Entrevista com Atilio Borón
Uma importante entrevista em que é feito o ponto da situação
da ofensiva imperialista em diversas zonas do mundo – com particular destaque
para a América Latina -, da resistência dos povos, da generalizada ausência de
influentes forças políticas revolucionárias que assumam a vanguarda da luta de
massas anti-imperialista e anticapitalista.
Mohsen
Abdelmoumen | O Diário.info
Mohsen Abdelmoumen: Como explica o recuo da esquerda e a
ascensão da extrema-direita na América Latina, como vimos no Brasil com a
eleição do fascista e torcionário Jair Bolsonaro e com Mauricio Macri na
Argentina?
Prof. Atilio Borón: Há muitas razões, que só posso resumir
aqui. Primeiro, foi impressionante a intensidade da contraofensiva dos EUA para
derrotar os governos progressistas. Macri foi um presente inesperado, mais
devido aos erros do kirchnerismo do que a qualquer outra coisa. Mas a vitória
foi muito importante para os Estados Unidos. Bolsonaro é o produto da
desmobilização do PT levada a cabo por Lula desde o início, da completa
corrupção do sistema judicial que colocou Lula na prisão e permitiu que
Bolsonaro não estivesse presente nos debates presidenciais, o apoio constante
dos media hegemónicos e, claro, os graves erros dos governos Lula/Dilma, que
acreditavam que a política social e o retirar de milhões de pessoas da pobreza
extrema seriam suficientes para mudar a consciência popular e transformá-los em
defensores de políticas progressistas. Como na Argentina, era uma política de
redistribuição de renda sem educação de massas ou socialização. Além disso, o
problema da violência dos gangues nas favelas era crucial no Brasil, e não foi
bem combatido pelos governos do PT, dando a impressão de que a única política
que eles tinham para lidar com este problema sério era um programa de educação
cívica de longo prazo que, naturalmente, não conseguiu impedir o avanço
vertiginoso do crime em bairros da lata e favelas. Propaganda subtil e
metadados, mais a Cambridge Analytica e a habilidade de Steve Bannon fizeram o
resto. O Brasil provou, como antes os EUA, que “notícias falsas” são geralmente
consideradas informações confiáveis. Assim, as mentiras e a difamação da
campanha de Bolsonaro foram extremamente eficazes.
MA - No seu muito relevante livro ” Twenty-First Century
Socialism: Is There Life After Neo-Liberalism?”, demonstra que a América
Latina não tem qualquer perspectiva com o capitalismo, e desmente as teses
neoliberais que afirmam que o capitalismo é o remédio para todos os males. Não
pensa que o sistema capitalista simplesmente fracassou, seja no centro
capitalista como se vê com o movimento dos Coletes Amarelos em França, mas
também na periferia? Não acha que o sistema capitalista não oferece perspectiva
em nenhum lugar?
AB - O capitalismo foi um enorme fracasso. Muitas conquistas
tecnológicas e subidas muito modestas no padrão de vida das maiorias sociais
combinaram-se com uma concentração irresistível da riqueza e dos rendimentos,
tanto no centro como na periferia. O livro de Thomas Piketty e milhares de
artigos e livros provaram isso, e a tendência não pode ser revertida. Hoje, o
1% mais rico da população mundial apropriou-se de mais riqueza do que os 99%
restantes. Esta situação não tem precedentes na história do mundo! E é
política, social e economicamente insustentável. Além disso, recentes
desenvolvimentos capitalistas prejudicaram a Mãe Natureza como nunca antes.
Assim, a “segunda contradição” do capitalismo, como postulado por Jim O’Connor,
tornou-se fatal nos dias de hoje. Basta analisar com suficiente atenção as
catástrofes ambientais da mudança climática para entender a magnitude desse
problema e a total incapacidade das sociedades capitalistas para lidarem com
ele.
MA - Na sua opinião, não traz consigo o capitalismo a sua própria
ruína?
AB - Sim, foi a principal tese de Marx nos seus escritos, mas
também foi estabelecida, embora metafisicamente, pelas penetrantes reflexões de
Hegel sobre a dialética dos mercados e da sociedade civil no capitalismo. Mas,
como Lénine ensinou, o sistema capitalista não entrará em colapso a menos que
as forças sociais e políticas o derrubem. Bernstein estava errado a este
respeito e Marx e quase todos os seus seguidores estavam certos em apontar a
necessidade de uma força revolucionária, seja um partido, um movimento ou
qualquer outra organização popular. Por si mesmo, o capitalismo perdurará
apesar das suas contradições e, nesse processo, a barbárie tornar-se-á o seu
sinal distintivo.
MA - Na sua opinião, o movimento dos Coletes Amarelos que surgiu
na França e que está a espalhar-se na Europa não será um movimento
revolucionário e fundamentalmente anticapitalista?
