“Ciganos de Ciambra”, de
Jonas Carpignano, denuncia miséria da vida infantil na Calábria, onde as
migalhas da riqueza capitalista são disputadas por italianos, ciganos e
imigrantes ilegais africanos
José Geraldo Couto* | Outras
Palavras
Crianças e adolescentes
indomáveis, crescendo num ambiente hostil, são um tema recorrente nos dramas
sociais, e diante de Ciganos da Ciambra muita gente inevitavelmente
se lembrou de clássicos como Os esquecidos, de Buñuel, Os
incompreendidos, de Truffaut, e Pixote, de Babenco.
Mas o filme de Jonas Carpignano se
passa na Itália, berço do neorrealismo, que fecundou praticamente todas as
cinematografias do mundo, e talvez fosse mais pertinente lembrar que a infância
desamparada e rebelde esteve no centro de grandes marcos neorrealistas, de Vítimas
da Tormenta (Vittorio De Sica, 1946) a Alemanha ano zero (Roberto
Rossellini, 1948), passando pelo episódio napolitano de Paisà (Rossellini,
1946).
De certo modo trata-se, portanto,
de uma volta às origens, a mostrar que o cinema italiano não se diluiu no
sentimentalismo de um Tornatore nem na afetação de um Sorrentino.
Escombros de ontem e de hoje
Se os meninos de Rossellini e De
Sica se moviam entre os escombros de uma Europa devastada pela guerra, o
pequeno cigano Pio (Pio Amato), de catorze anos, é obrigado a se virar num
ambiente marcado por outro tipo de conflagração, a criminalidade de um lugarejo
da Calábria em que as migalhas da riqueza capitalista são disputadas por
italianos, ciganos e imigrantes ilegais africanos.
A numerosa família de Pio (avô,
pai, mãe, tios e uma infinidade de irmãos e sobrinhos) sobrevive de pequenos
delitos, como o roubo de carros e acessórios. E aqui entra outro procedimento
herdado do neorrealismo, a utilização de não-atores: os parentes do
protagonista são todos membros da verdadeira família Amato.
O que primeiro chama a atenção, logo
no início, é a condição desregrada das crianças, que fumam, bebem, dirigem
carros e motos. Um menino de não mais de cinco anos fuma com a maior
desenvoltura entre irmãos e primos, na frente da sua casa. Quando sua jovem mãe
ou tia esboça intervir, ele diz: “Vou mijar na sua boca”. Ela ri. É desse tipo
de violência que trata o filme, mais do que de tiros ou pancadas.
O que impede Ciganos da
Ciambra de ser apenas um vívido registro naturalista de uma comunidade
pobre, à maneira do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou do
filme Feios, sujos e malvados, de Ettore Scola, é a dimensão moral,
trágica, que adquire a trajetória de Pio. É, em essência, um romance de
formação, ou antes de deformação.
Aprendizado tenso
Quando o pai e o irmão de Pio são
presos por roubo, o garoto se sente chamado a ocupar o lugar deles no sustento
da família, e passa a praticar delitos cada vez maiores. Até sua amizade
aparentemente desinteressada com um imigrante de Burkina Fasso (Koudous Seihon)
é contaminada no processo.
O aprendizado de vida de Pio (que
aliás é analfabeto), suas interações sociais, sua iniciação sexual, tudo isso
se dá num quadro de crescente tensão, premido pela necessidade material, pelo
ímpeto juvenil e pela vigilância da polícia.
Diferentemente dos clássicos
neorrealistas, compostos em grande parte de planos longos de conjunto, com uma
profundidade de campo que permitia a formação de um quadro geral das relações
entre personagens e destes com o ambiente, em Ciganos da Ciambra quase
tudo é captado com uma nervosa câmera na mão, em planos curtos filmados muito
perto dos personagens. Corpos e espaços fragmentados, ações truncadas.
A impressão geral é de
despedaçamento, instabilidade, incompletude. Assim como a aprendizagem torta de
Pio, a vida naquele pedaço pobre do planeta, enclave de Terceiro Mundo no velho
e rico continente, segue aos tropeços – e ninguém sabe aonde vai dar.
Em tempo: o filme tem Martin
Scorsese como produtor-executivo e o brasileiro Rodrigo Teixeira como
coprodutor.
*José Gerado Couto é crítico
de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS. Para
ler as edições anteriores da coluna, clique aqui.
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