domingo, 6 de maio de 2018

DESCENTRALIZAÇÃO | Poucochinho!


Afonso Camões* | Jornal de Notícias | opinião

Um famoso político, que aliás terminou a carreira perdendo eleições, achava que a melhor maneira de adiar uma decisão é criar um grupo de trabalho. Ele mesmo ironizava que um camelo é um cavalo desenhado por uma comissão. O político era britânico, mas os portugueses, uns e outros, especializaram-se na aplicação da doutrina. E um exemplo acabado é o da descentralização.

Por mais que façamos de conta, há quem nos tope de longe. Um correspondente da imprensa estrangeira residente em Lisboa reportava, há dias, que "bem pode a França ficar com a fama, mas há poucos países na Europa mais centralizados que Portugal". Apesar do objetivo descentralizador estar inscrito na Constituição e constar dos cardápios eleitorais de todos os partidos, as desigualdades regionais têm vindo a acentuar-se e cavámos mais fundo o fosso na distribuição da riqueza. O rendimento da Área Metropolitana de Lisboa representa 110% da média na União Europeia, mas o do Norte só equivale a 64%, o do Centro, a 68% e o do Alentejo, a 73%. E há a chaga do despovoamento e do abandono da metade interior do país para que só teremos acordado depois das tragédias do último verão.

Aquele aperto de mãos de António Costa e Rui Rio, a selar a "declaração conjunta sobre descentralização", foi um bom sinal, é certamente uma das fotos do ano, mas é poucochinho. Limitou-se, por ora, a criar mais uma comissão, a estabelecer novos prazos e, para aquietar autarcas, assumir o compromisso de que haverá um envelope financeiro que compense a transferência de competências para as autarquias locais. É justo que se pague o que é devido, mas o acordo é omisso quanto à reorganização do mapa administrativo. Da última vez que se mexeu nele, extinguiram-se (por fusão) muitas dezenas de freguesias. Quase sempre bem, quando se tratou de freguesias urbanas, em sedes de concelho. Mas faltou coragem para propor a fusão de municípios, atualizando um mapa político com quase dois séculos. Olha-se para ele e percebe-se que mais de metade dos nossos municípios tem menos de 20 mil habitantes, ou seja, caberiam todos no Estádio do Fontelo, em Viseu. E que um em cada 10, entre os 308 concelhos, tem menos de 5 mil habitantes, menos do que em alguns condomínios de Gondomar ou da Amadora, e até menos que o número de amigos que alguns juntam no Facebook. Ora, insistir em ignorar o território e as distorções do mapa é continuar a atirar dinheiro para cima de um problema sem o resolver, com medo dos votos que ainda representam muitas dezenas de régulos locais e regionais que sobrevivem à custa das suas clientelas.

*Diretor do JN

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