Militares voltaram às ruas no
Brasil, México e Argentina. Agora, não combatem o “comunismo”, mas o “crime” e
o “terror”. E não têm projeto algum: obedecem a uma elite corrupta e aos planos
dos EUA
Isabella Gonçalves* | Outras Palavras
As democracias latino-americanas
vêm passado por um processo de profunda (des)configuração após mais de uma
década de experimentalismo democrático, que teve seu ápice na Venezuela e na
Bolívia, onde as experiências de poder popular e reinvenção do Estado construíram
transformações experimentais na organização do poder político e transformações
substantivas na condição de vida das pessoas.
Golpes parlamentares,
reviravoltas eleitorais à direita, legislações de exceção, intervenções
militares e agora uma ameaça concreta de invasão militar na Venezuela lançam
sobre o continente a sombra do militarismo e do autoritarismo.
No Brasil, o governo ilegítimo de
Temer decidiu romper o pacto federativo e mudar o comando da segurança pública
de todo o Estado do Rio de Janeiro, colocando-o nas mãos das Forças Armadas.
Desta forma, imprime no país uma condição de estado de exceção, ajuda
a conter os levantes de um Estado à beira do colapso e legitima a matança
irresponsável e impune dos condenados de sempre: pretos, pobres e favelados.[1]
Na Argentina, vimos nas últimas
semanas o governo Macri anunciar a criação de um aparato militar composto pelo
exército, marinha e aeronáutica para atuar em todo o país no combate ao
“narcotráfico e o terrorismo” e a suposta ameaça do povo indígena Mapuche. A
criação dessa força militar se dá em um momento de crescimento da
impopularidade das medidas aplicadas ao país, como a Reforma da Previdência.
No México, o governo assassino de
Enrique Peña Nieto, marcado pelo massacre de Ayotzinapa que tirou a vida de 43
estudantes, e pela violação de mais de 26 mulheres em São Salvador Atenco pelas
forças policiais, promulgou uma nova Lei de Segurança Nacional. A lei
regulamenta a mobilização militar contra o “crime organizado”; porém, longe de
combater os cartéis do narcotráfico, aliados de seu partido — o PRI –. serve
primordialmente para garantir a “paz social” e a coerção necessária para um
regime de neoliberalismo extremo.
A Venezuela é um caso a parte.
Diante da solidez das forças de Estado e da força popular, que foi capaz de
resistir a mais de uma década de tentativas de golpe de estado e
desestabilização do governo Chaves e Maduro — tentativas até agora fracassadas
–, existe uma movimentação para a ocupação militar do país promovida pelos
Estados Unidos e seus aliados. Panamá e a Colômbia já concentram tropas
próprias e tropas gringas nas fronteiras. A intervenção norte-americana aparece
de forma mais desmascarada na Venezuela, manifestada nas próprias palavras de
Rex Tillerson, secretário de Estado dos EUA e historicamente ligado às
petroleiras Exxon-Mobil: “El régimen de Maduro debe rendir cuentas”.
Tillerson explicitamente disse que a mudança de governo poderia ser de duas
formas: intervenção militar ou a derrota eleitoral de Maduro. Diante da recusa
da oposição venezuelana em participar das eleições gerais em abril deste ano,
parece que a está se confirmando a tentativa de executar a primeira opção.[2]
Seria exagero dizer que podemos
estar diante da instauração progressiva de uma novo ciclo de ditaduras
disfarçadas de democracia no continente? Um novo autoritarismo latino americano
onde os mecanismos de exceção e poder militar servem para garantir um Estado
que lança mão da exceção permanente quando as regras democráticas não agradam a
quem de fato governa?
A cara de uma nova ditadura não é
necessariamente a dos Estados militares que dominaram a América Latina durante
a Guerra Fria, onde o “inimigo interno” era fundamentalmente a ameaça
comunista. A doutrina da segurança nacional, largamente difundida desde a
Escola das Américas no Panamá entre os anos 60 a 80, parece ser retomada e
intensificada sobre novos contornos. Vale destacar que na América Latina a
orientação militar de se organizar as forças armadas para combater os “inimigos
internos” nunca foi desmontada e a doutrina da segurança nacional continuou a
ser difundida e praticada pelos militares, em especial no Brasil onde
ocorreu transição fria e pactuada. No entanto, o “inimigo interno” que
justifica a militarização da sociedade se transmutou.
O jurista argentino Raúl
Zaffaroni defende que existe uma reprodução inovada no continente da Doutrina
da Segurança Nacional sob a força de Doutrina da Segurança Urbana, por trás do
combate ao crime organizado, terrorismo ou da chamada “guerra às drogas”.[3] Esta doutrina recria o inimigo
interno sobre o significante aberto “crime organizado”, que pode enquadrar
desde a “esquerda corrupta e antidemocrática”, o “narcotráfico” ou os
“movimentos sociais terroristas”.
