Hassan Hassan*
O sonho do califado desfez-se,
mas os extremistas têm uma nova estratégia
O orgulhoso califado terminou,
esmagado pelo poderio dos aviões de guerra russos, sírios e estadunidenses,
pelas milícias apoiadas pelo Irã, pelas forças curdas e
pelos exércitos lançados por Damasco e Bagdá.
Mas, se 2017 viu o fim do sonho
do Estado Islâmico de dominar com sua visão distorcida de sociedade ideal, o
ano acabou com um sinal poderoso de que sua campanha internacional mortífera
contra os muitos povos e religiões que considera inimigos espirituais adquiriu
nova energia.
Em 21 de dezembro, uma
quinta-feira, dezenas de civis foram mortos em um ataque suicida contra um centro
cultural xiita na capital afegã, Cabul. O ataque foi o último de uma série
persistente de uma afiliada do EI, que demonstrou resiliência apesar da
campanha incansável contra ela nos últimos meses.
Segundo o canal de notícias Amaq,
ligado ao EI, três explosões foram detonadas no complexo, que também abriga uma
agência de notícias. Depois um homem-bomba se explodiu entre a multidão no
centro cultural Tebyan. Pelo menos 41 pessoas morreram e outras 90 ficaram
feridas.
O ataque ocorre apesar de uma
campanha intensa dos EUA e do Afeganistão para extirpar as ameaças gêmeas que
emanam do EI e dos Taleban, especialmente depois que Donald Trump assumiu o cargo, em janeiro de
2017.
Atacar na capital afegã, apesar
do aumento da segurança e das medidas militares, também desperta receios sobre
a capacidade do grupo de permanecer, mesmo com o colapso do califado que ele
havia estabelecido no Iraque e na Síria.
Em abril, os EUA despejaram a “mãe de todas as bombas” sobre uma base do EI no
Afeganistão, indicando uma campanha feroz contra o grupo terrorista. Mas essa
campanha não conseguiu derrubá-lo. Nos últimos meses, especialistas e
autoridades indicaram um esforço bem-sucedido da afiliada do EI de deitar
raízes em Cabul e recrutar dezenas de membros locais, inclusive crianças.
No Afeganistão, o EI fez muito
com poucos recursos. Na Líbia, por exemplo, o grupo tem centenas de combatentes
locais com experiência que remonta aos primeiros anos da Guerra do Iraque e que
tiveram um papel vital nas primeiras iniciativas do EI na Síria em 2014. Mas suas
fortunas minguaram nos últimos dois anos.
Sua derrota territorial poderia
exacerbar outras insurgências se os militantes preencherem as fileiras de
afiliadas em outros países.
A afiliada no Afeganistão, em
comparação, tem a concorrência dos militantes Taleban que ressurgem com ligações
mais profundas com o país, mas conseguiu reforçar sua presença. Os ataques na
capital sugerem que o grupo evoluiu com sucesso de uma organização
majoritariamente liderada por estrangeiros para uma cada vez mais localizada.
Além de sua persistência no
Afeganistão, a natureza do ataque de 21 de dezembro é um prenúncio do que virá
conforme o EI perder seu califado no Iraque e na Síria. Em um comunicado sobre
o ataque, o canal de mídia do EI afirmou que o centro cultural era financiado e
patrocinado pelo Irã.
“O centro é um dos locais mais
conhecidos de proselitismo do xiismo no Afeganistão”, acrescentou a declaração.
“Jovens afegãos seriam enviados ao Irã para receber estudos acadêmicos pelas
mãos de religiosos iranianos.”
O EI tentou impor-se como
defensor dos sunitas em toda a região e as palavras escolhidas para seu
comunicado destinam-se a passar essa mensagem. O tema sectário provavelmente
será o objetivo principal do grupo nos próximos anos, conforme ele recua de um
califado para uma insurgência.
