quarta-feira, 3 de maio de 2023

Portugal | O QUE É UM ASSUNTO DE ESTADO?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Há uma enorme distância entre os problemas palacianos, que causam tensões políticas e são capazes de derrubar ministros, para os problemas da vida real, que se arrastam mas não fazem mudar as políticas dos governos.

Olho (e participo), de um lado, para a discussão aberta sobre uma suposta cena de violência física entre funcionários políticos, o envolvimento do SIS na recuperação de um computador momentaneamente desencaminhado do Ministério das Infraestruturas e para a controvérsia sobre se os espiões portugueses fizeram um indevido serviço policial ou se aconteceu apenas um ridículo serviço de recolha ao domicílio.

Seja como for, o resultado conclusivo é igual: nos media repete-se a frase "este é um assunto de Estado grave, muito grave, extremamente grave..."

Olho (e participo), do outro lado, para a análise da evolução dos preços da comida, da subida da fatura da energia, da elevação do custo da habitação; dos aumentos das taxas de juro, da proliferação de empregos mal pagos, inseguros e de exploração intensiva do trabalhador; da deterioração das condições de trabalho de médicos, enfermeiros e auxiliares; de navios de combate que não navegam; do roubo da contagem do tempo de carreira a professores e outras profissões públicas; da degradação dos serviços de saúde, do ensino, da justiça, das forças armadas, das forças de segurança, do próprio SIS; de uma infinidade de problemas da vida quotidiana, com uma guerra assustadora em pano de fundo, que infernizam o dia-a-dia de milhões de portugueses.

Já ouvi sobre estes assuntos as mais díspares análises, acusações e soluções, mas nunca ouvi, como oiço agora, quase de minuto a minuto, por causa dos disparates à volta do ministro João Galamba: "este é um assunto de Estado grave, muito grave, extremamente grave..."

Mas o que é, afinal, o Estado?

É uma entidade política soberana que detém o monopólio do uso legítimo da força e do poder sobre uma população e um território?

É a estrutura organizacional e institucional que governa um país, os seus órgãos legislativos, executivos e judiciários que concebem e executam políticas e leis?

É uma entidade política que combina as noções anteriores com uma identidade cultural, uma história, uma língua e tradições comuns -- ou seja, é a afirmação institucional de uma nação, quando ela existe?

Todas estas habituais definições de Estado, isoladas ou combinadas, permitem, de facto, que o comentário sobre o caso Galamba/SIS se possa concluir com a frase: "este é um assunto de Estado grave, muito grave, extremamente grave..."

Também é verdade que, olhando para esses significados da palavra Estado, compreendendo o alcance e os limites de cada uma delas, parece não se poder dizer que ter uma população inteira a empobrecer seja, necessariamente, um assunto de Estado... É bizarro, mas é assim.

Acontece que, por acaso, a Constituição Portuguesa tem uma definição de Estado bem mais ambiciosa do que a da vulgata dos livros de introdução à política: "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa".

Constato a crónica incapacidade do nosso país em ser económica, social e culturalmente democrático, tal como a Constituição exige que deve ser o Estado português. Essa ideia de Estado implicaria a melhoria, e não a degradação continuada, da proteção e da promoção do bem-estar do povo. Não é o que está a ser feito.

Constato também que uma grande parte dos políticos, sempre cheios de compaixão inconsequente pelos pobrezinhos, de promessas ocas e soluções falhadas, nunca se refere ao alastramento da pobreza e da desigualdade nestes termos: "este é um assunto de Estado grave, muito grave, extremamente grave...". Esta solenidade, reservada para pretensos momentos históricos, serve, apenas, para defender o Estado palaciano, institucional, o dos casos Galamba e similares. Não serve para defender o Estado democrático, o do povo, em todas as suas componentes, tal como a Constituição o define.

*Jornalista 

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