quinta-feira, 21 de junho de 2012

OS DESAFIOS DAS “TERRAS MONTANHOSAS” – I



Martinho Júnior, Luanda

“Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso.

Perdemos, outros ganharam.

Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial.

Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.

Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transformou em sucata e os alimentos se convertem em veneno.

Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa.

A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema.

Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominados para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga”. – Eduardo Galeano em “As veias abertas da América Latina” – versão completa em português – http://copyfight.noblogs.org/gallery/5220/Veias_Abertas_da_Am%C3%83%C2%A9rica_Latina(EduardoGaleano).pdf.

1 – Desde que Cristóvão Colombo chegou à América, pondo pé na segunda maior ilha das Caraíbas, que a vida não foi fácil para muitos povos, a começar para os povos ameríndios nativos que rapidamente foram desaparecendo, por um lado por que as mulheres foram sendo forçosamente tomadas para suas pelos espanhóis, por outro por que muitos morreram vítimas de doenças para as quais não estavam imunes, doenças ocorridas a partir do simples contacto com os europeus (“Taínos” – Wikipedia – http://en.wikipedia.org/wiki/Ta%C3%ADno_people).

Os Taínos, habitantes autóctones da ilha, que segundo as estimativas seriam 250.000 à chegada da primeira frota espanhola em 1492, estavam reduzidos a 14.000, apenas 15 anos depois!...

A mestiçagem foi fluindo entre colonizadores, autóctones e negros escravos africanos das plantações.

Se hoje ainda existirem algumas comunidades originais, serão resíduos inexpressivos para uma população que atingiu praticamente, em toda a ilha, cerca de 20 milhões de habitantes, 10 na República Dominicana (cuja superfície equivale a dois terços) e outros 10 no Haiti, o terço ocidental.

Esse sinal de desaparecimento e morte que marcou os primeiros dias da América à mercê do deslumbramento das classes dominantes da Europa, ficou lavrado na história da primeira ilha a ser “descoberta”, bem como em cada uma das Caraíbas, tal como dos imensos espaços africanos e americanos, como um anátema cujas repercussões se manifestam até aos nossos dias: é um homem forjado nas mais difíceis condições, enfrentando as mudanças climatéricas e ambientais e a opressão dos poderosos, que se move ainda sobrevivendo no meio do subdesenvolvimento crónico a que tem sido votado.

O terço ocidental da ilha Haiti (“Terras Montanhosas” de acordo com a língua do povo autóctone Taíno) é um desses exemplos, apesar do seu enorme contributo em prol da dignidade e da libertação do homem: os seus habitantes, salvo as elites corruptas que foram agenciadas pelos poderosos, têm sido tratados como alienígenas hostis nesta “casa comum” que é a Terra e são ainda hoje assim considerados pelos mesmos que os colonizaram, herdeiros das usurpadas fortunas, do trabalho escravo e por fim da mão-de-obra barata ao dispor dos expedientes neo coloniais!

Condenados a serem reserva barata de mão-de-obra, os descendentes dos escravos auto-libertados do Haiti, os escravos que venceram Napoleão, não desapareceram porém como as nações autóctones de Jaragua e Marién!

2 – O domínio dos colonizadores europeus levou à exploração das riquezas naturais e, com isso, à escravatura intensificada nas plantações que se foram disseminando desde a primeira hora da “descoberta” (“História do Haiti” – Wikipedia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_Haiti).

A “descoberta” de África, da América e da Ásia mereceu sempre duma visão antropocêntrica do europeu, depois transposta para o norte americano, sobretudo das culturas anglo-saxónicas, gaulesas e hispânicas, em função do pendor da Revolução Industrial, que derivou para o exercício do seu poder à custa de terceiros, pelo que o mundo, durante séculos e até aos nossos dias, jamais foi “nossa casa comum”.

É essa visão antropocêntrica que perdura na aristocracia financeira mundial, nas oligarquias e elites agenciadas, no império e no que a partir dele tem sido gerado com a globalização, cujas fórmulas neo coloniais são resíduos consolidados do passado de rapina, suor, sangue e lágrimas por todo o “Terceiro Mundo”!

Tem sido assim no Haiti, apesar das conquistas feitas em nome da liberdade por parte dos escravos rebeldes que derrotaram Napoleão e é aí que se afirma a resistência mais acirrada, a resistência que se abre para a dignidade, a solidariedade, o respeito para com a humanidade e para com a Mãe Terra. (“Os jacobins negros” – http://www.controversia.com.br/felipelandim/estante).

Cuba, que fica a menos de 100 km da costa haitiana, tem absorvido uma pequena parte da migração haitiana, sobretudo na região oriental da maior das ilhas do Caribe e esses descendentes deram a sua contribuição à Revolução Cubana, a quem transmitiram também sua rebeldia e seus anseios por liberdade.

No Congo, a coluna do Che que procurou dar a sua contribuição à luta de libertação, reforçando os que apoiavam os ideais de Patrice Lumumba depois da sua morte, integrou mesmo um médico haitiano, o único elemento além do próprio Che que não possuía nacionalidade cubana, o Dr. Adrián Zanzalli, que veio a falecer no seu país em 1966 (“El sueno africano de Che”).

Para além das razões históricas, há razões culturais e sócio-políticas que se converteram em fórmulas de resistência e de identidade, entre pelo menos três povos: o cubano, o haitiano e o porto-riquenho, este último um dos povos sujeitos ao colonialismo, neste caso imposto pela hegemonia norte americana (“Cuba pide en la ONU la independência de Puerto Rico” – http://www.larepublica.es/2012/06/cuba-pide-en-la-onu-la-independencia-de-puerto-rico/).

3 – Se a história tem sido tão adversa para com os escravos auto-libertos do Haiti, também os fenómenos naturais mais adversos têm assolado o lado ocidental da ilha: furacões, terramotos…

Desse modo, o Haiti, transformado em depósito de mão-de-obra barata, um universo subdesenvolvido preso às limitações de recursos próprios do terço ocidental da ilha, resulta dramaticamente causticado, agravando as implicações da sua situação histórica e sócio-política e influindo na resistência cultural.

O ambiente reflecte a passagem dos furacões, o terramoto de Janeiro de 2010, assim como a desflorestação sistemática por acção humana, em função de necessidades que não acautelaram a natureza por manifesta má gestão do espaço disponível (“La dénudation d’Haïti : une catastrophe presque irréversible” – http://www.lematinhaiti.com/contenu.php?idtexte=30864).

Ao Haiti tudo lhe caiu em sorte nos primeiros anos deste milénio, até a transmissão do vírus da cólera por contaminação de um dos seus pequenos cursos de água!... (“Cólera amenaza seguridad alimentaria en Haití” – http://www.outroladodanoticia.com.br/component/content/article/2-noticias/4118-fao-colera-amenaza-seguridad-alimentaria-en-haiti.html).

Gravura: “Jeu de la reconstruction”, uma obra do jovem pintor haitiano Walguens Pierre Jea, que faz parte do grupo “Folie ouverte” (que se inspira na reconstrução nacional), exposta no Museu do Panteão Nacional em Porto Príncipe.

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