Evo Morales narra
ação que ameaçou sua vida e dispara: governos do Velho Continente traíram
valores democráticos que inspiraram gerações
Evo Morales, no Le Monde Diplomatique
- Tradução Cristiana Martin – em Outras Palavras
O último 2 de julho
produziu um dos eventos mais insólitos da história do Direito Internacional: a
interdição feita ao avião presidencial do Estado Plurinacional da Bolívia de
sobrevoar os territórios francês, espanhol, italiano e português, seguida de
sequestro, no aeroporto de Viena (Áustria), por quatorze horas.
Várias semanas
depois, este atentado contra a vida de membros de uma delegação oficial,
cometido pelos Estados considerados democráticos e respeitosos da lei, continua
a provocar indignação ao mesmo tempo que abundam as condenações de cidadãos, de
organizações sociais, de organismos internacionais e de governos por todo o
mundo.
O que aconteceu?
Estava em Moscou,
alguns instantes antes do início de uma reunião com Vladmir Putin, quando um
assistente me alertou de dificuldades técnicas: era impossível nos levar até
Portugal como o previsto inicialmente. Mas assim que terminou o encontro com o
presidente russo, já havia ficado claro que o problema não tinha nada de
técnico…
Desde La Paz, nosso
ministro de Relações Externas, David Choquehuaca, tratou de organizar uma
escala em Las Palmas, na Espanha, e validar um novo plano de voo. Tudo parece
em ordem… mas, agora que estamos no ar, o coronel de aviação Celiar Arispe, que
comanda o grupo aéreo presidencial e pilotava o avião neste dia, vem me ver:
“Paris retirou nossa autorização de vôo! Nós não podemos penetrar no espaço
aéreo francês!”. A surpresa era tão grande quanto sua inquietude: estávamos
prestes a cruzar o sul da França.
Podíamos, é claro,
tentar retornar à Rússia, mas corríamos risco de ficar sem combustível. O
coronel Arispe fez, então, contato com a torre de controle do aeroporto de
Viena para soliciar uma autorização de aterrisagem de urgência. Que as
autoridades austríacas sejam aqui agradecidas por nos dar sinal verde.
Instalado em um
pequeno escritório que me colocaram à disposição no aeroporto, conversava com
meu vice-presidente, Alvaro Garcia Linera e com o ministro Choquehuanca, para
decidir o que fazer na sequência e, sobretudo, tentar compreender as razões da
decisão francesa, uma vez que o piloto havia me informado que a Itália também
tinha recusado nosso pedido de entrada em seu espaço aéreo.
Neste momento,
recebi a visita do embaixador da Espanha na Áustria, Alberto Carnero. Ele me
comunicou que um novo plano de vôo para me levar à Espanha havia sido aprovado.
Explicou que era necessário fazer, antes de tudo, uma inspeção no avião
presidencial. Tratava-se de uma condição sine qua non para a nossa partida em
direção à Las Palmas, nas Grandes Canárias.
Quando pergunto
sobre as razões de tal exigência, Carnero invocou o nome de Edward Snowden,
empregado de uma empresa norte-americano que prestava serviços de espionagem a
Washington. Respondi que só o conhecia pelo que era noticiado na imprensa.
Lembrei igualmente, ao diplomata espanhol, que meu país respeitava as
convenções internacionais: em nenhum caso eu estava tentando extraditar alguém
para a Bolívia.
Carnero estava em
contato permanente com o subsecretário dos assuntos estrangeiros espanhol,
Rafael Mendívil Peydro, que lhe pedia, visivelmente, para insistir.
“Você não
inspecionará este avião, tive que reforçar. Se você não acredita que no que eu
digo, você está chamando o presidente do Estado soberano da Bolívia de
mentiroso.” O diplomata retirou-se para se aconselhar com seu superior, antes
de retornar. Pediu-me, então, que o convidasse tomar um rápido café no avião.
“Mas você acha que eu sou um delinquente?” — perguntei. “Se você tentar entrar
neste avião será necessário que use a força. E eu não resistirei a uma operação
militar ou policial, não tenho meios para tanto.”