A narrativa sectária ajuda o
grupo a apresentar uma “ideologia contígua” do Afeganistão à Síria no lugar do califado que parece ter perdido; sua mensagem aos
seguidores é que as vítimas do ataque eram potenciais soldados do exército que
o Irã está formando em toda parte.
Apresentar-se como a última linha
de defesa contra o Irã garantirá que suas operações localizadas tenham um tema
geral regional, mesmo perdendo o califado global. Esse foi um tema recorrente
desde a sua ascensão em 2014, mas o grupo concentrou-se cada vez mais no
sectarismo, não apenas contra os xiitas, mas também contra cristãos e outras
minorias religiosas.
O ataque do grupo no interior do
Irã em junho destinou-se a alcançar esse objetivo, e ataques que ele pinta como
dirigidos contra interesses iranianos, como o de Cabul, servem a um propósito
semelhante. Ao fazê-lo, o EI tenta um mercado onde nem a Al-Qaeda nem o Taleban podem competir
com o mesmo vigor, pois a retórica desses dois grupos é relativamente menos
sectária.
Em outubro, homens-bombas ligados
ao grupo mataram pelo menos 57 fiéis em uma mesquita xiita em Cabul. O enfoque
sectário do EI torna sua persistência ainda mais perturbadora para o país e a
região em geral.
Um dia depois do atentado em
Cabul, o grupo também reivindicou a responsabilidade por um tiroteio de
militantes contra uma igreja no Cairo, matando mais de dez pessoas, em um de
vários ataques que visaram civis e igrejas coptas no país nos últimos anos.
A lição desses ataques é que o
grupo ainda pode ser mortífero, apesar de sua retração no Iraque e na Síria. De fato, a perda de
território pode até exacerbar insurgências em outros lugares se os militantes
fugirem em segurança dos campos de batalha para preencher as fileiras de
afiliadas em outros países. Relatos de militantes que escaparam do califado em
ruínas surgiram recentemente.
No início de dezembro, por
exemplo, a Agência France Presse relatou que combatentes franceses e argelinos
viajaram da Síria ao Afeganistão para unir-se ao ramo local do EI. Tendências
semelhantes foram relatadas no Egito e na Líbia.
Uma autoridade da União Africana também advertiu em dezembro
que muitos dos 6 mil insurgentes que tinham viajado à Síria em 2014 podem estar
voltando para casa.
Esses combatentes poderão
reabastecer e revitalizar insurgências espalhadas pela região de uma maneira
que não poderiam quando o foco do grupo estava em seu núcleo no Iraque e na
Síria. As ramificações do EI que surgiram continuavam limitadas em tamanho, e
algumas enfraqueceram com a menor oferta de militantes.
Isso poderá mudar quando
ex-combatentes saírem da Síria e do Iraque para países da região, onde é mais
fácil ligar-se a afiliadas existentes do que se viajassem a seus países natais
na Europa ou para a Grã-Bretanha.
O grupo prospera com a
polarização, e as minorias religiosas representam alvos fáceis
para voltar as pessoas umas contra as outras. Esses alvos também lhe permitem
recolocar-se em oposição à Al-Qaeda e outros grupos islâmicos.
Além da estagnação política e de
conflitos persistentes, o sectarismo continuará oferecendo ao grupo
oportunidades progressivas em uma região com divisões cada vez mais profundas e
em meio ao papel crescente do Irã no Oriente Médio.
O grupo espera que a narrativa
mantenha sua atração entre os que veem o Irã como o usurpador de suas terras e o poder
sectário dominante na região.
A queda territorial do califado
poderá reduzir as ameaças ao Ocidente, mas para a região próxima, onde o EI
pode movimentar-se com maior facilidade, ele continuará explorando as divisões
sociais e a estagnação política para se reagrupar e entrincheirar.
*Hassan Hassan é coautor de Isis:
Inside the Army of Terror e bolsista residente no Instituto Tahrir para
Política do Oriente Médio.
Carta Capital | em The Observer |
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Na foto: O ataque deixou dezenas
de mortos no centro cultural xiita
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