domingo, 10 de dezembro de 2017

A FRENTE NEGRA BRASILEIRA



Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil 

Há 86 anos, em 16 de setembro de 1931, na cidade de São Paulo, foi criada a Frente Negra Brasileira (FNB). Durante a primeira metade do século 20, a FNB foi a mais destacada entidade negra no Brasil, Com um programa preestabelecido de luta,  visava conquistar posições para o negro em todos os setores da sociedade brasileira.

A entidade se expandiu como grupos homônimos em vários estados, a exemplo do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia. Arregimentando milhares de afrodescendentes, esta se converteu num verdadeiro movimento de massa, chegando a atingir o número expressivo de 20 mil sócios.  A FNB  proporcionou à população afrodescendente - excluída e marginalizada - não apenas assistência social, mas  meios  de enfrentar e combater o preconceito.

A Frente Negra Brasileira (FNB) desenvolveu um significativo trabalho socioeducativo e cultural: escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento jurídico e, na área da saúde, prestou atendimento médico e odontológico. Havia também cursos de formação política, de artes e ofícios, além de ter sido responsável pela publicação do periódico “A Voz da Raça” (1933-1937).

Na época, vicejavam as teses do racismo científico (Eugenia), apregoando a ideia de que negros e mulatos constituiam uma raça “degenerada” e, portanto, estavam predestinados ao desaparecimento. Entre os adeptos dessa concepção de raça estavam Nina Rodrigues (1862-1906) e Monteiro Lobato (1882-1948). Essas teses resultaram em políticas públicas, que incentivaram à imigração europeia, indo ao encontro da ideia de embranquecimento.  

Quanto às mulheres negras, de acordo com um dos fundadores da FNB, o ativista Francisco Lucrécio, estas “eram mais assíduas na luta em favor do negro, de forma que na Frente [Negra] a maior parte eram mulheres. Era um contingente muito grande, eram elas que faziam todo movimento”. Ainda que outros estudos considerem a afirmação acima um tanto exagerada, torna-se importante registrar que as  afrodescendentes exerciam várias funções na FNB.  Na Cruzada Feminina, elas eram  mobilizadas, visando à realização de  trabalhos assistencialistas. Já as Rosas Negras se dedicavam a organizar bailes e festivais artísticos.

A FNB, em 1936, transformou-se num partido político, almejando participar de futuras eleições, a fim de arregimentar votos da “população de cor”. Sob a influência do contexto internacional de ascensão do nazifascismo, a entidade defendeu um programa político e ideológico com características de autoritarismo e ultranacionalismo. Naquele momento, sua principal liderança foi Arlindo Veiga dos Santos que exaltava publicamente o governo do italiano Benedito Mussolini (1883-1945), na Itália, e de Adolfo Hitler (1889-1945), na Alemanha. O próprio subtítulo do periódico “A Voz da Raça” era sintomático: “Deus, Pátria, Raça e Família”, sendo diferente do lema dos integralistas (movimento de extrema direita) apenas pela presença do termo “Raça”.

Neste período, A Frente Negra Brasileira (FNB) organizou uma milícia inspirada nos “boinas verdes” do fascismo italiano. Recebida numa audiência pelo, então, Presidente da República Getúlio Vargas (1882-1954), teve algumas de suas reivindicações atendidas, a exemplo do fim da proibição de ingresso de negros na Guarda Civil de São Paulo. O episódio é uma indicação do poder de barganha que o movimento negro, naquele momento, dispunha no cenário político.  

À época, o racismo se apresentava de forma exacerbada até em forma de anúncio em muitos periódicos: “Precisa-se de empregado, mas não queremos de cor”. A entidade também atuava por meio de alguns movimentos no interior, especialmente nos lugares em que os afrodescendentes não passeavam nos jardins, mas na calçada.

Segundo Abdias Nascimento (1914-2011), o fracionamento da FNB ocorreu devido à polarização política de suas lideranças: Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978) liderava o Movimento Patrianovista de caráter nacionalista, monarquista conservador e tradicionalista, alinhando-se à Ação Integralista Brasileira; e José Correia Leite (1900-1989) que se filiava à corrente socialista. Abdias também declarou “Como movimento de massas, foi a mais importante organização que os negros lograram após a Abolição da Escravatura em 1888”.

Implantada a ditadura do “Estado Novo”, em 1937, por Getúlio Vargas, a Frente Negra Brasileira (FNB) e todas as outras organizações políticas foram extintas. O movimento negro, diante do novo modelo político, que se instalara no Brasil, foi diluído e enfraquecido.  O Movimento Negro havia escolhido, desde os anos 20, a figura ícone da Mãe-Preta, cujo monumento foi inaugurado, em São Paulo, somente em 1955,.como parte das comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo.

O importante jornal O Exemplo (1892-1930), editado em Porto Alegre, por afrodescendentes, registrou a campanha, para que se inaugurasse um monumento alusivo à Mãe Preta.  Um dos principais objetivos da Frente Negra Brasileira era a defesa de uma “Segunda Abolição”, pois a primeira (1888) havia deixado um legado de exclusão social e pobreza, sem oferecer aos libertos a condição de exercerem de forma plena e integrada a sua condição de cidadãos.

Marcada de forma indelével pelo racismo, a vida dos afrodescendentes tem sido árdua nas lutas diárias por melhores condições socioeconômicas. Desmitificando a ideia, em nosso país, da “Democracia Racial”, as estatísticas do próprio IBGE ratificam o quanto se tornam necessárias políticas afirmativas, visando a atenuar os 400 anos de escravidão, cujo legado nefasto, da miséria e da exclusão social, faz-se sentir, até os dias hoje, por um número expressivo da população afrodescendente. A realidade estigmatizada da dicotomia entre a “Casa Grande e da Senzala”, infelizmente, não se esvaziou, nem com o passar dos séculos, desde o Brasil Colônia.

Importante registrar que, além da Frente Negra Brasileira, na década de 30, outras do gênero surgiram, buscando promover a integração do afrodescendente à sociedade de forma mais abrangente, como o Clube Negro de Cultura Social (1932) e a Frente Negra Socialista (1932), na cidade de São Paulo; a Sociedade Flor do Abacate, no Rio de Janeiro, a Legião Negra (1934), em Uberlândia/MG, e a Sociedade Henrique Dias (1937), em Salvador.

No Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, merece destaque a fundação da mais antiga do Brasil, ainda, em atividade: trata-se da Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora que foi criada, em 1872, por negros alforriados, um ano após de ter sido assinada a Lei do Ventre Livre (1871).

O caminho dos afrodescendentes tem sido pontuado por lutas, desafios, avanços e retrocessos, porém, diante da nossa condição de um povo miscigenado, não podemos recuar e nem desistirmos do ideal em construir um Brasil com mais justiça e com menos desigualdades sociais, fazendo, finalmente, jus ao verso de uma das estrofes do Hino Nacional “... Dos filhos deste solo és mãe gentil pátria amada Brasil “.
                                                           
* Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Musecom


Bibliografia
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto Negro. São Paulo: Cortez, 1989.
LEITE, José Correia Leite. ... E disse o velho militante José Correia Leite. Organização e textos de Luiz Silva (Cuti). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
NONNENMACHER, Marisa Schneider. Tudo Começou em uma Madrugada/ Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora (1872-2015). Porto Alegre: Medianiz, 2015.
PINTO, Regina Pahin. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São Paulo, 1993.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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