Definitivamente
assustado, o embaixador descartou a opção da força, não sem antes afirmar que,
nestas condições, não poderia autorizar o plano de vôo: “Às nove da manhã,
indicaremos se vocês podem ou não partir. Por enquanto, vamos discutir com
nossos amigos”, explicou. “Amigos?” “Mas que amigos da Espanha são esses que
você se refere? A França e a Itália?” Ele recusou-se a responder saiu…
Aproveitei o
momento para discutir com a presidente argentina Cristina Fernández, uma
excelente advogada que me aconselha nas questões jurídicas, e também com os
presidentes venezuelano e equatoriano, Nicolás Maduro e Rafael Correa, ambos
muito inquietos com o assunto.
O presidente Correa
chamou várias vezes durante o dia, para saber as novidades. Esta solidariedade
me deu forças: “Evo, eles não têm nenhum direito de inspecionar seu avião!”,
repetiu. Eu não ignorava que um avião presidencial tem o mesmo status de uma
embaixada.
Mas estes conselhos
e a chegada dos embaixadores da Aliança Bolivariana para os Povos da nossa
América (ALBA) [1] aumentou dez vezes minha determinação de me mostrar firme.
Não, nós não ofereceremos à Espanha ou à qualquer outro país – aos Estados
Unidos, ainda menos que aos outros – a satisfação de inspecionar nosso avião.
Nós defenderemos nossa dignidade, nossa soberania e a honra de nossa pátria,
nossa grande pátria. Nós jamais aceitaremos esta chantagem.
O embaixador da
Espanha reapareceu. Preocupado, inquieto e nervoso, disse que eu já disponha de
todas as autorizações e que podíamos partir. Enfim, decolamos…
A interdição de
sobrevoo, decretada de maneira simultânea por quarto países e coordenada pela
CIA (Central Intelligence Agency) contra um país soberano, sob o único pretexto
que nós talvez estivéssemos transportando Snowden, atualiza o peso político da
principal potência imperial: os Estados Unidos.
Até 2 de Julho
(data do nosso sequestro), todos compreendia que os Estados pudessem dotar-se
de agências de segurança, afim de proteger seu território e populacão. Mas
Washington ultrapassou os limites concebíveis. Violando todos os princípios da
boa fé e as convenções internacionais, transformaram parte do continente
europeu em território colonizado. Um insulto aos direitos do homem, uma das
conquistas da Revolução Francesa.
O espírito colonial
que conduziu a submissão de tantos países demonstra, mais uma vez, que o
império não tolera nenhum limite – nem legal, nem moral, nem territorial. A
partir de agora, está claro para o mundo inteiro que, por esta potência, todas
as leis podem ser transgredidas, toda soberania violada, todo direito humano
ignorado.
O poder dos Estados
Unidos, está claramente nas suas forças armadas, envolvidas em várias guerras
de invasão apoiadas por um complexo militar-industrial fora do comum. As etapas
de suas intervenções são bem conhecidas: após as conquistas militares, a
imposição do livre comércio, de uma concepção singular de democracia, e, enfim,
a submissão das populações à voracidade das multinacionais.
As marcas
indeléveis do imperialismo – militares ou econômicas – desconfiguraram o
Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria. Alguns destes países foram invadidos
por serem suspeitos de portarem armas de destruição em massa ou de abrigar
organizações terroristas. Em todos, milhares de seres humanos foram mortos, sem
que a Corte Penal Internacional instituísse o mínimo julgamento.
Mas o poder
norte-mericano provém igualmente de dispositivos subterrâneos de propagação do
medo, chantagem e intimidação. Algumas das receitas utilizadas por voluntários
de Washington para manter o seu status: a “punição exemplar”, no mais puro
estilo colonial que levou à repressão de índios Abya Yala. [2]
Esta prática agora
recai sobre os povos que decidiram se libertar, e sobre os dirigentes políticos
que optaram por governar para os humildes. A memória desta política de punição
exemplar ainda está viva na América Latina: pensemos nos golpes de Estado
contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002, contra o presidente hondurenho Manuel
Zelaya em 2009, contra Correa em 2010, contra o presidente paraguaio Fernando
Lugo em 2012 e, claro, contra nosso governo em 2008, sob a chefia do embaixador
Americano na Bolívia, Philip Goldberg [3].
