quarta-feira, 8 de maio de 2019

Portugal | Gelados e congelados


Como descongelar aos professores e, por arrastamento, a todos os funcionários públicos as agruras sofridas por eles, impostas pelo programa de austeridade nos tempos da dita “troika”?

Carlos de Matos Gomes* | Jornal Tornado | opinião

Como descongelar aos professores e, por arrastamento, a todos os funcionários públicos as agruras sofridas por eles (e por todos os portugueses, lembre-se), impostas pelo programa de austeridade nos tempos da dita “troika”? Esta é a pergunta que, com aparente desejo de justiça e real demagogia, fazem os defensores da reposição da situação anterior. Do tempo volta para trás.

A resposta irónica poderia ser: Vão à sala do PEC IV do Palácio de São Bento e falem com o quarteto da foto, que representa os mesmos que se aliaram para trazer a troika e os congelamentos há alguns anos. Devem ser os donos do microondas descongelador. Isto até às declarações de fim-de-semana de Cristas e Rio a dar o descongelado por, afinal, no fundo da arca congeladora.

 

Agora a sério:

A aparente justiça da exigência de que os salários dos funcionários públicos, professores em primeiro lugar, congelados durante o tempo de crise têm de ser recuperados no tempo futuro, mesmo à custa do futuro e da equidade, esconde a falácia de nunca os seus reivindicativos promotores explicarem que a remuneração dos funcionários públicos não resulta dos mesmos factores dos salários da economia real, da competição e do mercado. Da aparente justiça chega-se à real injustiça da lei do mais forte, ou mais protegido.

Parece evidente, até pelo elevado número de candidatos aos concursos para admissão na “função pública”, que a remuneração desta é muito mais atractiva do que a da generalidade do emprego no sector privado. As causas desta atractividade – segurança no emprego, carreiras, assistência social, entre outras – são factores de remuneração nunca invocados na luta sindical do funcionalismo do Estado. A remuneração dos funcionários públicos não está indexada ao desempenho da função, nem da organização. Na realidade, a remuneração dos funcionários públicos resulta de um consenso entre o possível e o desejável, dentro da norma de que as despesas de funcionamento da administração, e despesas com pessoal, não devem ultrapassar uma dada percentagem do orçamento do Estado.  

As perguntas: Então o tempo não conta? Ou: Não é de absoluta justiça o tempo de trabalho contar, mesmo retroactivamente? (todo o tempo é contado retroactivamente, já agora) são demagógicas em si mesma. Os funcionários são remunerados de acordo com as mais-valias e o lucro resultante da introdução do seu trabalho na cadeia de valor de um produto, de acordo com as prioridades e as possibilidades do governo eleito (o administrador da “fazenda nacional”) e dentro de um princípio de justiça para todos os cidadãos. Confundir justiça – um bem geral – com interesses corporativos é demagogia.

As perguntas sobre a ofensa sofrida pelos atuais funcionários públicos com o congelamento in illo tempore têm subjacente a demagogia de esta ser apresentada como se fosse a primeira vez que tal acontece e que os professores foram e são a única classe profissional a sofrê-la. O doutor Nogueira deve ter alguém no seu estado-maior com algum conhecimento da época histórica que ficou conhecida por “fontismo” – com acções muito boas em termos de desenvolvimento e coisas más, em termos de contas públicas. Acontece que o endividamento deixou então de ser amortizável, Portugal abandonou o padrão ouro, e uma das consequências foi os funcionários públicos estarem dois anos sem receberem salários. Isto no século XIX. No século XX, quer na República, quer no Estado Novo, houve redução nos salários dos funcionários e degradação das suas carreiras, resultantes de falta de recursos, nomeadamente nos professores primários, que foram substituídos por regentes escolares…

Nos anos 80 do século vinte são conhecidas (mas esquecidas) as dramáticas situações de salários em atraso, de fome, miséria, de bandeiras negras em particular na península de Setúbal e no Vale do Ave. Também esses trabalhadores devem ter direito a “descongelamento”. Ou não? Ou a situação dos professores, enfermeiros, magistrados, militares, guardas e polícias é mais dramática do que foi a deles? O PCP não quererá repor os salários aos operários vítimas do desmantelamento da indústria têxtil e da indústria naval?

A demagogia e o egoísmo corporativo implícitos na invocação do direito a exigir tudo e à custa de todos os outros remete-me para a sensatez de uma pequena história de André Brun, autor de operetas de sucesso (A Maluquinha de Arroios, p.ex), antigo expedicionário na Flandres, onde terá sofrido ataques de gás, provável origem da tuberculose que o vitimou. Na fase final da doença, alguns amigos foram vê-lo e um deles ter-lhe-á perguntado: Como vais, André? E ele terá respondido, com senso e humor: Como todos, de fato preto e sapatos de polimento.

A vida é uma sucessão de circunstâncias. E a vida em sociedade só é possível com justiça e razoabilidade. É estranho serem os professores os últimos a perceberem esta velhíssima realidade histórica e filosófica.

*Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

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