Alfredo Leite –
Jornal de Notícias, opinião
Nas habituais
comemorações solenes do dia da Liberdade no Parlamento ouviu-se, desta vez, a
melodiosa "Trova do vento que passa", escrita noutro tempo por Manuel
Alegre, mas cuja atualidade é inequívoca.
Coerente na
repetida recusa em aceitar ter na lapela o cravo da revolução, Cavaco Silva
ouviu a canção e escutou a Esquerda, mas não o PS, a pedir a realização de
eleições antecipadas. Em resposta, o presidente da República apelou ao consenso
nacional, alertando para os perigos de uma crise política nesta altura. E, para
que não restasse qualquer dúvida, saiu em defesa das medidas de austeridade do
Governo. É fácil perceber como vai acabar o consenso que Cavaco pretende.
No apelo ao
consenso e na defesa da inevitabilidade do rumo traçado por Passos Coelho, cumpriu-se
o 39.0 aniversário de Abril. Uma celebração na qual as portas dos jardins de
Belém e de São Bento, tradicionalmente abertas ao povo no dia em que recordamos
a conquista da liberdade, permaneceram fechadas. Pode parecer um pormenor
irrelevante, mas não é. Não porque lhe falte valor simbólico, mas simplesmente
porque, vindo de quem vem, já não nos surpreende.
Afinal, vivemos
como nunca dias de descrença em quem nos governa e no chefe de Estado que
deveria zelar pelo bem-estar de quem o elegeu e fiscalizar, precisamente, a
ação governativa. E atuar.
Quase quatro
décadas volvidas, é lugar-comum reconhecer que vivemos hoje numa sociedade mais
justa do que a que herdámos em 74. Mas é igualmente óbvio que muito do que
ambicionamos construir desde então corre hoje sérios riscos de ruir. Estamos na
Europa com a sensação de não fazermos parte dela; hipotecaram-nos a soberania e
suspenderam-nos a dignidade. Na saúde, na educação, no trabalho. O desemprego,
sobretudo entre aqueles que já nasceram nos dias da liberdade, é galopante. Há
direitos sociais que julgávamos inabaláveis ameaçados dia após dia. A justiça
ou é ineficaz ou demorada, quando não ambas. O envolvimento dos cidadãos nas
decisões soberanas é residual. A reforma do Estado, de que necessitamos como de
pão para a boca, permanece adiada. A profunda reorganização administrativa do
território é uma miragem e o país reafirma o seu centralismo na capital
enquanto o interior se desertifica.
A classe política
está naturalmente descredibilizada. Por tudo isto, mas também por ter sido
tomada por gente incapaz. Políticos de carreira a quem raramente conhecemos
mérito ou "valores" que não os baseados nas lógicas partidárias e
respetivos compadrios. Impotentes, vemos Cavaco Silva a assistir a tudo isto e
a pedir consensos. Como bem lembrou Pedro Bacelar de Vasconcelos no
"Público" de ontem, para que serve um presidente eleito por sufrágio
universal, que tem a capacidade de demitir o Governo ou convocar eleições, que
só o faz quando a "maioria" consente? Com o discurso de Cavaco na
Assembleia da República isto ficou ainda mais claro.
Mas, como todos os
anos, o 25 de Abril não se circunscreveu à cerimónia no Parlamento. Nas ruas,
os sindicatos ensaiaram uma rara aproximação. Ao caminharem lado a lado no
desfile comemorativo realizado em Lisboa, os líderes da CGTP e da UGT, Arménio
Carlos e Carlos Silva, deram o primeiro sinal de onde pode nascer o consenso.
E, pelo menos aqui, cumpriu-se Abril.
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