"A Opinião" de Fernanda
Câncio, na Manhã TSF
"O meu filho está num
colégio privado e, às vezes, chega a casa a contar que lhe chamaram «preto».
Até já fui à escola por causa disso. É o único negro lá. A minha filha agora
está na escola pública e deixou de sentir isso, porque há lá mais negros."
Estas frases não são de um dirigente do SOS Racismo. Não são de Mamadou Ba,
homem que, nas últimas semanas, tanta gente decidiu odiar. Não são sequer de
uma pessoa de esquerda. São de um deputado do CDS, o único deputado negro no
parlamento português, Hélder Amaral, numa entrevista que lhe fiz para o Diário
de Notícias, em 2015.
Amaral nasceu em Angola, há 51
anos, e veio para Portugal com 6 anos, para uma aldeia do Norte, onde a sua
família era a única negra. Não me falou do que foi crescer assim. Mas falou do
que é para os seus filhos, quatro décadas depois: "O que mais me choca é
eles sofrerem com isso."
Hélder Amaral não vive no bairro
da Jamaica. Nem num bairro social. Não é pobre. Anda de fato e gravata,
frequenta aquilo a que se dá o nome de «corredores do poder». Mas isso não o
impede de ver os seus filhos sofrer por serem negros. Como não o impediu de
sofrer quando o viram a acompanhar Paulo Portas e o trataram, conta, como se
fosse o segurança ou o motorista.
Talvez como forma de defesa, de
negação ou por a questão da discriminação racial não ser um tema para o seu
partido, Amaral nunca a abordou na sua actividade política. Daí que, quando
decidi ligar-lhe para lhe pedir uma entrevista, não soubesse bem como dizer-lhe
qual o tema: ser o único deputado negro.
Fiquei surpreendida quando me
agradeceu-me dar-lhe oportunidade de falar do assunto. Porque, disse,
"acho que é preciso chamar a atenção."
Chamar a atenção, explicou, para
o facto de o Parlamento "representar ou dever representar toda a variedade
da sociedade portuguesa" - e, no entanto, não ter mais negros. Chamar a
atenção para "o tratamento diferenciado", e não no bom sentido, de
que se sente alvo. Para os momentos de desânimo em que diz a si mesmo:
"Vou para casa, já foi uma sorte chegar aqui."
Chamar a atenção para a
invisibilidade, para a ausência de representação dos negros portugueses, para o
sentimento de não serem portugueses: "Tem tudo a ver", diz, "com
a invisibilidade". "Há um longo caminho a fazer em termos de
integração. Basta olhar para a TV. Aparecem de vez em quando uns negros nas
novelas... Mas pivôs negros, há algum? Os miúdos negros não se sentem
representados."
Ao ouvir esta semana a entrevista
que Mamadou Ba deu a Daniel Oliveira, no podcast 'Perguntar Não Ofende', dei-me
conta de como tanto do que ali diz coincide com o que o deputado centrista
Hélder Amaral me disse em 2015.
Ambos denunciam a existência de
um racismo estrutural no país. Ambos dizem que Portugal é racista e é preciso
falar disso. Se dizem de Mamadou que é radical, terão de o dizer também de
Amaral. Se acusam Mamadou de se vitimizar, terão de acusar o deputado do CDS do
mesmo.
Ou talvez se possa olhar para
estes dois homens, um do Bloco e outro do CDS, e concluir que é possível que saibam
mais sobre discriminação racial do que quem faz parte da maioria branca. Que é
altura de esta democracia com quase 45 anos deixar de fingir que não vê cores.
*a autora não escreve segundo o
Acordo Ortográfico de 1990
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