segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Portugal | PORTÕES DE CHIFRE E MARFIM

Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião

O jornalismo português é uma Bela Adormecida que se estremunha a meio da noite, só para cair num sono ainda mais profundo. Sobretudo nestes últimos anos, abdicou da velha e preciosa máxima: "Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Tudo o resto é propaganda", para almoçar com o poder monopolista e meter-se na cama com os governantes. Como se não bastasse, durante a gestão da covid, perante um inédita e colossal transferência de riqueza para o 1% - concomitante ao ataque aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos - esteve calado que nem pato mudo, repetindo como papagaio as maiores contradições e absurdos. Mas eis senão quando, súbito e inopinado, abriu a pestana para rasgar as vestes perante a Federação Portuguesa de Futebol e o Jornal I. Sentou-se no leito de olhos arregalados, esbracejou como afogado para logo voltar a deitar-se nos braços de Hipnos e Morfeu, porventura já passando para estado comatoso. Mas sempre com o "livro de estilo" como manual de cabeceira.

Esteve bem a repórter Rita Latas da Sport TV. Em mais de dois anos, finalmente um órgão sindical ficou indignado por uma jornalista ser alvo de um processo disciplinar ao ser incómoda. Boa. Mas onde guardaram todos esses princípios em 2020, 2021 e 2022? Sob a almofada? Foi lá que meteram o contraditório e a dúvida? Enfiaram a isenção e a ética debaixo da cama? Como é que jamais ousaram questionar dogmas, medidas loucas e venenosas, a indução da histeria de massas?

A desorientação é tão funda que, dias depois, destilaram fel perante o tal diário que manchou de sangue a Festa do Avante! e seus artistas. Falam de processar o jornal, de indemnizações, da ERC. Portanto, ora fecham os olhos aos monopolistas, ora mandam olho preguiçoso às vítimas da gestão insana da covid, ora condenam o PCP por ter uma posição diferente sobre a invasão da Rússia, ora voltam a despertar, tipo mortos-vivos por causa de uma capa. Espezinharam a Liberdade de Imprensa e agora agitam-se? Essa estampa não é informação? Será discurso de ódio e incitamento à violência? Manipulação? Crime? E quando defendiam a supressão de cuidados de saúde e de bens alimentares para não-vacinados, era o quê? E quando insultavam quem apenas se limita a formular uma questão? E quando essas e outras pessoas são censuradas nas redes sociais e em muitos órgãos de comunicação social? A geringonça calou-se, não foi? Agora lesaram os artistas? Só é errado quando a Rússia intimida Abrunhosa? E os perigosos precedentes, estados de excepção, alçapões cavados estes anos? Lá está, as coisas são mais complexas do que querem publicitar. E se em 1968, o coreógrafo Maurice Béjart, no Coliseu dos Recreios, não tivesse aproveitado para condenar todas as ditaduras pedindo um minuto de silêncio, cumprido com a maioria dos espectadores de pé? E se o baixista Charlie Haden não tivesse na sua actuação no Cascais Jazz de 1971 dedicado uma música aos movimentos de libertação de Angola e Moçambique? Pois é. A Liberdade de Expressão é uma flor delicada que só pode nascer inteira e na qual cada pétala conta. Não vem às postas, nem aos soluços. Isto dos jornalistas serem comissários políticos e pés de microfone em dias pares, mas intrépidos nos ímpares já acabou. E não foi um final feliz.

*Psicóloga clínica.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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