José Pacheco Pereira – Público,
opinião
Como é que o
Governo pode pensar que em Portugal se vai dar um “milagre” económico com a
pauperização do principal sector dinâmico da sociedade, a classe média?
(Ao
primeiro-ministro, ao vice-primeiro-ministro, à ministra das Finanças, ao
ministro da Solidariedade Social e ao ministro da Economia)
1. Tendo em conta
que dos objectivos iniciais do Memorando, considerados fundamentais (e que eram
apresentados como a cartilha inexorável do governo até à demissão de Vítor
Gaspar), se contava conseguir controlar o défice para os seguintes números:
5,9% em 2011, 4,5% em 2012, 3% em 2013 e se chega ao final de 2013 com o défice
previsto de 5%, como é que se pode afirmar que o “cumprimento” do Memorando foi
um “sucesso”?
2. Tendo em conta
que a dívida máxima prevista no Memorando era de 114,9 % do PIB, e a dívida no
final de 2013 era de perto dos 130% do PIB, como é que se pode afirmar que o
“cumprimento” do Memorando foi um sucesso?
3. Tendo em conta
que, mesmo estes resultados, muito longe dos objectivos iniciais, só foram
conseguidos quer pelo aumento brutal dos impostos, fazendo a consolidação
orçamental essencialmente do lado da receita e não da despesa como estava
previsto, quer através do contínuo uso de receitas extraordinárias, presentes
em todos os orçamentos desde 2011 (incorporação de fundos de pensões, perdões
fiscais, etc.), como é que se pode afirmar que o “cumprimento” do Memorando foi
um sucesso?
4. Tendo em conta
que o objectivo do Governo era usar o Memorando “indo além da troika” para
fazer uma “revolução” nos comportamentos gastadores dos portugueses e numa
refundação estrutural da economia portuguesa, e que isso previa, em 2011,
conseguir-se bastante depressa, onde é que existem esses novos hábitos que não
resultem da maior penúria de pessoas e famílias, e onde estão os sinais das
mudanças estruturais da economia portuguesa? Como é que se pode afirmar que o
“cumprimento” do Memorando foi um sucesso para garantir estes objectivos?
5. Como o controlo
da balança de pagamentos se fez essencialmente à custa da recessão da economia
e da brutal quebra do consumo, como é que se pode esperar que qualquer
recuperação económica, por pequena que seja, não ponha em causa esse controlo?
6. Que papel têm no
fechar de olhos europeu e da troika a estes resultados muito longe do previsto,
as circunstâncias políticas das próximas eleições europeias com um ascenso
claro de forças antieuropeias para quem a permanência da crise do euro e das
dívidas soberanas é um argumento central?
7. Ou que papel tem
na fácil aceitação de resultados medíocres, e mesmo no seu elogio público por
responsáveis europeus, a consciência de que não é possível prosseguir estas
políticas, entre outras coisas porque não existe consenso europeu para
continuar a apoiar directamente os países do Sul endividados e, por isso, ser
mais fácil fazer uma cosmética do sucesso do que uma verificação do falhanço?
Ou por se temer que a má fama dos “protegidos” do “protectorado” atinja a boa
fama dos “protectores”?
8. Por que razão em
2011, quando se iniciaram políticas em nome do cumprimento do Memorando, e,
supostamente por ordens da troika (o que é inverificável por não haver
documentação acessível sobre a evolução das conversações, não se sabendo o que
veio da troika e o que veio do Governo português), não se previa outra solução
que não fosse o “regresso aos mercados” em 2014, e, a partir de 2013, se passou
a discutir a possibilidade de um novo resgate, seja sob a forma de um outro
empréstimo, seja de um "plano cautelar"?
9. Isso significa
que existe a consciência de que em 2014 Portugal tem de continuar a estar sob
qualquer forma de assistência internacional? Durante quanto tempo? Se se tiver
em conta o chamado Pacto Orçamental, para sempre?
10. Se Portugal
tiver uma “saída limpa”, ou à irlandesa, isso deve-se às vantagens políticas
dessa solução em vésperas de eleições ou à convicção do Governo de que, no
futuro imediato, aconteça o que acontecer, os juros portugueses permanecerão
abaixo dos 4,5% a longo prazo? E que garantias existem para que, caso isso não
aconteça depois de 2015, e terminado o “tesouro de guerra” adquirido nestas
últimas emissões, não haverá necessidade de um novo resgate?