AB - É uma revolta popular, anti-neoliberal, mas não inteiramente
anticapitalista. Além disso, é uma colecção extremamente heterogénea de actores
sociais e não tenho a certeza de que no final todos estariam prontos a atacar a
cidadela ou o poder capitalista. Não ficaria surpreso se uma parte
significativa deles concluísse o seu activismo juntando-se às forças da
direita. O “poujadismo” foi uma experiência muito importante na França do pós
segunda guerra mundial.
MA - Não acha que há necessidade de refundar a esquerda na
América Latina e no mundo? A classe trabalhadora não terá a necessidade
imperiosa de uma estrutura revolucionária que corresponda às exigências do
momento?
AB - Sim, é absolutamente necessário. Mas somos confrontados com
um problema crítico: a divisão das condições objectivas da revolução, já
suficientemente maduras, e o atraso na constituição de uma consciência
revolucionária, o atraso no amadurecimento das condições subjetivas. Apesar do
passado, a perspectiva revolucionária é completamente invisível para as massas,
na América Latina e no resto do mundo. A formidável eficácia dos aparelhos
ideológicos do Estado capitalista apagou completamente a revolução da paisagem.
Portanto, a enorme importância da batalha ideológica é de convencer as massas
de que a revolução não é apenas possível, mas necessária. Em segundo lugar, uma
vez que a primeira tenha sido alcançada, deveríamos encontrar a forma política
apropriada para canalizar o renovado impulso revolucionário das massas. Os
partidos leninistas ou gramscianos tradicionais são a resposta certa para um
novo proletariado mundial, imenso e muito heterogéneo, fragmentado em milhares
de pequenos pedaços, como um espelho quebrado? Eu duvido disso. O dito de
Mariátegui de que “a revolução não pode ser nem uma “cópia verdadeira”
(calco,”traço”), nem uma réplica mas uma criação heroica das massas” é mais
válida do que nunca.
MA - O ex-assessor de Trump, Steve Bannon, está em vias de
federar toda a extrema-direita na Europa. Sabendo que na América Latina, os EUA
apoiaram fascistas como Bolsonaro e Macri, não pensa que existe um plano
liderado pelo governo dos EUA para unir toda a extrema-direita no mundo?
AB - Sim, de facto. E isso foi explicitamente declarado por
Bannon e muitas outras pessoas. É uma aspiração de longa data do governo dos
Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e a rápida mudança no
clima político (numa direcção reacionária, começando na Europa por causa dos
refugiados e a crescente presença de população muçulmana) forneceu a Trump uma
oportunidade de ouro. No entanto, o resultado está longe de ser o que eles
esperam e numerosos factores intervêm na evolução da situação política. Os
resultados podem ser muito decepcionantes para o governo dos EUA.
MA - Segundo a sua opinião, em alguns países susceptíveis de
sofrer intervenções imperialistas visando as riquezas do seu subsolo e por
interesse geopolítico, como por exemplo a Argélia, não haverá necessidade de
ter dirigentes legítimos e honestos e instituições fortes para evitar o caos?
Ibn Khaldun profetizou que os tiranos atrairão os invasores; os verdadeiros
aliados do imperialismo não serão os dirigentes corruptos e ilegítimos?
AB - Para combater o caos criado pelo imperialismo, uma liderança
honesta e instituições fortes devem ser acompanhadas por uma mobilização
popular intensa e bem organizada. Há muitas histórias na América Latina em que
governos honestos foram expulsos por golpes de estado promovidos pelo governo
dos EUA e seus aliados oligárquicos no terreno. Tomemos o caso de Salvador
Allende no Chile em 1973 ou de Arturo U. Illía na Argentina em 1966, dois
exemplos eloquentes do que digo. Em contrapartida, a sabotagem, a corrupção e o
despotismo foram as marcas de todos os regimes estabelecidos após a intervenção
imperialista na América Latina ou no Caribe. Casos como Alfred Stroessner no
Paraguai, François Duvalier no Haiti, Rafael L. Trujillo na República
Dominicana e Anastasio Somoza na Nicarágua, para não mencionar ditaduras mais
recentes na Argentina, Brasil e Chile, mostram conclusivamente que os Estados
Unidos e os interesses burgueses locais não acreditam em procedimentos democráticos.