O “exemplo” para
que os indígenas, os operários, os trabalhadores do campo, os movimentos
sociais, não ousem levantar a cabeça contra as classes dominantes.
O “exemplo”, para
curvar os que resistem e aterrorizar os outros. No entanto um “exemplo” que, a
partir de agora, conduz os humildes do continente e do mundo inteiro a redobrar
seus esforços de unidade para fortalecer suas lutas.
O atentado de que
fomos vítimas revela as duas faces de uma mesma opressão contra a qual os povos
decidiram se revoltar: o imperialismo e seu gêmeo politico e ideológico, o
colonialismo. O sequestro de um avião presidencial e de seu equipamento – o que
tínhamos direito de considerar impensável no século XXI – ilustra a
sobrevivência de uma forma de racismo no seio de certos governos europeus. Para
eles, os Índios e os processos democráticos ou revolucionários nos quais eles
estão engajados representam obstáculos no caminho da civilização.
Este racismo se
refugia agora na arrogância e nas explicações “técnicas” mais ridículas para maquiar
uma decisão política nascida em um escritório de Washington. Aqui estão os
governos que perderam até a capacidade de se reconhecer como colonizados e que
tentam proteger a reputação de seu mestre.
Quem diz império,
diz colônias
Tendo optado pela
obediência às ordens que lhes foram dadas, certos países europeus confirmaram
seu status de país submisso. A natureza colonial da relação entre os Estados
Unidos e a Europa foi reforçada após os atentados do 11 de Setembro de 2001 e
revelada à todos em 2004, quando tomamos conhecimento da existência de vôos
ilícitos de aviões militares norte-americanos, transportando supostos
prisioneiros de guerra, para Guantánamo ou para prisões europeias.
Sabemos hoje que
estes presumidos “terroristas” eram submetidos a tortura; uma realidade que
mesmo as organizações de defesa dos direitos humanos silenciam frequentemente.
A “Guerra contra o terrorismo” reduziu a velha Europa à classificação de
colônia; um ato hostil, que podemos tratar como terrorismo de Estado, coloca a
vida privada de milhões de cidadãos à disposição dos caprichos do império.
Mas a ofensa ao
Direito Internacional que nosso sequestro expressa pode constituir um ponto de
ruptura. A Europa foi berço das mais nobres idéias: liberdade, igualdade,
fraternidade. Ela contribuiu largamente para o progresso científico e à
emergência da democracia. Ela não é mais que uma pálida figura de si mesma. Um
neo-obscurantismo ameaça os povos de um continente, que séculos atrás,
iluminava o mundo com suas idéias revolucionárias e suscitava a esperança.
Nosso sequestro
poderia oferecer a todos os povos e governos da América Latina, do Caribe, da
Europa, da Ásia, da África e da América do Norte a oportunidade única de
constituir um bloco solidário condenando a atitude indigna dos Estados
envolvidos nesta violação do direito internacional.
Trata-se também de
uma oportunidade ideal de reforçar as mobilizações dos movimentos sociais que
desejam construir um outro mundo, de fraternidade e de complementariedade. Cabe
aos povos construí-lo.
Estamos certos que
os povos do mundo, principalmente os da Europa, lamentam a agressão da qual nós
fomos vítimas e que os afeta igualmente. E interpretamos a indignação deles
como uma maneira indireta de nos pedirem as desculpas a que se ainda recusam os
governos responsáveis. [4]
[1] Dos quais são membros: Antigua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas e a Venezuela.
[2] Nome dado pelas
etnias Kunas do Panamá e da Colôbia ao continente amerciano antes da chegada de
Cristóvão Colombo. Em 1992, esse nome foi escolhido pelas nações indígenas da
América para designer o continente.
[3] Sobre estes
eventos, consultar a página “Honduras” em nosso site e ler “Estado de Exceção
no Equador” de Maurício Lemoine, La valise diplomatique, 1 de Outubro de 2010 e
“O Paraguai tomado pela Oligarquia” de Gustavo Zaracho, La valise diplomatique,
19 de Julho de 2010; “Pequena desestabilização específica na Bolívia” de
Hernando Calvo Ospina, Le Monde Diplomatique, Junho de 2010.
[4] Lisboa, Madri,
Paris e Roma fizeram um pedido de desculpas oficial tardio para La Paz .
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