11. Será que o
Governo espera recolher os louros de curto prazo com uma saída “limpa” e depois
deixar os problemas de sustentabilidade da “limpeza” para os seus sucessores na
governação? Quem vier a seguir encontrará uma espécie de bomba relógio deixada
pela “saída limpa” que permanece dormente durante dois anos e depois explode
nas mãos de quem estiver no Governo?
12. Quando é que as
políticas de severa austeridade serão, no entender do Governo, primeiro
mitigadas e depois terminadas? Daqui a dez anos? Vinte? Trinta? Todos estes
números já foram avançados, mas convinha saber o que pensa o actual Governo.
13. Ou seja, quando
é que os salários começam a crescer, o desemprego a diminuir, as reformas a
retomar valores do passado, o poder de compra dos portugueses a aumentar? Ou
seja, a haver uma recuperação social e não apenas uma recuperação económica,
cujos frutos a existir podem não ser distribuídos ou ser distribuídos de forma
desigual?
14. Tendo em conta
que o Governo responderá a todas estas perguntas anteriores e às seguintes com
“depende da recuperação económica”, como espera o Governo repor os canais de
justiça social que tem vindo a fechar nos últimos dois anos, ao baixar
salários, despedir pessoas, acentuar a taxação sobre o trabalho, ou fazer
aquilo que eufemisticamente se chama “desvalorização fiscal”? Ou seja, o que é
que o Governo vai fazer para que o “milagre económico”, que depende das
empresas, mas também do trabalho, conheça uma mais equilibrada distribuição de
riqueza na sociedade, para evitar agravar o fosso da sociedade portuguesa,
entre ricos e pobres? Ou seja, quando começa a por termo às politicas actuais?
15. Tendo em conta
que existem algumas centenas de milhares de portugueses (duas, três centenas de
milhares?) que estão desempregados mas fora das estatísticas do desemprego, os
chamados “desencorajados”, que já nem sequer se deslocam aos centros de emprego
regularmente, que políticas tem este Governo para este número muito elevado de
portugueses? Desde já.
16. Tendo em conta
que existem mais umas largas centenas de milhares de portugueses – 525 mil
desempregados de longa duração, dos quais 342 mil estão nessa situação há mais
de dois anos – que não têm perspectivas de emprego provavelmente até ao fim da
vida, que políticas tem este Governo para este número muito elevado de
portugueses? Desde já.
17. Tendo em conta
que cerca de 25% dos portugueses são pobres, número certamente abaixo da
realidade, e em claro crescimento, sendo que 4,5 milhões de portugueses
estariam na pobreza sem prestações sociais, que políticas têm este Governo para
este número muito elevado de pessoas?
18. Tendo em conta
que o Governo diz que “protege” estes pobres dos efeitos da crise (o que não
inclui os custos dos aumentos de rendas, da energia, dos transportes, dos
produtos e serviços básicos, mas apenas a “protecção” de pensões e prestações
sociais muito baixas), significa isso que se limita a uma atitude passiva de
manter a grande bolha de pobreza, mas não dá aos que estão lá dentro qualquer
possibilidade de aí saírem? Ou seja, que políticas existem ou estão previstas
para retirar as pessoas da pobreza? Ou a sua condição é considerada imutável
apenas para manter de forma mais ou menos assistencial?
19. Como é que o
Governo pode pensar que em Portugal se vai dar um “milagre” económico com a
pauperização do principal sector dinâmico da sociedade, a classe média? Como é
que, com uma classe média cada vez mais frágil, é possível manter um elevador
que garanta a mobilidade social de baixo para cima, sem a qual qualquer
“milagre” económico não existe a não ser como propaganda? Ou o Governo entende
que uma coisa é a “recuperação económica”, que diz respeito às “empresas”; e
que a “recuperação social” ou é um subproduto espúrio da actividade
empresarial, ou não é uma prioridade política?
20. Quando o
Governo fala dos portugueses, considera que está a falar destes muitos milhões
de pessoas para quem não existe qualquer perspectiva de futuro e para quem o
Governo não tem quaisquer políticas e aparenta não se preocupar por não ter?
Afinal quem são os portugueses reais se não são estes milhões de portugueses?
Historiador
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