépido aristocrata com a sua ação musculada ajuda a destruir um paiol de
armas dos comunistas, que estava nas caves da António Serpa, primeira sede do
PCP. Supostamente por baixo das escadas de entrada do edifício (este pormenor
tem tanto mais graça, porque era aí que ficava, na realidade, a cozinha da
porteira do edifício). Mas continuemos na narrativa cozinhada de Sua Alteza
Sereníssima, a sua presença salva Portugal de uma ditadura comunista ao impedir
uma conspiração que envolveria uma cassete sexual falsa sobre Mário Soares e um
atentado a um avião com dirigentes menos radicais da revolução portuguesa. O
romance, editado em maio de 1975, não diferia muito da cobertura da grande
comunicação social. Nessa altura a revista “Time” fazia sair uma capa vermelha
com a foice e o martelo e as caras de Costa Gomes, Otelo Saraiva de Carvalho e
Vasco Gonçalves, chamando aos três a troika que dirigia a ditadura comunista em
Portugal. O problema do pobre funcionário da ONU, que desembarcou anos mais
tarde, foi ter acreditado na comunicação social. A pena deve ter sido andar a
comer sardinhas, em lata durante um mês.
Pouco
anos depois na Venezuela, em 1989, a população pobre de Caracas revolta-se
contra as medidas ditadas pelo FMI e impostas pelo governo de Carlos Andrés
Pérez, político da Internacional Socialista. As medidas seguem o chamado “Consenso
de Washington”, com redução dos gastos sociais, privatização de empresas
públicas e desregulamentação do mercado laboral, aumento dos produtos de
primeira necessidade. Dias depois de ser eleito presidente, numa cerimónia que
os venezuelanos chamaram a coroação, dado o fausto e o custo, o novo presidente
anunciou um pacote económico ditado pelo FMI, que durante a campanha garantiu
que não ia cumprir, que previa entre outras medidas: a subida em 300% do preço
dos transportes públicos. No dia seguinte às medidas, a população dos bairros
pobres de Caracas revoltou-se.
O
país vivia numa imensa miséria com 80% da população abaixo do limiar da
pobreza. Nesse dia 27 de fevereiro de 1989, o presidente suspendeu os artigos
das Constituição que garantia as liberdades democráticas e mandou a tropa
disparar. Segundo os números oficiais morreram 277 pessoas. Segundo
observadores independentes e organizações de direitos humanos, mais de 2000
pessoas foram assassinadas, muitas delas depois de terem sido presas e torturadas
pelas forças da ordem. Só a 1 de março, a imprensa portuguesa noticiou o
sucedido, com o “Diário de Lisboa” a qualificar a “agitação”, como “a pior em
31 anos de democracia”, e a citar o presidente venezuelano que qualificou os
protestos, como “tragédia incrível” e declarou que a “agitação tinha posto em
causa o processo democrático”. O título do artigo ainda era mais surpreendente:
“Protestos contra os aumentos na Argentina provocam mais de 100 mortos” (sic).
O
país, que a noticia confundia com a Argentina, vivia supostamente em democracia
há mais de 31 anos. Mas grande parte da população estava excluída de facto do
processo democrático. Não tinha nem voto no que faziam os governos, nem tinha
direito à vida. O país tinha uma espécie de rotativismo, entre partidos ditos
de centro esquerda e centro direita, que garantiam o poder das elites do
costume, e sobretudo os negócios das grandes companhias petrolíferas
estrangeiras. Tudo estava bem para a Europa e os EUA.
A
subida ao poder de Hugo Chávez, eleito em 1998, e tomando posse em 1999, veio
alterar os dados da situação. O novo poder colocou a companhia petrolífera nas
mãos do Estado e usou os rendimentos desta para fazer um conjunto de programas
sociais que permitiram às populações dos bairros pobres aceder à saúde,
educação e saírem do limiar da pobreza. Esta política de redistribuição dos
petrodólares, não alterou a estrutura de propriedade de poder económico do
país, mas retirou dezenas de milhões de venezuelanos da pobreza e permitiu que
muitos deles começassem a participar no processo político. Tal como antes, a
maioria esmagadora da comunicação social era propriedade de grupos privados
hostis a Hugo Chávez. Em 2002, esses grupos, criaram situações de violência e
manipularam imagens, fazendo passar um incidente que começou com um tiroteio
contra manifestantes chavistas, por um ataque a manifestantes da oposição por
forças policiais. Com base nessa manipulação, forças militares contra o governo
provocaram um golpe de Estado e prenderam o presidente eleito Hugo Chávez. Esse
golpe foi imediatamente reconhecido pelos EUA. Nele participaram os órgãos de
comunicação social e os atuais políticos que dirigem, nos dias de hoje, a
oposição. A descida de milhares de manifestantes dos bairros populares, e a
ação de forças militares fieis ao presidente, conseguiram derrotar o golpe.
