sábado, 15 de março de 2025

REPÓRTER MORREU PELA BOCA -- Artur Queiroz

<> Artur Queiroz*, Luanda ---

No início de Janeiro 1975 fui cobrir a Cimeira de Mombaça. Saí de Luanda manhã cedo num voo da SAA (companhia de bandeira sul-africana) rumo a Joanesburgo. O destino final era Nairobi mas só ia viajar ao fim da tarde. Pedi ao oficial da polícia de fronteira que me permitisse sair do aeroporto para fazer um apontamento de reportagem. 

O senhor respondeu: “Impossível. Se não fosse jornalista e quisesse ir visitar a cidade, tinha uma autorização temporária. Mas como quer fazer uma reportagem, não pode nem sequer circular na zona comercial da aerogare.” Fui enviado para uma sala onde, de vez em quando, uma senhora me ia perguntar se precisava de alguma coisa. Deram-me água e sanduiches. Ligava pelo telefone interno quando queria ir à casa de banho. 

O repórter morreu pela boca, como o bagre. Devia ter dito que queria ir a um bordel. Punham logo um carimbo no passaporte autorizando a minha entrada na cidade de Joanesburgo. Também podia ter dito que era amigo do João Soares e do Alcides Sakala, que se passeavam pelas avenidas do regime de apartheid, com guarda de honra. Os karkamanos tratavam bem a criadagem. O filho do padrasto da democracia portuguesa teve um acidente na Jamba e puseram-lhe os ossos todos no sítio, num hospital de Pretória, com ala especial só para a capoeira do Galo Negro. É a diferença entre um bagre repórter e um criado às ordens.

De repente surgiu um alarido de boçal. Dois antigos Chefes de Estado foram barrados no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, quando estavam em trânsito para a cidade de Benguela, onde iam participar numa conferência da Internacional Democrata Cristã. A UNITA avançou em força com o barulho habitual. O Bloco Democrático reagiu como no tempo em que alguns dos seus dirigentes eram maoistas de faca na boca. Agora eleitoralmente valem zero vírgula zero. Fiquei perplexo.

As autoridades angolanas não têm nem podem ter nada contra a Internacional Democrata Cristã, ainda que o partido MPLA, vencedor das últimas eleições com maioria absoluta, seja da Internacional Socialista. Mas cada uma tem o seu espaço e dos seus membros, pelo meu conhecimento, só a UNITA não é respeitável nem pessoa de bem.

O antigo Presidente do Botswana, Ian Seretse Khama, tem tudo para entrar em Angola livremente. É cidadão da SADC, não precisa de visto. Nasceu e cresceu no Reino Unido. É cidadão britânico. Não precisa de visto. Então porque foi barrado? Porque é um antigo Chefe de Estado. As autoridades angolanas têm que lhe dedicar cuidados especiais. Imaginem que lá no Botswana adversários políticos de Ian Seretse Khama decidiram atentar contra a sua vida em Benguela durante a conferência? 

O antigo Presidente da Colômbia, Andrés Pastrana Arango, foi barrado no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. O que levou as autoridades angolanas a terem este procedimento para com um antigo Chefe de Estado? Não é seguramente por ele estar contra os acordos de paz entre o governo colombiano e as FARC, em 2016. Tem de haver uma razão de peso. 

A conferência da Internacional Democrata Cristã em Benguela não é clandestina. Tem seguramente o apoio das autoridades provinciais e nacionais. Sabem quem pertence à organização? Movimento para a Democracia, no poder em Cabo Verde, país irmão de Angola. Aliança Democrática Independente (ADI) é governo no país irmão, São Tomé e Príncipe. A União Nacional Democrática é governo na Argélia, país a quem os angolanos muito devem. O governo em queda de Portugal é da coligação Aliança Democrática, constituída pelo PSD e CDS, dois partidos filiados na Internacional Cristã Democrata. 

Ainda mais perplexidade. Não percebo por que razão as autoridades angolanas não esclareceram imediatamente os factos. E ao ignorarem a situação deram todo o espaço à especulação e aos golpes baixos da UNITA. Até a engenheira Cesaltina Abreu se sente envergonhada e deu como indesmentível o que veio a público veiculado por um lado. Nem esperou pela versão oficial! Já vais aí, Tina? 

Guardei na minha caixa dos tesouros esta prosa da minha amiga Cesaltina Abreu: “Conforme o ditado popular, não há uma sem duas. No mesmo dia foi anunciado que o antigo presidente de CNE foi o melhor classificado no concurso curricular (cuidadosamente preparado para lhe dar vantagem com a inclusão e valorização do quesito 'experiência em processos eleitorais) para mais um mandato num cargo para o qual não tem 'aprovação da sociedade civil nem da oposição pela escancarada falta de isenção, de transparência e de neutralidade manifestadas no último pleito eleitoral”.

Eu sou da sociedade civil e não reprovo o mandato do magistrado judicial que ganhou o concurso para presidir à Comissão Nacional Eleitoral. Jamais me atreveria a pôr em causa um concurso público, só estou contra ajustes directos. Nunca jamais acusaria um servidor público em funções oficiais de “falta de isenção, de transparência e de neutralidade manifestadas no último pleito eleitoral”. Só se tivesse provas evidentes e indesmentíveis. Tens essas provas, Tina? Venham elas, para me poder juntar a ti em tão graves acusações. Infelizmente parece-me conversa de alicate. Paleio furado de Galo Negro e maoistas derrotados.

Os turistas, traficantes de droga e kamangistas iam à Jamba, Angola, via regime racista de Pretória. Entravam quando queriam e como queriam. Mas Angola não é a Jamba. Para entrar em Angola é preciso cumprir regras. Aguardo, inquieto, que as autoridades esclareçam o que se passou no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro com dois antigos Chefes de Estado. Também aguardo uma reacção oficial da Internacional Cristã Democrata. Até lá, calma! Para ninguém ter de morder a língua na sociedade civil, na sociedade dos derrotados eleitorais e na sociedade da capoeira savimbista.

* Jornalista

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