EL PAÍS, MADRID
– Presseurop – imagem AFP
Disciplina e cortes
orçamentais: o remédio prescrito para a zona euro desde o início da crise já
não reúne a unanimidade, inclusive entre aqueles que o aplicam. Infelizmente,
os eleitores não podem decidir este debate entre os responsáveis não eleitos, o
primeiro dos quais é o comissário europeu para os Assuntos Orçamentais.
Perplexidade. É o
que gera a discórdia acerca
da austeridade, entre a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional
(FMI).
O debate é tão
fortemente técnico como profundamente político. No essencial, trata-se de
calcular quanto se reduz o PIB de um país por cada ponto percentual da redução
da carga fiscal. Pode parecer um tanto complicado mas não é muito: em função do
valor designado como “multiplicador orçamental”, os cortes podem salvar uma
economia ou afundá-la.
Os blogues
nacionais e internacionais nos quais os economistas debatem estes assuntos fervilham
de análises e contra-análises que defendem ou atacam as políticas de
austeridade que a UE está a seguir. O problema não reside apenas no facto de a
discussão que mantêm em torno dos multiplicadores orçamentais ter atingido um
grau elevadíssimo de complexidade. A questão é que, embora as receitas e os
trabalhos destes economistas tenham, no papel, uma apresentação perfeita, com
gráficos, quadros, estudos de caso e fórmulas estatísticas, aquilo que se vê,
quando se observa mais de perto, é um debate extremamente cáustico, ao qual se
acrescentam muitas vezes fortes acusações de incompetência, manipulação de
dados ou desvios ideológicos.
Política de
Bruxelas é a mais adequada?
O que se pode
extrair dessa discussão? Na melhor das hipóteses, ou seja, supondo que todos os
peritos agem de boa fé e tendo em conta as limitações da ciência económica, que
não é uma ciência natural como a física ou a química, podemos concluir que
existe uma dúvida mais do que razoável sobre se a política que está a ser
imposta por Bruxelas (Comissão, Eurogrupo e Banco Central), será a mais
adequada. A única coisa quanto à qual temos 100% de certeza é que não sabemos o
suficiente e, por conseguinte, que ninguém pode garantir a 100% que tem razão.
Não é muito, mas basta para se começar a articular o debate público sobre uma
receita que mais parece um dogma ou verdade revelada do que uma política
pública.
À confusão e à
desconfiança, há portanto a acrescentar a perplexidade que causa ver que as
instituições que integram a chamada troika, a Comissão e o FMI, se permitem
discordar publicamente e de forma recorrente acerca das políticas de
austeridade. A ideia de criar organizações como estas e de colocar à frente
delas autoridades não eleitas democraticamente é que os seus vastos
conhecimentos técnicos sobre como fazer crescer uma economia e criar emprego as
legitimem para governar sem o consentimento popular e sem poderem ser
destituídas em eleições periódicas. Ao aceitarmos o princípio de que algumas
políticas não podem ser submetidas a votação, damos um grande passo atrás em
matéria de democracia, pois a democracia consiste precisamente em podermos
afastar os maus governantes que aplicam más políticas. Se o fazemos é porque,
em troca da perda de legitimidade e de representatividade, se verifica um ganho
de eficácia.
“Tudo para o povo,
mas sem o povo”
Lembram-se do “tudo
para o povo, mas sem o povo” do despotismo iluminado? Eis pois ao que chegámos,
na atual situação europeia: do despotismo iluminado, ficámos com o despotismo,
mas não com a iluminação. Quer dizer, ficámos com um despotismo incompetente
tecnicamente, que não podemos afrontar, nem com sisudas análises económicas,
nem com um controlo político eleitoral ou parlamentar. O expoente máximo de
tudo isso é o Comissário
Rehn, o finlandês responsável pelas recomendações (muitas delas
vinculativas) que os seus serviços acabam de fazer a Espanha, entre as quais se
destacam a recomendação de aumentar o IVA e de tornar os despedimentos ainda
mais baratos.
Rehn não é
exatamente um técnico e, sim, um político no ativo (deputado e vice-presidente
do Partido do Centro finlandês entre 1988 e 1994, depois eurodeputado inscrito
no partido liberal democrático, ALDE, entre 1995 e 1998). O Comissário tem um
doutoramento em ciências políticas pela Universidade de Oxford, o que é muito
louvável, mas não possui mais certezas estatísticas ou empíricas sobre os
multiplicadores orçamentais do que o leitor ou eu. Ainda assim, o futuro de um
país (Espanha), onde o desemprego afeta seis milhões e ameaça chegar aos 27%,
está nas suas mãos. Errar na escolha da política económica é um luxo que não
nos podemos permitir. Se o fizermos, vamos dizer à geração seguinte que o
fizemos involuntariamente ou que não tivemos a coragem de fazer as perguntas
adequadas?
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