Nenhum dos intervenientes passou muito tempo na prisão por aquilo que tinha
sido feito. Passado um breve período, tudo estava na mesma: os grupos de
comunicação social continuavam a fazer “notícias” hostis ao governo e os
dirigentes golpistas mantinham-se em liberdade a dirigir a oposição.
Em
20 eleições democráticas realizadas, os chavistas ganharam 18. Grande parte com
enormes vantagens. Nas restantes duas, Chávez foi derrotado com margem mínima
num referendo para um novo texto constitucional que pressupunha a possibilidade
de voltar a candidatar-se, e, mais recentemente, Maduro, depois de ter ganho as
presidenciais, num país em que o poder executivo é do presidente, perdeu as
eleições legislativas em que o PSUV teve 41% e a oposição do MUD, 56%. Nessas
eleições verificou-se a “deserção” do voto popular das grandes cidades, dos
chavistas para a oposição, tendo o PSUV vencido apenas nas regiões pobres e
rurais.
Essa
derrota é explicada, em grande medida por um conjunto de fatores, os governos
de Chávez e de Maduro não conseguiram mudar a estrutura da economia
venezuelana, nem do ponto de vista da posse e do poder económico, nem da sua
dependência em relação ao petróleo. Este significa 90% das exportações
venezuelanas e cerca de 12% do PIB. Aquilo que tinha contribuído para diminuir
a pobreza na Venezuela, tinha sido a redistribuição através de programas
sociais dos lucros do petróleo. Mesmo antes da crise de 2008, a situação mudou
radicalmente, os EUA, com o apoio da Arábia Saudita, conseguiram diminuir o
preço do barril de petróleo de uma forma abrupta e isso prejudicou economias de
países como Angola, Irão, Rússia, Venezuela e até Brasil. No caso destes dois
últimos países, a aposta dos governos de esquerda tinha sido não tocar na
estrutura de propriedade do tecido produtivo e apostar apenas numa maior
redistribuição social dos lucros das petrolíferas. Com a crise, este programa
ficou em ponto morto. Acresce que, na Venezuela, a natureza populista do
chavismo, ancorado em lideranças providenciais, não fez o suficiente para
empoderar, do ponto de vista político, as populações mais pobres dotando-as de
um verdadeiro instrumento de participação.
A
crise económica tirou margem de manobra ao governo venezuelano e a situação
agravou-se com a perda de cerca de 30% do PIB, desde os anos do início da
crise. No campo partidário, a oposição, apoiada e subsidiada pelos EUA, apostou
num plano que tem dado frutos em outros países, agudizar a violência nas ruas,
de modo a que o resto de legitimidade democrática do chavismo termine, e se
esqueça o facto de ter contribuído para o fim da pobreza de grande parte da
população. Estas técnicas estudadas e sistematizadas por Gene Sharp têm-se
mostrado eficientes na Sérvia, na Ucrânia, no Quirguistão, na Geórgia e noutros
países em que foram utilizadas, com o apoio do Pentágono.
Este
processo conta com uma autentica campanha mediática, que tem muito pouco a ver
com jornalismo, cujo objetivo é multiplicar o número de mortos entre os
manifestantes e esconder os atos de violência da oposição. Só assim se percebe
que a maioria dos jornais espanhóis publiquem a fotografia de uma explosão,
dizendo que é violência chavista, quando foi um atentado numa esquadra. As
televisões afirmem que foram assassinados candidatos, “esquecendo-se”, que eram
chavistas que se candidatavam à Constituinte. Que a comunicação social não
divulgue notícias sobre chavistas queimados vivos por opositores. E que os
média garantam que os números da consulta popular realizada pela oposição são
verdadeiros, sem que os registos dos votos e cadernos eleitorais sejam
públicos, enquanto contestem a legitimidade da eleição da Constituinte,
dizendo-a ilegal, sem se darem ao trabalho de ler o artigo 348 da Constituição,
que a regulamenta. Esta cobertura enviesada não serve para denunciar a
violência politica e a falta de democracia na Venezuela, ela serve para
legitimar um golpe de Estado ou uma maior intervenção estrangeira. É a nova
lenda das “armas de destruição maciça no Iraque”.
Aquilo
que os EUA e as oligarquias locais e mundiais contestam na Venezuela não é
serem dirigidas por um incapaz, ou até o crescente autoritarismo do governo de
Caracas: os EUA e os seus aliados europeus dão-se muito bem com regimes, como o
da Arábia Saudita, que condenou, recentemente, à morte 14 pessoas pelo crime de
se manifestarem contra a monarquia, e onde não há nem oposição, nem órgãos de
comunicação social contrários ao governo. O que esses poderes mundiais nunca
perdoaram ao chavismo foi a tentativa de promover uma maior igualdade económica
e colocar os pobres no centro da ação política. É isso que é imperdoável para
quem manda neste mundo. Como disse Assange, se a Venezuela tivesse a
constituição da Arábia Saudita, tudo estaria bem para Washington e o petróleo
em “boas mãos”.
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