Impasse: As três
saídas para a crise política (III)
Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Pelas razões que já
expus, a continuação deste governo não resolverá nenhum problema. Como se viu
na forma como lidou com o chumbo do Tribunal Constitucional, o governo
está sem rumo. A sua única função, neste momento, é a de uma comissão
liquidatária: antes de cair, garantir brutais cortes na saúde, educação e
segurança social, que transfiram estas funções para os privados. Da saída do
País da crise, nada resta. Apenas a agenda ideológica que sempre moveu Passos
Coelho, uma extraordinária incompetência e um discurso punitivo que desmoralize
os portugueses e os torne impotentes perante todos os abusos.
Existe alguma
tendência do mundo político e mediático em confundir crise de governabilidade
com crise política. Existe governo, tem maioria e tem o apoio do Presidente
República. Mas não haja enganos: a crise política já existe. A
descrença dos portugueses no sistema político, que pode ser aferida pela
dicotomia entre uma inevitabilidade que nos leva para um buraco e a pouca
credibilidade nas alternativas e nos sujeitos políticos que as deveriam
protagonizar é o resumo da mais profunda crise política que um país pode viver.
Nenhuma remodelação
do governo resolverá este problema. Aliás, ao que se sabe, o adiamento
desta remodelação nada teve a ver com a declaração de inconstitucionalidade do
orçamento, que era previsível. E muito menos com a saída de Miguel Relvas. Teve
a ver com a dificuldade que Passos Coelho está a ter em encontrar alguém
disponível para entrar num barco que se afunda. Ou seja, de uma remodelação
não nascerá um governo mais forte, mas um governo mais fraco.
Perante o agudizar
da crise e a inexistência de respostas alternativas de um primeiro-ministro
que, perdido o seu rumo (por falhanço evidente), navegará à vista e tentará
usar o tempo que lhe resta para impor uma agenda que destruirá a coesão social
do País, a queda do governo é apenas uma questão de tempo. De pouco tempo.
Se não cair quando os números da execução orçamental forem realmente
conhecidos, cairá no segundo resgate. Se não cair no segundo resgate, cairá nas
autárquicas. Se não cair nas autárquicas cairá no próximo orçamento. Isto,
claro, se não cair por causa de mais um pequeno escândalo que entretanto
aconteça. Como se viu este fim de semana, a vontade de acabar este ciclo cresce
dentro do próprio governo. Qualquer abanão chegará para o fazer cair. Pior
agora do que daqui a uns meses? porquê?
A alternativa que
alguns têm apresentado para a evidente fragilidade do governo, que o torna
incapaz de definir soluções estruturantes para sair desta crise, tem sido a de
um governo de iniciativa presidencial.
Esta solução
esbarra, à partida, com um elemento incontornável: o próprio Presidente da
República. O Presidente da República é, regra geral, pouco importante no
funcionamento da vida política nacional. A não ser em momentos de impasse como
estes. Aí, precisa de duas coisas: autoridade política e capacidade de
fazer pontes e sínteses. Ora, hoje o Presidente é quase tão desrespeitado como
o governo. E, pelo contraste entre o seu comportamento anterior e atual, nunca
será visto como um árbitro.
Imaginemos, no
entanto, que o Presidente conseguia encontrar alguém capaz de conquistar o
apoio e a credibilidade para formar um governo. Silva Peneda, por exemplo.
Sendo certo que a esse governo faltaria um programa anterior às eleições, não
seria de esperar que tivesse condições para impor uma alternativa que não
passe, no fundamental, pela aplicação do memorando da troika. Ou seja,
para aplicar medidas de austeridade.
A minha dúvida
prática é esta: pode um primeiro-ministro que não passou pelo crivo eleitoral
(mesmo que tenha o apoio maioritário do parlamento) impor uma única medida de
austeridade sem ficar numa situação muito frágil? Manter-se-á o apoio
maioritário do Parlamento, sem a lealdade partidária que geralmente o garante,
ao primeiro falhanço? Quantos meses duraria um governo assim? Três meses?
Quatro? Ganhamos alguma coisa em ter duas crises, a formação de dois governos,
em vez de uma crise, umas eleições e a formação de um governo?
Mas tenho uma
dúvida mais profunda. E ela resume-se no nome de um homem: Beppe Grillo.
