sábado, 8 de abril de 2023

Angola | O RASCUNHO DA VERDADE HISTÓRICA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Em tempo de aldrabices e falsificações convém olhar para a verdade dos factos. Eis o texto integral da entrevista que Agostinho Neto me concedeu, publicada em Maio de 1975, no jornal português “Diário de Notícias”, na época o de maior tiragem em Portugal e do qual eu era correspondente na África Austral:

Artur Queiroz - O “bureau” político do MPLA anunciou num comunicado que o desencadear de nova onda de violência leva as FAPLA - Forças Armadas Populares de Libertação de Angola - a abandonarem as suas posições defensivas e a assumirem uma posição de ataque. Tal atitude é possível em zonas mesmo onde a FNLA tem maior implantação militar?

Agostinho Neto - Os sucessivos ataques da reacção contra o MPLA não podem deixar de provocar uma profunda indignação nos elementos que constituem as FAPLA e, em todo o país, nós verificamos que essa indignação cresce. A repetirem-se os ataques, certamente que as FAPLA irão reagir. É certo que nós não temos a mesma força e a mesma implantação militar em todo o território. Nós temos pontos fracos e pontos fortes. Mas é preciso que ao analisarmos este problema, não vejamos simplesmente o número de soldados e o número de armas, mesmo até a qualidade das armas de que os soldados dispõem. Nós temos de contar com outro elemento que é fundamental nesta luta, esse elemento é o povo. E se, como disse, ainda estamos fracos sob o ponto de vista militar, em alguns pontos, podemos por outro lado contar com o apoio da maior parte do nosso povo, e é este elemento que será de terminante para a vitória das forças progressistas.

AQ – Esta situação pode afectar o processo de descolonização?

AN - A modificação da atitude por parte das FAPLA e do nosso movimento deve-se simplesmente ao facto de verificarmos que as forças reaccionárias se estão a instalar e a aumentar os seus ataques contra o MPLA, o que quer dizer contra os interesses do povo angolano, portanto contra os interesses das forças progressistas em Angola. O elemento fundamental dessas forças progressistas pode ser considerado a aliança entre o povo e as FAPLA. tentarão reagir e reagirão com toda a decisão, para que nenhum outro ataque possa ser feito neste país contra as forças progressistas e neste caso contra o processo de descolonização que nós queremos ver completado no dia 11 de Novembro.

AQ - Cabinda é controlada política e militarmente pelo MPLA, mas existe um movimento separatista cada vez mais activo. Também aqui o MPLA está preparado para enfrentar novos ataques das forças separatistas? 

AN - Sim! Cabinda é um distrito de Angola em que somente o MPLA combateu pela sua libertação e hoje o MPLA é realmente a força que controla esta parte de Angola política e militarmente. No entanto, é bom frisar que Cabinda tem sido objecto da atenção do Mundo devido à existência de grandes quantidades de petróleo e às enormes riquezas que existem no solo e no subsolo. 

AQ - Donde partem esses ataques?

AN - Essa situação por vezes manifesta-se pela expressão de apetites e cobiças quanto ao território. Nós vemos que, por exemplo, na última reunião do Comité de Libertação de África da OUA, Cabinda foi um dos pontos mais discutido. Há mesmo países que pedem um referendo especial para Cabinda, porque pensam que Cabinda é um território distinto do resto de Angola. Toda a gente conhece as manobras que têm sido feitas no plano internacional para que se destaque Cabinda de Angola. No entanto, no plano interno, o MPLA continua a controlar o território. 

AQ - Há ameaça de uma invasão militar?

AN - Não devo esconder que há ameaças que neste momento estamos a viver em Cabinda. Por exemplo, verifica-se a existência de importantes efectivos militares na fronteira sul, tropas essas que certamente se estão a preparar para um ataque. Há também um aumento crescente de efectivos da FNLA no sul de Cabinda que, nas últimas semanas foram transferidas do Zaire para o interior do país. Há também a considerar a existência de depósitos de armamento na parte norte, zona de Landana, pertencentes à FLEC, embora a organização esteja neste momento a desintegrar-se.

AQ - Desintegração política ou militar?

