Envolvimento subversivo
estrangeiro, manipulação midiática, intervenção militar e ocupação fizeram
parte do roteiro do desmembramento da Iugoslávia e da queda forçada do líder
nacionalista Milosevic: os acontecimentos dos anos 90 não perderam sua ligação histórica
nem sua atualidade
Eduardo Vasco, Pravda.ru
Encontre o erro na seguinte
frase, caro leitor:
"Nunca votou no
ditador."
Essa é uma descrição que o
jornalista brasileiro Kennedy Alencar faz de uma repórter sérvia durante a
agressão da OTAN à Iugoslávia, em 1999. A colega sérvia de Alencar apoiou
Slobodan Milosevic contra os bombardeios da coalização imperialista, apesar de
ser uma opositora da "ditadura" que dava o direito ao voto popular.
Tudo bem, concordo que o voto não
é garantia de democracia. A maioria dos países capitalistas se dizem
democráticos e o povo pode votar. Mas, parafraseando Lenin, o voto nesses
países serve para o povo escolher quem será seu próximo opressor.
Entretanto, a frase destacada no
começo do artigo sugere uma contradição, que Alencar justifica:
"Milosevic, embora eleito, é
considerado ditador por causa de duas atitudes: manipula os meios de
comunicação e se apoia num aparato repressivo. Nunca é demais lembrar que
Alfredo Stroessner se reelegeu sucessivas vezes no Paraguai e que Alberto
Fujimori também passou pelas urnas no Peru."
Outra desculpa que o jornalista
encontra para tachar Milosevic de ditador dezenas de vezes em seu livro
"Kosovo: a guerra dos covardes" (DBA, 1999, 224 pg.) é esta:
"O fato de policiais terem
equipamento pesado evidencia o quão repressor é (e foi) nos últimos anos o
regime sérvio em Kosovo."
Não pretendo dizer que as forças
de segurança sérvias eram formadas por hippies paz & amor. Obviamente havia
militares, policiais e paramilitares cruéis, mas os acontecimentos daquela
época sofreram as frequentes distorções cometidas pela mídia ocidental quando
ocorrem guerras e invasões lideradas pelos Estados Unidos.
A Iugoslávia era um país com boa
qualidade de vida, estabilidade de emprego, serviços públicos gratuitos para
toda a população e as diversas etnias viviam em relativa harmonia. Na década de
1980, com a crise econômica (o país, apesar de socialista, era dependente das
forças imperialistas do mercado, como o FMI e o Banco Mundial) e a morte de Tito,
o cenário começou a mudar.
Grupos marginais e políticos
xenófobos e de extrema-direita emergiram, clamando mudanças políticas e
econômicas na esteira da crise do bloco comunista do Leste Europeu. Sérvios,
croatas, eslovenos, bósnios e kosovares, muitos deles incentivados pela
propaganda clandestina da CIA, tiveram seu ultranacionalismo reacionário
despertado.
O que se seguiu, na virada para a
década de 1990, foi a fragmentação da Iugoslávia em vários países, com guerras
civis que faziam cada vez mais os ânimos se exaltarem e barbaridades serem
cometidas. A guerra destrói a infraestrutura, as vidas e a mente.
Fiz esse rápido resumo para dizer
que os conturbados anos 80 e 90, com a crise e as guerras, levaram ao aumento
inevitável da xenofobia, do ódio e da violência reacionários por toda a região.
Em um clima de guerra e agressão
estrangeira durante dez anos, como foi o caso das operações ocidentais que
desencadearam os ataques da OTAN em 1999, um país fragmentado e economicamente
falido (uma secretária sérvia ganhava seis vezes menos em 1999 do que em 1991)
não vive na normalidade.
Como foi reconhecido em 2016 pelo
Tribunal de Haia, Milosevic não teve participação nos massacres na Bósnia e
tentou impedir as ações de grupos extremistas paramilitares. Mesmo assim,
indivíduos racistas acabavam por fazer parte do aparato de segurança.
Agora, vamos concordar então que um
presidente (Alencar usou essa denominação apenas três vezes para caracterizar
Milosevic) seja um ditador quando manipula a mídia e se apoia no aparato
repressivo. Devemos concluir, então, que todos os presidentes dos EUA são
ditadores.
Mas críticas profundas aos EUA e
ao Ocidente são evitadas pelo autor do livro. Enquanto Milosevic era o malvado,
o cruel, o sanguinário, a OTAN apenas errava os seus alvos, por descuidos. A
mídia sérvia, controlada pelo governo, distorcia a realidade, mas a CNN e a
BBC, apesar de descritas como tendenciosas, não eram controladas pela OTAN e
seus governos, segundo Alencar.
Especificamente durante a guerra
de 1999, o autor afirma que a mídia era controlada por Milosevic. Creio que em
uma guerra contra um invasor estrangeiro, possivelmente em qualquer país uma
cobertura noticiosa favorável ao inimigo seria proibida.
