Relatório da década
de 1960 sobre as barbáries cometidas contra as tribos brasileiras mostra que
terras e riquezas de aldeias indigenas foram saqueadas por agentes do governo
que deviam protegê-las.
Documento aponta
uso de notas frias para arrendar áreas no interior do país
Passados 50 anos de
uma batalha sangrenta entre fazendeiros locais e índios cadiuéus do Sul do Mato
Grosso, uma pergunta inquietante ressuscita com o recém-redescoberto Relatório
Figueiredo, que apurou em 1968 chacinas de tribos e torturas em índios de todo
o país: o que aconteceu naquele conflito? Documento produzido pela Associação
de Criadores do Sul do Mato Grosso, em 5 de janeiro de 1963, e anexado à
extensa investigação feita pelo procurador Jader de Figueiredo para o
Ministério do Interior relata pedido do mais famoso líder da repressão da
ditadura de Getúlio Vargas, o então senador Filinto Müller, que rogava para que
o general comandante da 9ª Região Militar fosse informado do conflito armado.
Müller afirmou que trataria pessoalmente da situação com a direção do Serviço
de Proteção ao Índio (SPI), reportadamente suspeito, segundo Figueiredo em seu
relatório, revelado pelo Estado de Minas.
As terras dos
cadiuéus, 374 mil hectares em um local chamado Nabileque, foram usurpadas,
assim como ocorreu com diversas outras tribos. Segundo aponta o inquérito de 7
mil páginas, que era tido como destruído em um incêndio no Ministério da
Agricultura, os terrenos foram dados a eles por dom Pedro II, pela participação
decisiva que tiveram na Guerra do Paraguai. No entanto, ele diz em outro trecho
do texto que elas “foram invadidas por poderosos fazendeiros e é muito difícil
retirá-los um dia”.
O Relatório
Figueiredo
Matérias publicadas
no Estado de Minas revelaram a surpreendente história do documento que estava
em caixas do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, desde 2008, e passou mais de 40
anos com o paradeiro desconhecido. Somente no fim do ano passado um pesquisador
paulista se deu conta de que as mais de 7 mil páginas guardadas entre um grande
volume de papelada eram, na verdade, o inquérito e o relatório de 62 páginas
produzidos a pedido do ministro do Interior, Albuquerque Lima. O único registro
que se tinha desse material, que denuncia caçadas humanas de indígenas feitas
com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, trabalho escravo de índios,
torturas, prostituição e incontáveis crueldades contra tribos brasileiras, eram
matérias publicadas em março de 1968, quando o ministro concedeu entrevista que
teve repercussão internacional.
Nas páginas
amareladas pelo tempo, além das barbaridades recorrentes que indicam que o
índio não era tratado como ser humano, uma preocupação constante do advogado
que liderou as investigações é a usurpação indiscriminada de terras e riquezas
indígenas, feita, inclusive, pelo próprio SPI. “Abatem-se florestas, vendem-se
gados, arrendam-se terras, exploram-se minérios. Tudo é feito em verdadeira
orgia predatória porfiando cada um em estabelecer novos recordes de rendas
hauridas à custa da destruição das reservas do índio”, escreveu Figueiredo
perplexo. “Basta citar a atitude do diretor major-aviador Luis Vinhas Neves”,
ele prossegue, se referindo ao coordenador do SPI, que teria autorizado todas
as inspetorias a vender madeira e gado, e a arrendar terras. “Aliás, esse
militar pode ser apontado como padrão de péssimo administrador, difícil de ser
imitado, mesmo pelos seus piores auxiliares e protegidos”, acrescenta o
procurador.
Nova peça do
quebra-cabeça
Telegrama anexado
ao inquérito e assinado pelo então secretário do Conselho Nacional de Proteção
aos Índios, José Maria da Gama Malcher, endereçado ao deputado Valério Caldas
Magalhães, que presidia uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre abusos
contra indígenas, datado de 14 de maio de 1963, pode ser mais uma peça-chave no
quebra-cabeça que busca desvendar as crueldades cometidas na história recente
do país contra tribos brasileiras. José Maria pede ao deputado que solicite à
Presidência da República o Processo 22.755/61, que estava arquivado desde
outubro de 1961 e que seria de interesse dos índios. “É curioso que o segundo
volume do relatório, onde essa documentação poderia estar anexada, sumiu”,
afirma o vice-presidente do Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, que
foi quem descobriu o paradeiro do Relatório Figueiredo. Dos 30 tomos originais
que compunham o documento, 29 foram encontrados quase intactos.
Comissão da Verdade
A coordenadora do
núcleo da Comissão Nacional da Verdade responsável pela investigação de
violações de direitos relacionados à luta pela terra, Maria Rita Kehl, sustenta
que há tempo hábil para examinar todas as denúncias contidas no inquérito e que
o papel da comissão é procurar casos exemplares. Ela comemorou a recuperação do
relatório e o considerou um divisor de águas nas políticas indigenistas do
país, pois pouco depois o antigo SPI foi extinto e foi criada a Fundação
Nacional do Índio (Funai).
Maria Rita informou
que a comissão ainda aguarda a conclusão do trabalho de digitalização da papelada
para então começar a estudá-la. “Não posso falar sobre o relatório porque ainda
não o conheço, mas é um documento oficial importante. Posso adiantar que é
impossível pesquisar todas as acusações contidas nele.”
Já Marcelo Zelic,
que colabora com os trabalhos da comissão, defende que todas as denúncias devem
ser investigadas. “Se não temos tempo, vamos pedir a prorrogação do prazo.
Vamos pedir mais estrutura para a apuração de todos esses casos, e não só os
exemplares. Investigar casos exemplares não vai resolver. Imagine dizer isso
para a família de um desaparecido político”, provoca.
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