Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Sobre Nelson
Mandela e a sua história, escreverei na edição impressa do Expresso. Com a mais
profunda das admirações, não será apenas, nem sobretudo, um panegírico. Isso
deixo para o "jornalismo comemorativo" e para os discursos de
circunstância. Hoje fico-me por uma história paralela, que envolve Nelson
Mandela e Portugal, duma forma que não nos fica muito bem.
Li ontem que o
Presidente da República português, Cavaco Silva, enviou uma mensagem de
condolências ao seu homólogo sul-africano, Jacob Zuma, pela morte de Nelson
Mandela. Nela, recorda Mandela como "figura maior da África do Sul e da
História mundial" e o seu "extraordinário legado de universalidade
que perdurará por gerações". E, acima de tudo, a sua "coragem
política" e "estrutura moral". O habitual.
É da estatura moral
e de coragem política que quero falar. Estávamos em 1987, e o mundo pressionava
a África do Sul para libertar Nelson Mandela. Um homem que o Departamento de
Estado norte-americano considerava "terrorista" e que Portugal não via
com especial simpatia. Por essa altura, a Assembleia Geral das Nações Unidas
aprovou, com 129 votos a favor, uma resolução de solidariedade com a luta do
ANC e dos sul-africanos, que incluía um apelo para a libertação incondicional
de Mandela. Alguns, poucos, países estragaram a festa, faltando com o seu voto.
Um deles foi os Estados Unidos, então presididos por Ronald Reagan. Outro foi o
Reino Unido, que tinha ao leme a amante da democracia e da liberdade, Margaret
Thatcher. E o outro foi Portugal, que tinha como primeiro-ministro o mesmíssimo
Cavaco Silva que hoje se comove com as "verdadeiras lições de
humanidade" do homem que, por pressão internacional, saiu, sem rancor, de
20 anos de cativeiro sem a ajuda de quem hoje tanto celebra o seu legado.
Ontem, Ana Gomes
recordou outro episódio. Quando a antiga diplomata estava em Genebra, houve, em
1989, uma votação das Nações Unidas sobre as crianças vítimas do apartheid. As
instruções que vieram de Lisboa, do governo de Cavaco Silva, foram, mais uma
vez, para votar contra. E foi esta, em geral, a posição portguesa.
Bem sei que havia,
como ainda agora há, uma enorme comunidade portuguesa na África do Sul. Tal
como hoje, em Angola, isso, ou os nossos interesses comerciais imediatos, ou as
relações estratégicas, ou qualquer outra posição interesseira, foram sempre
razão última para a nossa diplomacia jogar pelo seguro e calar a sua
solidariedade com quem sofre. Postura com que muita gente concorda. Estão no
seu direito. Escusam é de, no dia em que os heróis se finam, fazer telediscos
comentados sobre a coragem de quem nunca mereceu a sua solidariedade.
O que é irónico é
ver o mesmo homem que desalinhou com quase todo o mundo no momento em que
Mandela precisava da nossa voz, vir, neste momento, falar da coragem política,
da estatura moral e das lições de humanidade de Mandela. Como se viu em 87, nem
nascendo mil vezes as poderia aprender.
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