AN - A sua direcção que reside no Zaire dividiu-se em três partes. Há neste momento três tendências inconciliáveis. Um dos elementos mais importantes da FLEC, N'Zita Tiago, encontra-se preso em Kinshasa. Portanto, embora a FLEC não seja uma força importante para Cabinda e para Angola, embora não seja uma organização político-militar de valor, o certo é que muitos angolanos de Cabinda podem ser utilizados por forças estrangeiras, sobretudo as que existem perto das fronteiras de Angola. 

AQ - A direcção do MPLA está a tomar medidas preventivas?

AN - O nosso movimento tem naturalmente de se acautelar, já que desejamos defender até às consequências finais a integridade territorial do país e a unidade nacional. Temos de nos defender contra estes ataques que, cada dia, se desenham mais nítidos. As ameaças são cada vez mais nítidas e nós apenas podemos dizer que estamos preparados para rechaçar qualquer ataque, seja qual for a sua origem. E com a mesma determinação que nos anima, as FAPLA e o povo vão defender o território em todos os pontos de Angola.

AQ - Pela letra do Acordo de Alvor é da responsabilidade do Governo Português defender a integridade territorial de Angola até à independência. Perante a situação que se vive em Cabinda, as autoridades portuguesas em Angola já tomaram medidas concretas para impedir qualquer agressão?

AN - Eu não sei bem quais as medidas que são tomadas pela parte portuguesa para defender a integridade territorial em Angola, particularmente na região setentrional de Cabinda. É certo que em Cabinda os camaradas das FAPLA colaboram bem com os elementos do Exército Português. Há também boa colaboração ao nível das cúpulas e, portanto, é de presumir que haja uma certa colaboração também no plano militar, decisivo para Cabinda. No entanto, não tenho conhecimento do que fez concretamente a parte portuguesa.

AQ - As autoridades portuguesas em Angola vêm vindo a assumir uma posição de neutralidade, mesmo em ocasiões em que está em jogo a vida das populações. Há o perigo de se chegar a uma posição de rotura entre as autoridades portuguesas em Angola e o MPLA? 

AN - Em várias ocasiões eu tenho exprimido a minha opinião sobre a posição portuguesa em Angola. Já me referi diversas vezes à passividade com que a parte portuguesa tem assistido aos conflitos que são desencadeados em Luanda e de uma maneira geral em toda Angola. Esta política, a que chamam neutral, que se pretende isenta e a que chamam também uma política de imparcialidade perante os movimentos de libertação, é uma atitude que do ponto de vista do MPLA só pode prejudicar, não só Angola, mas também Portugal. Porque é muito fácil reduzir os conflitos que têm acontecido em Angola, como sendo conflitos entre movimentos de libertação. Não é bem assim, o que se passa é que há forças externas que desejam a recolonização de Angola. Essas forças querem manter sob o seu controlo as riquezas do país e querem manter o domínio sobre o nosso povo. Não desejam que o processo de descolonização vá até ao fim e que Angola seja completamente independente. 

AQ - Que solução defende enquanto líder do MPLA?

AN - Face a estes factos, só podemos ter uma atitude, a de combater contra essas forças. Porque, da mesma maneira que nós combatemos para chegarmos a esta fase, para que o nosso direito à independência fosse reconhecido, nós combateremos também para que esse direito possa ser aplicado ao nosso povo. No entanto, creio que nem tudo está perdido. Nós sempre tivemos o maior apreço pelo povo português, até porque é um povo que também luta contra o imperialismo, um povo que também foi oprimido pelo fascismo, um povo que se tem manifestado, da mesma maneira que nós, pela independência total de Angola. O facto de ter havido erros ou ambições por parte de alguns dos seus representantes, não significa que o MPLA vá deixar de ser aliado ou se vai separar completamente na sua actuação, do povo português e naturalmente continuaremos a trabalhar em conjunto com as autoridades portuguesas até ao fim da descolonização.

AQ - Neste momento há uma clara exploração das contradições raciais e tribais. Como está o MPLA a combater esta nova forma de ataque?

