Rui Peralta, Luanda
I - La Strada é uma
realização de 1954, um filme produzido por Carlo Ponti e Dino De Laurentiis,
argumento de Fellini e Tullio Pinelli e roteiro de ambos com Ennio Flaiano. A
fotografia foi de Otello Martelli, um dos mestres da época e a música do grande
Nino Rota. Aliás Nino Rota, Flaiano e Pinelli, constituíam a equipa permanente
de Fellini. E depois há três interpretações inesquecíveis: Giulietta Masina
(mulher de Fellini) no papel de Gelsomina, Anthony Quinn, no papel de Zampanó e
Richard Baschart, no papel do louco que leva o conhecimento a Gelsomina.
Mas não é o cinema
a razão de ser deste texto. Referenciei esta obra da cinematografia italiana
porque recordei-me de uma cena do filme que retrata muito bem a actual situação
de Itália. Num diálogo entre o louco (Richard Baschart) e Gelsomina (Giulietta
Masina), o louco aponta para um pedaço de uma pedra e diz: “Não sei para que
serve isto, mas serve certamente para algo…”
II - O sentimento
da grande maioria dos italianos pode muito bem ser representado por esta frase
do louco. Todos foram chamados a exercer um acto de soberania popular, através
das eleições, mas nenhum dos eleitores, acaba por entender qual o motivo para o
qual é chamado a exercer o seu direito de voto, uma vez que o episódio seguinte
ao acto eleitoral é a tragicomédia de terceira classe, em que os personagens da
política italiana movimentam-se de forma teatral e pouco convincente, sempre no
sentido contrário ao resultado efectivo das eleições.
A democracia
representativa italiana, pós fascismo, é um autêntico exercício de faz de
conta, um tratado de como não cumprir o que foi expresso no voto, situação
agravada desde o célebre (de triste memória) compromisso histórico, assinado na
década de setenta entre a defunta Democracia Cristã e o defunto Partido
Comunista Italiano.
Os eleitores
italianos decidiram, no acto eleitoral de 24 e 25 de Fevereiro, dizer um grande
NÃO á tecnocracia neoliberal do primeiro-ministro (ou director-geral?) Mario
Monti. Mas de pouco bastou. Em nome de uma subcultura da emergência, o mesmo
modelo tenta ser imposto, através de um hábil jogo de negociatas entre as
nomenclaturas institucionais.
III - Berlusconi
(será a senilidade?) assumiu de vez o papel de bobo da corte (personagem que
ele sempre soube desempenhar enquanto primeiro-ministro e ao qual lhe empresta
um ar sinistro, pois um bobo da corte em qualquer opereta se não tiver algo de
sinistro, é um mero personagem de circo pobre), e quanto á Sinistra, nem vale a
pena falar, parecendo mais um spot publicitário de uma nova marca de enlatados
para animais domésticos. Beppe Grillo, que em episódios anteriores era o personagem
do bobo inteligente e astuto, evoluiu para um personagem típico da estética
mozartiana: o flautista mágico.
O Presidente
Napolitano desdobra-se em contactos, reuniões e tentativas de convergência,
qual Padrinho tentando conciliar a Famiglia. E de golpe em golpe, o sentido do
voto é deturpado, através de sucessivos novos actos, em que o bobo, o
anunciante de comida para cães, o flautista mágico e outros personagens
tecnocraticamente enfastiados, assumem á vez, o protagonismo.
IV - Na Itália de
hoje, manifestam-se diferentes orientações, aparentemente difíceis de
sintetizar, mas que respondem a um desígnio facilmente reconstituído por um
observador atento. O desígnio geral corresponde a uma tendência generalizada em
toda a U.E. e pode ser definido desta forma: a consagração definitiva de uma
tripla estratificação dos sujeitos sociais, típica da fase neo-liberal.
Acima da multidão
estão os elegibus solutis, os acima da lei, que gozam de uma total liberdade de
movimentos, para que possam colocar a Itália na senda dos mercados. Claro que
este estrato é de uma elevada pureza ética, sendo o político desonesto,
afastado e o politico honesto abençoado, ou seja de vez em quando aparecem uns
bodes expiatórios (Berlusconi, o bobo, corre esse sério risco) e mantém a
mistificação do Estado acima dos interesses, o que em Itália obriga a enormes
exercícios de retórica.
Seguem-se os cidadãos
de pleno direito, os titulares de deveres e de direitos segundo o esquema
tradicional do Estado de Direito e os principais destinatários do anterior
contrato social, formados pelas classes contratantes e pelas classes
garantidas, a chamada classe média. Só que o actual contracto social já se
livrou de muitos destes beneficiados, porque já não fazem falta (a necessidade
do corte de despesas, por exemplo, leva a dispensar muitos quadros médios e
superiores na função publica) e porque os novos sistemas de produtividade já
não precisam de muitas das anteriores funções. Estes cidadãos de pleno direito
tornam-se, desta forma, cada vez menos.
Por ultimo (e em
crescimento exponencial) os não-garantidos, ou seja os excluídos deste
processo. São os desempregados e os trabalhadores precários, jovens e de
meia-idade, uns que nunca tiveram um emprego e outros que já tiveram mas que já
não vão ter mais, um imenso e crescente espaço de marginalizados pelos novos
processos produtivos e completamente inúteis no âmbito da nova economia. São os
futuros não-cidadãos, sujeitos que não foram enquadrados no novo contrato
social e que serão a médio prazo considerados como inimigos potenciais,
indigentes e indesejáveis (assim como os intocáveis da Índia).
V - Os elegibus solutis estabelecem o seu
domínio no processo pós-eleitoral. Os representantes das novas elites do
Capital (os tecnocratas das finanças) não se sujeitam ao escrutínio da
soberania popular. Utilizam os seus subordinados das máquinas partidárias para
exercerem essa função. O bobo, o vendedor de comida para cães e outros
tagarelas exercem a sua campanha sobre os cidadãos de pleno direito, enquanto o
flautista mágico e as novas caras bonitas do fascismo do século XXI fazem a sua
campanha nos não-garantidos (que por enquanto ainda votam, mas que com a
implementação do novo contrato social, serão reduzidos á condição de não-cidadãos).
A observação do
louco personagem de Fellini fica assim complementada, pois afinal já sabemos
para que servem as eleições em Itália: são um mero acto formal de consulta, uma
imensa sondagem realizada pelo Estado, paga pelos fundos públicos, para que as
elites conheçam as preferências do mercado e alterem as linhas melódicas, a
letra da opereta e os personagens. Sempre com o objectivo de os eleitores
continuarem a frequentar o auditório e a comprar bilhetes para assistirem ao
espectáculo, mas eternamente transitando numa estrada que não leva a sitio
algum.
António Gramsci,
nas suas Note sul Machiavelli sulla politica e sullo stato moderno perguntava:
“ (...) quer-se que existam sempre governantes e governados ou pretende-se
criar as condições para que a necessidade da existência desta divisão
desapareça?”
Da resposta que for
dada a esta questão dependerá o futuro da Itália. Mas esta é uma questão que
nunca será referendada pelo sistema. Só pelos que ainda têm alguns direitos e
pelos que já perderam a esperança de os manter.
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