Ana Drago* | Diário de Notícias | opinião
De todas as declarações lamentáveis de Marcelo Rebelo de Sousa no famoso jantar com jornalistas estrangeiros nenhuma tem a gravidade da que foi dita a propósito da atuação da Procuradora-Geral da República.
O Presidente usa um adjetivo erudito e sonante – “maquiavélico”. Conta que, no próprio dia em que a Procuradoria Geral da República anunciou ao país a investigação sobre António Costa, Lucília Gago abriu um inquérito contra terceiros no “caso das gémeas”, cuja polémica envolve diretamente o Presidente da República (PR).
O “equilíbrio sofisticado”, ali narrado por Marcelo, não se resume, contudo, a uma mera estratégia de distribuição de investigações criminais aos titulares dos dois Palácios, como se fosse uma equitativa distribuição entre a esquerda e a direita. A suspeita que fica é um pouco pior, um pouco mais “maquiavélica”. As palavras de Marcelo sugerem que no dia em que o Ministério Público (MP) fez xeque-mate ao Primeiro-Ministro, Lucília Gago decidiu aproveitar para fazer um seguro de vida. Ao lançar investigações simultaneamente sobre o Governo e a Presidência da República, estes dois órgãos ficavam automaticamente limitados pelos óbvios conflitos de interesse. A partir daqui, os dois poderes que constitucionalmente podem pedir responsabilidades ou exonerar a Procuradora ficavam de mãos atadas, porque qualquer crítica seria lida como uma tentativa de impedir o “combate à corrupção”. E assim foi. Porque o guião ficou escrito e os atores já estavam contratados. Foi precisamente essa a atoarda do Chega na Assembleia da República (AR) no seu discurso do 25 de Abril.
Acontece que, seis meses depois
da demissão de António Costa, parece não sobrar nada das alegações do MP que
sustentaram o famoso parágrafo que dava conta da Operação Influencer. Ainda em
novembro, o juiz que avaliou as medidas de coação deitou por terra possíveis
indícios de corrupção ou prevaricação apresentados pelo MP. Em fevereiro,
considerou as teses do MP “vagas” e “contraditórias”. Agora, em abril, o
Tribunal da Relação fez um acórdão demolidor sobre as alegações do MP, fazendo
cair a solidez da acusação de tráfico de influências. É certo que não
conhecemos o processo
Depois de tudo isto, a gravidade da atuação do MP tutelado por Lucília Gago tornou-se insuportável. Primeiro, porque as consequências da sua atuação equivalem a nada menos do que um golpe de Estado – a 7 de novembro destruiu as condições de governabilidade de uma maioria política legitimada pelo voto dos cidadãos. Segundo, porque a sua credibilidade se evaporou irremediavelmente.
Se nada for feito qualquer investigação futura sobre titulares de cargos públicos será encarada com descrença e suspeita. Por isso, vale a pena esclarecer o Presidente do Sindicato dos Magistrados do MP que, quando declara que a ida de Lucília Gago ao parlamento abre um “precedente perigoso”, está distraído. O “precedente perigoso” já aconteceu a 7 de novembro. Nada será mais danoso para o MP do que desconfiarmos que esta investigação se pode eternizar só para que os magistrados não percam a face. Nada é mais venenoso para a saúde de um regime democrático do que a suspeita de que a investigação criminal se move por uma agenda política.
Há momentos em que podemos ser
governados por medíocres, sem que isso seja necessariamente o fim do mundo. Há
outros momentos em que, pelo contrário, precisamos desesperadamente de
democratas e estadistas corajosos. De responsáveis políticos que percebam a
gravidade do que está em causa e os riscos que se colocam no horizonte. Aqui
chegados, precisamos que Governo e Presidente da República assumam que há um
problema profundo na justiça e no Ministério Público
De momento, o que sabemos com certeza é que a Procuradora “maquiavélica” perdeu as condições para o exercício de funções. É isto que se exige a Luís Montenegro e Marcelo Rebelo de Sousa: Lucília tem de cair.
* Investigadora do CES
Sem comentários:
Enviar um comentário