AN - Essa atitude por parte dos reaccionários é bem visível sobretudo em Luanda, durante os últimos conflitos em fins de Abril, princípios de Maio. Verificamos que há uma tendência para se aproveitarem das contradições entre a comunidade branca e negra, para amedrontar, por um lado, os brancos e por outro incriminar os negros. Eu penso que essas contradições que existem naturalmente no nosso país, contradições que derivam do colonialismo, assim como as contradições tribais que foram acentuadas durante o colonialismo, são fenómenos que devemos combater energicamente em vez de nos aproveitarmos deles para se realizarem determinados fins. Os reaccionários não pensam assim. Eles pensam exactamente explorá-los para agudizarem ainda mais os conflitos. Mas eu penso que, noutras áreas fora de Luanda, no sul, por exemplo, existem os mesmos fenómenos, as mesmas contradições, que não foram aproveitadas da mesma maneira. Neste momento estamos a assistir a um lamentável fenómeno no norte, ou melhor no nordeste, em que as contradições tribais são aproveitadas para agudizar um conflito que não é senão um conflito entre as forças da reacção e as forças progressistas. 

AQ - A direcção do MPLA tomou medidas?

AN - Claro que o MPLA já tomou medidas no sentido de combater concretamente esses ataques da reacção. Já instruímos os nossos militantes para que não se deixem arrastar para esse tipo de luta. Não é a luta contra o branco ou contra os que não pertencem ao nosso grupo étnico que pode resolver os problemas em Angola. O problema de Angola, o problema angolano só será resolvido quando nós encontrarmos uma unidade perfeita entre todos aqueles que compreendem o objectivo da nossa acção, todos aqueles que aderem à causa da independência do país, para que possamos fazer face em comum aos ataques das forças imperialistas que têm os seus apetites em Angola.

AQ - Dada a situação político-militar que se vive em Angola, não é de excluir o desencadear de um conflito generalizado. O presidente Neto acha que a data da independência e até a realização das eleições, podem vir a sofrer alterações?

AN - Bem, muitas coisas podem acontecer em Angola. Tudo depende do bom senso, da prudência e da combatividade daqueles que defendem a independência total e completa do povo de Angola. Nós temos de facto a ameaça de um conflito generalizado, um conflito que se quer provocar, exactamente para que não cheguemos ao fim do processo de descolonização em condições de continuarmos a vida que desejamos, que é empenharmo-nos no trabalho de construirmos um país livre e progressista após a independência. Há mesmo aqueles que querem destruir a ideia da independência no dia 11 de Novembro. Eu sei que haverá muitas dificuldades para a realização das eleições, já que é uma operação complicadíssima, especialmente nas condições que estamos a viver.

AQ - Quais são as dificuldades mais difíceis de ultrapassar?

AN - Após séculos de colonialismo e dezenas de anos de fascismo, a prática eleitoral não foi aplicada em Angola. O nosso povo, naturalmente ainda não está educado para o exercício da democracia, terá dificuldades em responder de uma maneira cabal às solicitações que se colocarão para que se realizem as eleições. Haverá dificuldades também de carácter técnico, que não sabemos ainda se será possível ultrapassá-las. No entanto, penso que mesmo nessas condições e uma vez que todos concordamos, devemos fazer tudo para realizar as eleições. 

AQ - As eleições têm de acontecer, mesmo que as condições não sejam as ideais?

AN - A meu ver, não é prudente chegarmos a este momento, quando ainda mal iniciámos a discussão sobre a lei eleitoral, quando ainda não aprovámos sequer uma lei fundamental, chegarmos à conclusão que não podemos efectuar as eleições. E as dúvidas que têm surgido ultimamente por causa dos conflitos, principalmente aqui em Luanda, não autorizam ninguém a dizer que as eleições são impossíveis. E é bom que se passe pelo teste das eleições para não continuarmos a viver esta dúvida sobre qual a tendência principal do povo angolano. Acho que o trabalho dos Movimentos de Libertação, do Governo de Transição e de todo o povo, deve ser em prol da realização das eleições.

Este é o texto integral da entrevista. Quem quiser pode consultar o número do Diário de Notícias do dia, mês e ano em que foi publicada. Cada qual que tire as suas conclusões. Mas é bom que ninguém dê ouvidos aos aldrabões e falsificadores.

*Jornalista

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