Baptista-Bastos –
Diário de Notícias, opinião
Olho para os rostos
destes que nos têm governado e não reconheço neles qualquer semelhança com os
nossos rostos comuns. Observem bem: abreviados, ausentes. As sombras que neles
poisaram são repintadas de vigílias tétricas em que se arredaram o bater comovido
do coração humano e o pulsar da mais escassa ternura. Como conseguem viver
nesta miséria de fazer mal, de nos fazer mal? Têm-nos extorquido tudo e ainda
querem mais, numa obscura vingança, cujo propósito decidido e inclemente é o de
nos tornar infelizes.
Pobres sempre o
fomos. O domínio de uma classe sobre as outras exige essa forma escabrosa de
brutalidade. E sempre houve quem se prestasse ao papel de serventuário do
poder. Mas leiamos a História e ela no-lo ensina a resistir e a combater. Vejam
1383, 1640, os Atoleiros, as Linhas de Torres, o 5 de Outubro, o 25 de Abril.
"Salta da cama, Bastos; a revolução está na rua!" A Isaura beija-me:
"Toma cuidado!" Andei por muitas, e ela demonstra, com serena
apreensão, os receios que a assaltam. "Desta vez vou só escrever." Temos dois filhos, o terceiro nascerá em pleno festim da liberdade, atravesso a
madrugada de Lisboa e as ruas já exprimem uma espécie de selvagem alegria.
Foram despertas pela voz de Joaquim Furtado que, no Rádio Clube Português,
avisa-as de que aí está "o dia inicial inteiro e limpo", por que
esperávamos.
Chego ao jornal, o
Diário Popular, claro!, e já lá estão o Corregedor, o Fernando Teixeira, o
Abel, o Zé de Freitas, o Jacinto, o Magro, o Bernardino, o Zé Antunes. A tensão
é muito grande, e o desassossego que se nos impõe torna os nervos numa teia
reticular quase dolorosa. Olhamo-nos e vamos às nossas tarefas. Os telefones
azucrinam, os telexes retinam, os gritos soltam-se. Correm as horas. Andamos,
uns e eu, num vaivém entre o Carmo e o jornal. Até que a História retoma os
seus direitos. "Zé", digo para o Zé de Freitas. "O fascismo
caiu." As lágrimas corriam-nos. E ele: "Vamos lá ver, vamos lá
ver." Céptico por muito ter visto e em excesso ter sonhado. Telefona-me,
de Beja, o Manuel da Fonseca. "Vem para Lisboa! Caiu o fascismo!"
Ele: "Eh pá! Eh pá! Eh pá!" Mais nada; não era preciso dizer mais
nada. "Não te esqueças de mandar provas à Censura", avisa o Fernando
Teixeira. E o Zé de Freitas: "Ó Fernando, nesta altura, a Censura já foi
para a p... que a pariu!"
Onde é que eu
estava no 25 de Abril? Onde devia estar: com os meus camaradas inesquecíveis, a
ajudar a escrever um jornal exacto, infalível, jubiloso, exaltante e
alvoroçado. Este número não foi visado pela Comissão de Censura.
Vocês, reverentes e
autoritários, não têm nada disto, nem nada a ver com isto. Memórias de um dia
que se não fazia noite, um dia elementar e tão claro e liso como um milagre
perfeito.
Por decisão
pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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