Pedro
Tadeu | Diário de Notícias | opinião
Para
agir o Conselho Superior de Magistratura teve de ser pressionado pelos jornais,
por colunistas, por comentadores, pelo Presidente da República, pela ministra
da Justiça, pelas redes sociais e até por pequenas mas inéditas manifestações
de rua contra o acórdão do juiz da Relação Neto Moura (co-assinado "de
cruz", segundo o jornal "Expresso", pela juíza Maria Luísa
Arantes) que teceu largas considerações gerais sobre a suposta imoralidade da
mulher adúltera, aparente estatuto da vítima do caso, que levou no corpo com
uma moca de pregos.
Para
decidir estabelecer um simples inquérito disciplinar esse órgão de magistrados
que aprecia o desempenho dos seus (e são tantos a ter "muito bom",
tal como o próprio Neto Moura já teve, nas respetivas classificações de
carreira que deveríamos esperar ter um serviço de justiça absolutamente
excecional, em vez de termos de conviver com o arrastado desastre diário que
ele é) teve de ser empurrado para uma espécie de beco sem saída mediático e
político, cuja única escapatória foi tentar anunciar que ia fazer alguma coisa
mais ou menos relevante, suponho que na esperança do assunto entrar no
esquecimento.
Já
foi ultra escalpelizada a sentença polémica deste juiz, suficientemente grave e
anacrónica para até dar azo a que se sustentem opiniões de gente prestigiada
que acabam, voluntária ou involuntariamente, a pôr em causa a independência dos
juízes, privilégio fundamentalmente sustentado no facto de eles não deverem ser
responsabilizados pelas decisões que tomam, o que até é garantido
constitucionalmente.
O
problema maior deste caso, precisamente, parece-me estar a passar ao lado de
uma parte dos analistas. É que a incapacidade de um sistema de autorregulação
para os juízes (como, no fundo, também é o Conselho Superior da Magistratura)
em fazer corresponder a sua ação disciplinar e ética às expetativas da
sociedade, ao mais comum e razoável bom senso, põe de facto em perigo a
independência do sistema de justiça: se os erros graves da justiça, sem
possibilidade de correção por terem atingido o estado de transitado em julgado,
erros graves que são humanamente impossíveis de evitar, não motivam ações
decisivas e consequentes pela única entidade que pode penalizar os autores
desses erros, a sociedade deixa de acreditar na boa fé dos juízes, vai olhar
para a "corporação" como uma "casta" que prefere proteger
os seus em vez de proteger a própria sociedade.
Essa
erosão da visão da Justiça pelos cidadãos poderá levar a tentativas de impor
formas de fiscalização e penalização dos juízes por estruturas estranhas ao
sistema e, se essas visões acabarem, com o tempo, por merecer apoio suficiente
para serem vertidas em lei, a verdadeira independência dos tribunais morre. Um
dos pilares da democracia ficará carcomido.
Esta
ineficácia da autorregulação não afeta só os juízes. A Ordem dos Advogados tem
muita dificuldade em encontrar advogados desonestos que todo o país conhece. O
Conselho Superior do Ministério Público ignora as violações de segredo de
justiça das investigações, conduzidas pelos seus ,que se publicam nos jornais.
Os órgãos disciplinares e de ética dos médicos são quase cegos para casos de
negligência que toda a gente vê. E os bancos centrais (sim, para mim são
autoregulação) para agirem contra os desmandos dos senhores da finança deixam
primeiro o mundo desabar!
Na
minha profissão a autorregulação também não funciona. A Comissão da Carteira
Profissional dos Jornalistas deve achar o nosso jornalismo deontologicamente
puro pois, que eu saiba, nunca penalizou nenhum jornalista. Esta semana o
Conselho Deontológico dos Jornalistas aceitou como válido um referendo de
alterações ao código deontológico que teve a abstenção de 94% do eleitorado, o
que é uma coisa totalmente antidemocrática! A única entidade que dá alguma
"cacetada" nas empresas de comunicação social é a ERC, que emana do
poder político, mas que se descredibilizou com decisões patetas e por não
servir o interesse público mas os interesses de fação de quem consegue eleger
os seus membros.
A
autorregulação, nos mais diversos setores de atividade humana parece, portanto,
uma missão impossível. Isso acontece por uma razão muito simples: quem tem o
trabalho de autorregular pertence ao mundo dos regulados, logo é sempre um juiz
em casa própria, é suspeito. Quem autorregula não é capaz de ser cego, decidido
e equilibrado como a verdadeira Justiça deve ser. A autorregulação é uma
perversão da democracia.
Devíamos
acabar com a autorregulação? Em muitos setores, sim, mas, no caso dos juízes,
não. É mais perigoso para a democracia ter entidades externas a avaliar juízes
(e, assim, a influenciar as decisões dos tribunais) do que ter um Conselho
Superior da Magistratura disciplinarmente hipócrita. O que não tem solução,
solucionado está... Resta protestarmos.
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