terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ESTADO ISLÂMICO: O PESADELO CONTINUA


Hassan Hassan*

O sonho do califado desfez-se, mas os extremistas têm uma nova estratégia

O orgulhoso califado terminou, esmagado pelo poderio dos aviões de guerra russos, sírios e estadunidenses, pelas milícias apoiadas pelo Irã, pelas forças curdas e pelos exércitos lançados por Damasco e Bagdá.

Mas, se 2017 viu o fim do sonho do Estado Islâmico de dominar com sua visão distorcida de sociedade ideal, o ano acabou com um sinal poderoso de que sua campanha internacional mortífera contra os muitos povos e religiões que considera inimigos espirituais adquiriu nova energia.

Em 21 de dezembro, uma quinta-feira, dezenas de civis foram mortos em um ataque suicida contra um centro cultural xiita na capital afegã, Cabul. O ataque foi o último de uma série persistente de uma afiliada do EI, que demonstrou resiliência apesar da campanha incansável contra ela nos últimos meses.

Segundo o canal de notícias Amaq, ligado ao EI, três explosões foram detonadas no complexo, que também abriga uma agência de notícias. Depois um homem-bomba se explodiu entre a multidão no centro cultural Tebyan. Pelo menos 41 pessoas morreram e outras 90 ficaram feridas.

O ataque ocorre apesar de uma campanha intensa dos EUA e do Afeganistão para extirpar as ameaças gêmeas que emanam do EI e dos Taleban, especialmente depois que Donald Trump assumiu o cargo, em janeiro de 2017.

Atacar na capital afegã, apesar do aumento da segurança e das medidas militares, também desperta receios sobre a capacidade do grupo de permanecer, mesmo com o colapso do califado que ele havia estabelecido no Iraque e na Síria.

Em abril, os EUA despejaram a “mãe de todas as bombas” sobre uma base do EI no Afeganistão, indicando uma campanha feroz contra o grupo terrorista. Mas essa campanha não conseguiu derrubá-lo. Nos últimos meses, especialistas e autoridades indicaram um esforço bem-sucedido da afiliada do EI de deitar raízes em Cabul e recrutar dezenas de membros locais, inclusive crianças.

No Afeganistão, o EI fez muito com poucos recursos. Na Líbia, por exemplo, o grupo tem centenas de combatentes locais com experiência que remonta aos primeiros anos da Guerra do Iraque e que tiveram um papel vital nas primeiras iniciativas do EI na Síria em 2014. Mas suas fortunas minguaram nos últimos dois anos.

Sua derrota territorial poderia exacerbar outras insurgências se os militantes preencherem as fileiras de afiliadas em outros países.

A afiliada no Afeganistão, em comparação, tem a concorrência dos militantes Taleban que ressurgem com ligações mais profundas com o país, mas conseguiu reforçar sua presença. Os ataques na capital sugerem que o grupo evoluiu com sucesso de uma organização majoritariamente liderada por estrangeiros para uma cada vez mais localizada.

Além de sua persistência no Afeganistão, a natureza do ataque de 21 de dezembro é um prenúncio do que virá conforme o EI perder seu califado no Iraque e na Síria. Em um comunicado sobre o ataque, o canal de mídia do EI afirmou que o centro cultural era financiado e patrocinado pelo Irã.

“O centro é um dos locais mais conhecidos de proselitismo do xiismo no Afeganistão”, acrescentou a declaração. “Jovens afegãos seriam enviados ao Irã para receber estudos acadêmicos pelas mãos de religiosos iranianos.”

O EI tentou impor-se como defensor dos sunitas em toda a região e as palavras escolhidas para seu comunicado destinam-se a passar essa mensagem. O tema sectário provavelmente será o objetivo principal do grupo nos próximos anos, conforme ele recua de um califado para uma insurgência.

A narrativa sectária ajuda o grupo a apresentar uma “ideologia contígua” do Afeganistão à Síria no lugar do califado que parece ter perdido; sua mensagem aos seguidores é que as vítimas do ataque eram potenciais soldados do exército que o Irã está formando em toda parte.

Apresentar-se como a última linha de defesa contra o Irã garantirá que suas operações localizadas tenham um tema geral regional, mesmo perdendo o califado global. Esse foi um tema recorrente desde a sua ascensão em 2014, mas o grupo concentrou-se cada vez mais no sectarismo, não apenas contra os xiitas, mas também contra cristãos e outras minorias religiosas.

O ataque do grupo no interior do Irã em junho destinou-se a alcançar esse objetivo, e ataques que ele pinta como dirigidos contra interesses iranianos, como o de Cabul, servem a um propósito semelhante. Ao fazê-lo, o EI tenta um mercado onde nem a Al-Qaeda nem o Taleban podem competir com o mesmo vigor, pois a retórica desses dois grupos é relativamente menos sectária.

Em outubro, homens-bombas ligados ao grupo mataram pelo menos 57 fiéis em uma mesquita xiita em Cabul. O enfoque sectário do EI torna sua persistência ainda mais perturbadora para o país e a região em geral.

Um dia depois do atentado em Cabul, o grupo também reivindicou a responsabilidade por um tiroteio de militantes contra uma igreja no Cairo, matando mais de dez pessoas, em um de vários ataques que visaram civis e igrejas coptas no país nos últimos anos.

A lição desses ataques é que o grupo ainda pode ser mortífero, apesar de sua retração no Iraque e na Síria. De fato, a perda de território pode até exacerbar insurgências em outros lugares se os militantes fugirem em segurança dos campos de batalha para preencher as fileiras de afiliadas em outros países. Relatos de militantes que escaparam do califado em ruínas surgiram recentemente.

No início de dezembro, por exemplo, a Agência France Presse relatou que combatentes franceses e argelinos viajaram da Síria ao Afeganistão para unir-se ao ramo local do EI. Tendências semelhantes foram relatadas no Egito e na Líbia.

Uma autoridade da União Africana também advertiu em dezembro que muitos dos 6 mil insurgentes que tinham viajado à Síria em 2014 podem estar voltando para casa.

Esses combatentes poderão reabastecer e revitalizar insurgências espalhadas pela região de uma maneira que não poderiam quando o foco do grupo estava em seu núcleo no Iraque e na Síria. As ramificações do EI que surgiram continuavam limitadas em tamanho, e algumas enfraqueceram com a menor oferta de militantes.

Isso poderá mudar quando ex-combatentes saírem da Síria e do Iraque para países da região, onde é mais fácil ligar-se a afiliadas existentes do que se viajassem a seus países natais na Europa ou para a Grã-Bretanha.

O grupo prospera com a polarização, e as minorias religiosas representam alvos fáceis para voltar as pessoas umas contra as outras. Esses alvos também lhe permitem recolocar-se em oposição à Al-Qaeda e outros grupos islâmicos.

Além da estagnação política e de conflitos persistentes, o sectarismo continuará oferecendo ao grupo oportunidades progressivas em uma região com divisões cada vez mais profundas e em meio ao papel crescente do Irã no Oriente Médio.

O grupo espera que a narrativa mantenha sua atração entre os que veem o Irã como o usurpador de suas terras e o poder sectário dominante na região.

A queda territorial do califado poderá reduzir as ameaças ao Ocidente, mas para a região próxima, onde o EI pode movimentar-se com maior facilidade, ele continuará explorando as divisões sociais e a estagnação política para se reagrupar e entrincheirar.

*Hassan Hassan é coautor de Isis: Inside the Army of Terror e bolsista residente no Instituto Tahrir para Política do Oriente Médio.

Carta Capital | em The Observer | Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Na foto: O ataque deixou dezenas de mortos no centro cultural xiita

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