Mas uma contradição de Alencar é
que ele mesmo relata que a CNN era transmitida para a Iugoslávia e cobria um
grande público, apesar de muita gente desconfiar da cobertura distorcida.
E os sérvios desconfiavam com
razão. A maioria dos jornalistas ocidentais que cobriram a Guerra do Kosovo,
seguindo orientações superiores ou não, distorciam informações e não
contextualizavam nem aprofundavam as análises, baseando-se fundamentalmente em
preconceitos que eram transmitidos também para seus públicos. Esse é um dos
motivos do porquê de, até hoje, a maior parte das pessoas que aborda esse
assunto acreditar piamente que os sérvios foram os grandes vilões e mereceram
ser massacrados pelos mísseis da OTAN.
Mas as manipulações, para serem
eficazes, eram cuidadosamente preparadas e sutilmente difundidas, os
preconceitos e mentiras eram quase que naturais e poderiam até ser confundidos
com ingenuidade dos profissionais de imprensa, como o capacitado Alencar. Esse
é o método pelo qual funciona o modelo de propaganda tão bem analisado pelo
filósofo Noam Chomsky.
Modelo que vemos hoje sendo
utilizado para manipular os acontecimentos na Venezuela ou na Coreia do Norte,
por exemplo. Os grandes veículos de imprensa não pensaram duas vezes em acusar
os sérvios e seu presidente de genocidas. Mesmo que atrocidades tenham sido
cometidas - como, infelizmente, ocorrem em todas as guerras -, até hoje não
existem evidências de muitos crimes supostamente cometidos, e muito menos da
participação de Milosevic. Aliás, como já mencionado, o Tribunal de Haia (o
mesmo que o deixou morrer na prisão) não encontrou nada contra Milosevic
durante a Guerra da Iugoslávia em sua exaustiva investigação. Curiosamente
(para os leigos), isso não foi notícia na mídia internacional.
Ao mesmo tempo, o autodenominado
Exército de Libertação do Kosovo (ELK) era tachado como grupo de resistência,
do mesmo jeito que são retratadas hoje organizações terroristas opositoras do
governo sírio.
Em alguns casos, se forjou
indicentes para culpar os sérvios. Em crimes cometidos pelo ELK, não se
denunciou. Civis sérvios sendo atacados não foram merecedores de protestos,
como eram as vítimas kosovares. Por acaso não seriam os jornais os verdadeiros
xenófobos e racistas, segregando os sérvios como vítimas de categoria inferior?
E não é isso o que sempre fazem os grandes meios de comunicação? Fala-se muito
de supostas vítimas de perseguição política por parte do governo norte-coreano,
mas nenhuma linha sobre a censura e repressão a opositores na Coreia do Sul.
Diz-se que Putin não admite homossexuais nem feministas, mas nem uma palavra
sobre o regime autoritário protofascista da Ucrânia.
O certo é que uma guerra na
Iugoslávia foi muito conveniente para o Ocidente (diga-se imperialismo,
especialmente o estadunidense). Fomentou-se um conflito fratricida, com
participação de agentes e governos estrangeiros, em um dos mais prósperos
países da Europa Oriental, talvez porque de outra forma não fosse possível que
seu regime mudasse como mudaram os outros da região na mesma época. E,
realmente, enquanto Milosevic não foi deposto (em um ato final da operação de
mudança de regime na Iugoslávia), o capital internacional não conseguiu dominar
a economia do país.
E mais ainda: até a atualidade a
Sérvia ainda não se entregou por completo à dominação imperialista. Foi por
isso que o país foi completamente fatiado, passando pela divisão em 2006 entre
Sérvia e Montenegro e mais atualmente o reconhecimento de organismos
internacionais comandados pelos EUA e vários países do status de independência
do Kosovo. Essa parte da Sérvia, desde a intervenção da OTAN, se tornou uma
zona especial de controle e laboratório imperialista.
Apesar dos sucessivos golpes
sofridos, ainda há dignidade no povo sérvio, que, por experiência própria, é
reticente com a política econômica neoliberal e tem um sentimento patriótico
(não o ultranacionalismo xenófobo) fortemente anti-imperialista e uma memória
histórica que não deixa esquecer o passado socialista e de união dos povos
eslavos do sul. A Sérvia ainda é peça-chave no tabuleiro geopolítico do sudeste
europeu, como aliada da Rússia (uma das que sobraram) e zona estratégica entre Ocidente
e Oriente, em um caminho que liga a Rússia e seus vizinhos aos países do
Oriente Médio (cujas riquezas são tão cobiçadas pelos EUA) até a Ásia Oriental.
De fato, a Sérvia é um dos países participante da Nova Rota da Seda (One Belt,
One Road) encabeçada pela China, que promete ser um duro obstáculo para - senão
um dos instrumentos de derrocada da - dominação norte-americana.
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