Mario Monti era bem visto no exterior e elogiado por essa Europa fora. Ao
primeiro abalo caiu e, afinal, valia apenas 9% dos votos. A gestão da crise -
num país não intervencionado, o que lhe dava maior espaço de manobra - por
parte de um homem que não chegou ao poder depois de passar por eleições, criou
um ambiente político que destruturou a vida político-partidária italiana. O
resultado foi vermos uma lista sem enquadramento programático claro com um
terço dos votos. Cada um fará a leitura das causas e consequências desta
escolha dos italianos. Mas uma coisa parece evidente: ela aumentou os
bloqueios e a crise política em Itália, não os resolveu. Porque, nas
democracias parlamentares, a legitimidade de um governo vem do Parlamento. Mas
a legitimidade política mais profunda não dispensa eleições. Ainda mais em
cenário de crise. E mais ainda, perante uma intervenção externa.
A solução de um
governo de iniciativa presidencial não só não resolve nada, adiando problemas,
como se arrisca a criar bloqueios bem mais graves que degradarão ainda
mais a situação política e a democracia portuguesa.
Restam, assim, as eleições.
Esta solução tem sido tratada como uma tragédia pela maioria dos comentadores e
agentes políticos. A forma como cada vez mais gente vê as eleições como um
problema, em democracia, deveria chegar para nos preocupar. No entanto,
desvalorizo algumas destas reações. Muitos dos que agora a consideram trágica
foram os que a defenderam no preciso momento em que Portugal negociava e
assinava o memorando de entendimento e passava a estar sobre intervenção
externa. A incoerência é demasiado óbvia para merecer grandes considerações.
As eleições servem
exatamente para vencer impasses. Depende do eleitorado se os resolvem ou não.
Quando não os resolvem sabemos que os impasses não são apenas do mundo
político, mas do país inteiro. No entanto, fugir dessa clarificação é atirar
problemas para a frente.
É, no entanto, de
prever que das eleições, que muito provavelmente seriam ganhas pelo PS, não
saia uma solução maioritária. E ainda menos provável que saia um
governo com forte capacidade de mobilização para impor renegociações vigorosas
do memorando e da dívida, com todos os riscos inerentes a esta escolha, e capaz
de procurar aliados externos para um combate europeu.
Sem maioria, ou
o PS governa sozinho, e teremos um governo de meses, ou encontra parceiros. E
aí, não se fazem milagres. Ou se alia ao CDS (se este chegar) e
teremos um governo esquizofrénico, ou se alia ao PSD, e teremos um governo
de gestão, incapaz de definir um rumo claro para sair da crise. Este governo só
resolve os problemas para quem acredite que a forma de lidar com esta crise se
resume a uma mera gestão das contas públicas. Ou seja, que não exige um
diagnóstico claro e uma alternativa à austeridade.
Restaria o que
parece ser normal noutros países, mas aqui surge como impossível: entendimentos
entre os partidos de esquerda que permitam uma alternativa minimamente coerente.
Um entendimento que tenha, nos seus objetivos, salvar o Estado Social, devolver
dignidade ao País na sua relação com as instituições europeias e o FMI e romper
o ciclo de empobrecimento que aposta na desvalorização da economia,
contrariando a lógica perversa de um euro que, tal como existe, nos condena à
asfixia económica. E é destes entendimentos à esquerda que falarei amanhã.
Amanhã: à esquerda,
na caminha é que se está bem
Impasse: à esquerda, na caminha é que se está bem (IV)
Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Não é só por António
José Seguro não mobilizar que não surge como alternativa à tragédia que
nos governa. O problema é que qualquer líder do PS, nestas circunstâncias,
teria de mobilizar muitíssimo. O suficiente para conquistar uma maioria
absoluta. Caso contrário, o País estaria condenado a um governo de bloco
central, que se limitaria a gerir a crise sem um rumo, ou a um governo
minoritário, condenado a sobreviver uns meses. O problema é que, ao contrário
do que acontece à direita, governos pluripartidários à esquerda estão
interditos.
O bloqueio à
esquerda tem, em Portugal, razões históricas profundas: o PCP ter sido, durante
a ditadura, hegemónico na oposição; a democracia ter nascido de um combate
feroz entre as várias forças de esquerda; o PS ter-se implantado no País contra
o PCP e em aliança com a direita; o adormecimento, por meio século, do nosso
movimento sindical, muito dependente das lógicas partidárias; um movimento
social-democrata (aqui representado pelo PS) que, ao contrário da maioria dos
países europeus, não tem raízes no movimento operário e nos sindicatos; a
debilidade da nossa sociedade civil. Tudo contribui para criar fronteiras
estanques à esquerda. Na realidade, as grandes clivagens ideológicas
foram, nos últimos 40 anos, feitas no interior da esquerda e não entre a
esquerda e a direita (abstenho-me aqui de ter um
"esquerdómetro", limitando-me a usar as categorias de filiação
histórica dos partidos).