A retórica da direita é absolutamente falaciosa. Se, para fazer prevalecer os
seus interesses, eles necessitam de matar, encarcerar ou torturar, eles farão
tudo isso. Tomemos o caso de Sukarno na Indonésia e o assassínio em massa de
meio milhão de pessoas para limpar o país de “comunistas”; ou os milhares de
“desaparecidos” na Argentina, ou magnicídios perpetrados contra personalidades
destacadas da esquerda na América Latina como João Goulart, Pablo Neruda,
Orlando Letelier (em
Dupont Circle , Washington DC !!!), Omar Torrijos do Panamá e
Jaime Roldós do Equador, entre as personalidades mais conhecidas. O
imperialismo e os governos honestos não vão bem juntos. A luta pela
autodeterminação nacional, para uma democracia dinâmica e uma governança honesta
está condenada ao fracasso sem uma forte resistência contra o imperialismo,
verdadeiro factótum dos regimes mais atrozes que já conheci na nossa região.
MA - Sobreviverão as conquistas da revolução sandinista na
Nicarágua aos contínuos ataques do imperialismo dos EUA?
AB - Penso que sim, mas à custa de um endurecimento do regime
político. Uma cidadela sitiada nunca oferece um terreno fértil para a
tolerância, o pluralismo, liberdades desenfreadas. Mas os planos do império são
exactamente de fazer os sandinistas regredir numa involução não democrática
levando a uma “crise humanitária” que poderia servir de prelúdio a uma “solução
Líbia”, invasão, caos social e econômico, desordem e linchamento de Ortega e
dos seus próximos.
MA - Não há risco de intervenção americana na Venezuela?
AB - Existem planos. O Comando Sul disse-o há alguns anos. O
problema com que estão confrontados é que as forças militares bolivarianas são
fortes, bem equipadas e prontas para lutar. O Exército brasileiro hesita em
participar numa invasão e os seus homólogos colombianos temem que a distração
das suas forças na Venezuela crie as condições para um crescimento rápido da
guerrilha no seu país. Então, eu não excluiria a possibilidade de uma
intervenção militar cirúrgica dos Estados Unidos na Venezuela, mas até ao
momento tudo não passou de conversas e nenhuma ação. Além disso, de forma não
militar, é persistente a intervenção norte-americana na Venezuela desde a
ascensão de Chávez em 1999. Sanções económicas, sabotagem, tentativas de golpe,
pressão diplomática, bloqueio comercial etc. têm sido comuns e persistentes ao
longo de toda a experiência bolivariana.
MA - Como analisa a transição política em Cuba? Como explica o
contínuo encarniçamento do governo dos EUA contra Cuba desde que o embargo foi
introduzido em 1962?
AB - É uma longa história. Já em 1783, John Adams solicitou a
incorporação de Cuba sob a jurisdição dos Estados Unidos. Cuba tem um enorme
valor geopolítico enquanto principal porta de entrada para o Caribe,
considerado pelos militares e estrategas dos EUA como uma espécie de “mare
nostrum”, e eles não aceitam o facto de Cuba agir como como nação soberana, com
autodeterminação e não queira receber humildemente as ordens da Casa Branca. O
bloqueio fracassou porque o regime revolucionário não caiu, mas os sofrimentos
infligidos ao povo cubano são enormes e criminosos, tal como os obstáculos que
o bloqueio causou ao desenvolvimento económico de Cuba. No entanto, a Revolução
continua capaz de oferecer melhores políticas sociais em matéria de saúde,
educação e segurança social do que a maioria dos países do mundo e, para
Washington, é um “mau exemplo” intolerável que deve ser erradicado a todo o
custo. Até agora, não foram capazes de o fazer e não penso o farão num futuro
próximo.
MA - Vê-se, por exemplo, o martírio do povo palestino pela
entidade criminosa de Israel, ou o massacre do povo do Iémen pela Arábia
Saudita, aliada dos Estados Unidos. Não será necessário ter uma frente mundial
anti-imperialista seja na América, África, Europa ou Ásia, onde os povos compartilham
a mesma luta: resistir ao imperialismo que devasta os países e o capitalismo
que explora e sangra os povos?
AB - Absolutamente. Chávez queria criar essa frente
anti-imperialista, mas a sua solicitação não foi bem acolhida porque muitos
interpretaram mal a sua proposta como sendo um renascimento ou a Terceira
Internacional sob Stalin. Foi estúpido, mas infelizmente numerosas organizações
populares seguiram essa linha. Samir Amin, François Houtart e eu próprio
propusemos a criação de uma tal frente internacional no Conselho Internacional
do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e fomos derrotados, em grande parte
devido à oposição de ONG’s poderosas que rejeitaram essa ideia. Não apenas
isso: essas ONG’s foram também instrumentais na disseminação de um forte
sentimento “antipolítico” que desprezava os partidos políticos, os dirigentes
políticos e as agendas políticas. A tal ponto que foi muito difícil convidar
Lula e Chávez para as reuniões sucessivas do Fórum. Hoje, isso mudou, embora eu
não tenha certezas quanto à profundidade e coerência desse desenvolvimento
promissor.
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