Duzentos anos após seu nascimento
e várias revoluções mais tarde, até que ponto permanecem válidas as ideias do
pensador alemão? Para o sociólogo Martin Endress, hoje uma análise mais
objetiva é possível.
O que Karl Marx tem a ver com o
marxismo, leninismo, stalinismo? Até que ponto ele é responsável pela ascensão
ou a queda da União Soviética? O nome do filósofo alemão nascido em 1818 e sua
obra têm sido repetidamente evocados por revolucionários e ditadores,
geralmente de forma muito seletiva.
Segundo o sociólogo Martin
Endress, o olhar sobre Marx foi, durante muito tempo, limitado, e só
recentemente é possível avaliar sua obra de forma mais objetiva. E é
praticamente impossível ignorar quanto suas análises dos sistemas de exploração
do trabalho na Europa do século 19 agora se aplicam em escala global.
"O trabalho infantil, que
Marx condenava e lutava para que fosse abolido, é algo que conhecemos também
hoje em dia, como no caso de empresas têxteis de âmbito global na Ásia ou no
Sudeste Asiático. Ali vemos um deslocamento que Marx analisou com precisão em
relação ao Ocidente."
Endress é sociólogo na
Universidade de Trier. Entre seus interesses de pesquisa estão teoria
sociológica, teoria da sociedade, sociologia da confiança e pesquisa da
resiliência. Ele é um dos organizadores do Congresso Karl Marx 1818 –
2018. Constelações, transformações, perspectivas, realizado de 23 a 25 de maio
de 2018 na Universidade de Trier.
DW: Há quase 30 anos a União
Soviética não existe mais. Seus líderes invocavam Karl Marx repetidamente. Com
razão?
Martin Endress: Depois de 1989, a
"era dos extremos" – como o século 20 foi denominado pelo historiador
Eric Hobsbawm – novamente liberou um pouco a nossa visão sobre Marx. Desde
então o exame do potencial analítico dessa obra deixou de ser limitado pela até
então dominante concorrência de sistemas. Com isso, não estamos acima de toda
instrumentalização política das análises de Marx, mas pelo menos é possível
evitar o pré-julgamento unidimensional de sua obra. Pois este se baseia
essencialmente no que o marxismo, leninismo, stalinismo. e outros
totalitarismos como o maoísmo. fizeram de sua obra.
Então, um abuso completo de sua
obra?
Claro que há partes difíceis nos
escritos de Marx, sem dúvida. No entanto precisamos considerar que, em vida,
apenas uma pequena parcela de sua obra foi publicada, e que se lidou com ela de
forma intencionalmente seletiva. Hoje sabemos que Friedrich Engels teve uma
participação significativa na reformulação dessa obra, especialmente dos
trabalhos mais tardios. Mas sobretudo foi aquela primeira geração que – de Karl
Kautsky, passando por Rosa Luxemburg, até Lênin – gerou e construiu aquilo que
mais tarde, sob o nome de marxismo, numa alusão a posteriori a Marx, provocou
distorções políticas do sistema.
A obra de Karl Marx ainda serve
para analisar as circunstâncias atuais?
Há dois aspectos que mantêm uma
atualidade ininterrupta. Primeiro, a obra de Marx é única na análise das
condições de desigualdade social. Se a essa análise se aplica uma terminologia
de classes, é, a princípio, totalmente secundário. Marx chamou a atenção, de
forma inigualável, para a distribuição desigual das oportunidades e condições
de vida.
Em segundo lugar, vivenciamos
atualmente formas bem específicas de uma "economização" de nossas
relações sociais; uma certa dinâmica do capitalismo que Marx não tinha em
mente, mas que pelo efeito penetrante em todas as esferas da vida, se pode
analisar de modo bem semelhante ao que Marx fez em sua época.
Uma das frases mais famosas de
Marx se encontra noManifesto do Partido Comunista. Ele descreve o processo da
evolução capitalista, que na época provocou uma tremenda dinamização das
condições de vida. Marx escreveu a respeito: "Tudo o que se referia às
ordens sociais e era estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é
dessacralizado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com olhos
sóbrios sua situação de vida e suas relações recíprocas. " O senhor vê na
palavra "finalmente" (endlich) uma alegria secreta em relação a esse
desdobramento?
Há um problema na formulação da
palavra "endlich". Eu a interpretaria no sentido de "por
fim". Marx percebe em torno de si, não tanto na Alemanha, mas
sobretudo na Inglaterra, um ritmo de mudança social que ele considera fora do
comum e sem precedentes. Por isso, vê que os percursos até então calmos de uma
ordem social baseada por condições de vida marcadas por estratos sociais,
privilégios de nascença, relações familiares bem definidas, continuariam a se
romper. Seus contemporâneos eram confrontados com uma realidade que, por assim
dizer, lhes tirava o chão de sob os pés.
Talvez o Manifesto Comunista possa
ser interpretado como uma espécie de atestado da globalização, ou pelo menos de
uma confluência europeia. Ele descreve como a tecnologia se desenvolvia, como,
por exemplo, ferrovias e redes de navegação se alastravam cada vez mais.
Certo. No entanto o próprio Marx
tinha uma consciência muito clara da limitação de suas análises. Há cartas
tardias, endereçadas a ativistas russos, onde ele enfatiza que suas análises
foram escritas tendo em vista a Europa Ocidental. Marx era absolutamente
consciente da complexidade do mundo e, por conseguinte, das limitações de sua
própria vivência. Mesmo na Europa, os desdobramentos que ele descrevia eram
altamente solitários. Manchester foi tomada como exemplo para a Inglaterra, mas
isso era naturalmente um completo exagero. Na época, Manchester era, com sua
produção têxtil, um cosmos relativamente solitário na Inglaterra. A Alemanha,
de todo modo, estava bem atrasada em relação a essas condições.
E no entanto parece que ele
captou bem cedo uma dinâmica que pode ser observada hoje no mundo inteiro.
O trabalho infantil, que Marx
condenava e lutava para que fosse abolido, é algo que conhecemos também hoje em
dia, como no caso de empresas têxteis de âmbito global na Ásia ou no Sudeste
Asiático. Ali vemos um deslocamento que Marx analisou com precisão em relação
ao Ocidente. Primeiro, a produção barata é transferida. Depois se desenvolvem
ali, como acontece agora na China, polos de produção de maior qualidade,
resultando num aumento do nível salarial.
A produção barata então emigra
novamente para outras regiões do mundo, ainda mais pobres. Isto é, podemos
perfeitamente observar a elevação relativa do padrão de vida enquanto a
exploração permanece constante – para usar os termos de Marx. E isso já permite
questionar se aquilo que Marx analisou para a Europa Ocidental não pode também
ser universalizado em aspectos marcantes, ou seja, se mostra sua relevância
numa perspectiva global.
Kersten Knipp (sc) | Deutsche
Welle
Foto: Dupla estátua de Marx e
Engels em parque em Xangai, China
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