Só que nos últimos
40 anos muita coisa mudou. E a verdade é que a direita, que tinha uma posição
ideológica envergonhada, se tornou agressiva e ultraliberal. Ou seja, as
condições exigem que a esquerda consiga trabalhar para os entendimentos que
nunca considerou necessários.
Não escondo que não
é apenas o passado que torna este entendimento difícil. Juntar a
autosuficiência do PCP, a cultura de contrapoder do BE e a cultura de cedência
do PS nunca seria fácil. Há, ainda assim, três denominadores comuns que
neste momento poderiam garantir um governo de esquerda: o diagnóstico da
crise (a que Sócrates chamou de "narrativa"), a convicção de que
apenas uma política pública para o crescimento económico nos pode
tirar deste sufoco e a certeza de que o equilíbrio das contas públicas não
passa pela redução das funções sociais do Estado. Se estiverem de acordo nestas
matérias, a grande fronteira política pode finalmente fazer-se, em Portugal,
entre a esquerda e a direita.
Um governo de
esquerda, fosse ele qual fosse, seria hoje um governo de emergência
nacional. Com dois objectivos: libertar-nos da intervenção externa e
retirar-nos da crise aguda sem pôr em causa a democracia e as funções sociais
do Estado.
O programa deste
governo passa, antes de mais, por uma negociação firme com os nossos
credores e com a troika. Para alterar as condições de pagamento, as
maturidades, os juros e, provavelmente, os montantes. Por uma simples razão:
nas atuais circunstâncias a dívida não é pagável. Para modificar radicalmente o
memorando (ou denunciá-lo), alterando toda a sua lógica para uma política de
crescimento que favoreça as condições para que o Estado e as empresas criem
emprego e receitas que possam garantir o equilíbrio das contas e o pagamento
das dívidas. Deixando claro que não estamos disponíveis para a destruição do
nosso Estado Social, que teria pesados efeitos sociais e económicos. Fácil
dizer, muito difícil fazer.
Uma negociação
deste género exige três condições políticas prévias: um governo com amplo
e forte apoio popular; um compromisso para procurar na Europa, entre os
países em dificuldades, aliados; e uma enorme coragem para lidar com as
possíveis consequências de uma atitude mais musculada na relação com a troika.
Entre as consequências indesejadas mas possíveis, está uma ruptura com os
credores e o fim do financiamento europeu, que põe em causa a permanência no
euro (tema que tenho prometido para uma crónica e que os acontecimentos têm
adiado).
Uma solução
governativa desta natureza exige cedências de todas as partes. O PS terá
de assumir, de uma vez por todas, que o problema não é apenas a
"austeridade custe o que custar". Uma austeridade mais branda pode
tornar a "espiral recessiva" mais lenta. Serve para quem acredita,
com base em não se sabe bem o quê, que haverá, muito brevemente, uma radical
alteração no quadro europeu. Quem duvide disso e mesmo assim defenda uma versão
mitigada da austeridade está a enganar os portugueses. A morte será mais lenta,
mas a espiral recessiva regressará e, daqui a um ano ou dois, estaremos de novo
em crise profunda e a aplicar as mesmas medidas que agora rejeitamos.
O Bloco de Esquerda
e o PCP (os dois ou um deles) terão de aceitar negociar com os credores. Não se
pode defender a renegociação da dívida sem querer falar com aqueles a quem
devemos. E hoje os nossos maiores credores internacionais são institucionais.
Ou seja: a troika. Dizer que se quer renegociar a dívida e que não se quer
falar com a troika é uma falácia. Mesmo assumindo, como eu assumo,
que a troika é hoje a maior e mais poderosa inimiga dos interesses
nacionais, é com os inimigos que se negoceia. Com os amigos conversa-se.