Zaffaroni destaca que a
construção do inimigo interno tem seu correspondente no direito penal, que
sofreu um processo de configuração e homogeneização em todo continente nos
últimos anos. Externamente os Estados se organizam de forma ostensiva para
combater o “crime organizado” ou o “terrorismo”. Internamente, para encarcerar
ou eliminar as classes perigosas, seja por efeitos de letalidade policial seja
por endocídio.[4]
Segundo ele, os conceitos de
terrorismo e crime organizado são tão fluidos e abertos que possibilitam o
enquadramento da mais variedade gama de crimes, em geral crimes econômicos. Não
combatendo aquelas formas de crime legalizados ou as grandes empresas do crime
organizado que promovem transferências maciças de recursos na globalização — os
paraísos fiscais por exemplo — acabam eliminando a concorrência de empresas
criminais menores ou que perderam seu poder.
Vale destacar que o novo
autoritarismo latino-americano surge em um contexto específico da
reconfiguração do capitalismo na região. Por um lado, o aprofundamento da
dependência econômica e a extrema concentração de renda: com o desmonte e
privatização das estatais, as transferência de recursos via dívida externa, a
deterioração das condições de trabalho e aprofundamento da superexploração. Por
outro, a subordinação política ao capital transnacional e a perda de soberania
dos Estados.
A perda da soberania, longe de
significar o enfraquecimento dos Estados ou do poder políticok revela-se
justamente o contrário. As debilidades econômicas, a característica subordinada
das classes dominantes locais e as crises sociais advindas do regime de superexploração
são compensadas pelas dimensões autoritárias do Estado e do governo, mesmo que
sob feições democráticas.[5] O neoliberalismo longe de produzir
um Estado Mínimo, cria nas periferias um regime jurídico-político
marcado pelo estado de exceção permanente.[6]
O exemplo México pode nos dizer
muito sobre a configuração de um novo autoritarismo latino-americano.[7] Sujeito a décadas ininterruptas de
governos neoliberais, desmonte dos direitos democráticos via acordos bilaterais
com os EUA, democracia minimalista circunscrita a uma breve alternância entre
representantes de um ou dois partidos com a mesma política, o país organizou um
poder político violento, paramilitar e contra insurgente.
O Brasil hoje também se configura
como exemplo de que não há como manter o bloco golpista no poder, colocando em
prática um plano de governo com esse nível de impopularidade, apenas com base
no estabelecimento de consensos. É necessária a violência e a coerção. É
preciso aprofundar a permanência da exceção nas nossas “democracias”. Como
denunciou no Carnaval de 2018 a escola Paraíso do Tuiuti, é preciso calar a
favela para perpetuar a escravidão.
______________________
[1]Escrevi um breve ensaio sobre a intervenção
para o Brasil em 5 em que relaciono a adoção de medidas de exceção progressivas
pelo país com a emergência de um novo autoritarismo: https://brasilem5.org/2018/02/20/c-de-intervencao/
[2]Veja matéria sobre as declarações de Rex
Tillerson em: https://es.panampost.com/orlando-avendano/2018/02/01/discurso-secretario-tillerson-sobre-venezuela-regimen-maduro-debe-rendir-cuentas/.
Também podemos ver o artigo de Carlos Fazio: http://www.jornada.unam.mx/2018/02/12/opinion/021a1pol Ambos
acessados em 23 de fevereiro de 2018.
[3]Zaffaroni, E. Raúl. Globalización y Crimen
Organizado. I Conferência mundial de derecho penal. El derecho penal del
siglo XXI. Guadalajara, 18-23 Noviembre 2007.
[4]La violencia entre personas de los mismos
sectores subalternos, al tiempo que por eliminación disminuye su número39,
impide el diálogo, la toma de conciencia y la coalición y, por ende, hace que
se autoexcluyan de todo protagonismo político. La neutralización y autodestrucción
física y cultural de los excluidos como consecuencia de la política del
segurismo interno puede denominarse endocidio.
[5]Para saber mais ler Jaime Osório, 2014, O
Estado no Centro da Mundialização.
[6]Valim, Rafael. Estado de exceção: a forma
jurídica do neoliberalismo. Jornal GNN. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/estado-de-excecao-a-forma-juridica-do-neoliberalismo-por-rafael-valim Acessado
em 18 fevereiro de 2018.
[7]Jaime Osório, 2014 no livro O Estado no
Centro da Mundialização faz a defesa de que México se converteu em um
Estado que abriu mão da sua legitimidade, através de sucessivas fraudes
eleitorais, para instaurar mecanismos profundos de militarização da vida.
*Isabella Gonçalves - Doutoranda
em Pós Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciência Política pela Universidade
Federal de Minas Gerais; Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG)
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