Só que esta
negociação pode correr mal. Se ela correr mal, poderemos ficar num impasse. Ou
metemos a viola no saco, e então não se pode falar de uma verdadeira
negociação, ou usamos as duas únicas armas que temos: sermos devedores e
fazermos parte do euro. No fim, se tudo correr ainda pior, podemos ficar
sem financiamento e, no limite, sermos obrigados a sair do euro para
nos conseguirmos autofinanciar (às consequências disto irei, repito a
promessa, noutro texto). E é aqui que a porca torce o rabo. Chegados a este
ponto, as divisões à esquerda deixam de ser as tradicionais. Esta é uma questão
que divide transversalmente toda a esquerda. Encontramos dentro do PS, do
PCP e do BE quem considere a permanência no euro um tema tabu (a maioria) e
quem já o comece a discutir como uma possibilidade a não descartar. Ou seja,
poderemos, num futuro próximo, chegar a um ponto onde as divisões da esquerda
já não são as que eram e ultrapassam em muito as fronteiras partidárias atuais.
Um governo que nos
queira realmente tirar desta crise é um governo que terá de saber lidar com uma
enorme incerteza. Certo, nesta crise, é que o caminho atual nos matará. Todas
as alternativas não estão isentas de enormes perigos. E, se os piores cenários
se confirmassem, poderiam resultar numa pesada fatura política para quem as
queira aplicar. Mas, nos tempos que correm, os partidos e os políticos que
não queiram correr este risco serão inúteis.
Seria bom que o
estado do debate sobre os entendimentos à esquerda fosse o que aqui vou
explanando. Mas não é. A incapacidade da esquerda conversar nada tem a ver com
a crise, com a troika e com euro. Ela tem, por um lado, a ver com um
indisfarçável oportunismo, em que cada um anda a ver o que pode ganhar com o
descontentamento das pessoas. E, por outro, com um sectarismo histórico que
vê qualquer conversa com o vizinho do lado como sinal de traição.
Um pequeno episódio
recente ilustra bem o que aqui digo. No concelho de Caminha, no Minho, PS,
PCP e BE locais sentaram-se à volta de uma mesa para uma coligação que
derrotasse o PSD. O PCP concelhio acabou, por ordem da direção nacional,
que interditou qualquer coligação em todo o País, por desistir. O PS e o Bloco,
depois de voltarem a tentar que o PCP se juntasse ao processo negocial,
chegaram a um acordo, com base em princípios programáticos. Estava tudo pronto,
até que os órgãos nacionais do BE entraram em campo. A Mesa Nacional do
Bloco de Esquerda vetou o acordo já firmado. Por razões que nada tiveram a
ver com a situação em Caminha ou com divergências de programa. Apenas com o
argumento de que o PCP, que fora envolvido nas negociações de que saiu por
decisão própria, não estava na coligação. Ou seja, entregando ao PCP a
estratégia nacional de alianças do próprio BE (com excepção para o Funchal). O
resultado será que o Bloco provavelmente nem concorrerá naquele concelho.
Conclusão: mais vale não ir a votos do que correr o risco de fazer
qualquer entendimento à esquerda. Não vá o País pensar que os partidos oposição
falam a sério quando falam de um governo de esquerda.
Se um entendimento
à esquerda é impossível, por razões de estratégia nacional, numas eleições
locais, onde as divergências programáticas e ideológicas são muito menores,
para derrotar o PSD, há três mandatos consecutivos de poder incompetente num
concelho em crise, quando tem ali existido uma razoável convergência entre os
partidos da oposição (sendo que a proposta de coligação nasceu do BE local), imaginem
no País. Junte-se a isto as vozes de dirigentes do PS que repetidamente
defendem, no caso provável do próximo governo ser minoritário, um governo de
bloco central (ou a sua indisponibilidade para debater soluções fora dos
limites do memorando da troika) e temos um clima bem mais claro de indisponibilidades
mútuas, sempre disfarçadas com outros argumentos.
E esta é, devo
dizer, a maior razão do meu desalento: perceber que todos os partidos
querem ter razão, mas que são poucos os que estão disponíveis para arriscar a
pele pela razão que têm. Enquanto os partidos da oposição não perceberem que
vivemos mesmo num momento de emergência nacional, em que são chamados a
cumprir um papel histórico que, como sempre acontece nestas alturas, lhes pode
correr mal, estaremos condenados a esta agonia. Não aprendemos nada com a
tragédia alemã dos anos 30, quando social-democratas e comunistas se
guerreavam, enquanto os nazis de apoderavam do poder. Com as devidas
distâncias, é esta a situação em que os partidos de esquerda se encontram: ou
assumem as suas responsabilidades históricas ou estarão condenados a ser
espetadores revoltados desta crise. E os portugueses, suas vítimas
submissas.
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Portugal:
IMPASSE – Daniel Oliveira - que inclui as partes I e II
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