Ricardo Antunes –
Revista Rubra
“O governo Lula foi
uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”
IHU On-Line –
Passados quase três mandatos do governo do PT, que em 2014 completa 12 anos
ininterruptos, que balanço é possível de ser feito com relação ao mundo do
trabalho?
Ricardo Antunes –
O balanço, no seu conjunto, é negativo. Naturalmente, sabemos que durante esse
período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado
ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que
os governos Lula e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no
conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que
concerne ao trabalho. Por exemplo, aumentaram os empregos formais, o que também
é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país,
aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um
novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a
constante.
A formalização,
quando existe, também é quebrada pela rotatividade ampliada. Reconheço que o
governo Lula tomou algumas medidas que diminuíram o impacto da formalidade, mas
é importante lembrar também que, no final do primeiro mandato, ele foi o
responsável por um projeto de reforma trabalhista, no âmbito sindical, especialmente,
que criava uma brecha para que o negociado se sobrepusesse ao legislado.
Portanto, fazendo um olhar de conjunto, podemos dizer que o governo Lula foi
menos nefasto que o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Porém, o que se
espera de um governo com acento de esquerda é que ele enfrente a questão da
superexploração do trabalho. O vilipêndio, as mortes no trabalho, os
sofrimentos, as terceirizações, as precarizações, as rotatividades ampliadas, o
emprego supérfluo, isso não foi contentado.
Ao contrário do
período anterior, em que houve a prevalência de uma economia oscilando entre um
pequeno crescimento e a recessão, no governo Lula houve um crescimento
econômico, e esse crescimento da economia gerou muitos empregos como estamos
vendo até hoje — ainda que a situação econômica atual seja de muito mais
turbulência que a do início do governo PT. Esta situação não me permite dizer
que foi um governo que trouxe mudanças significativas. Ele aumentou o emprego
porque houve crescimento econômico.
É imprescindível
lembrar que, ao mesmo tempo que houve uma valorização pequena, mas real, do
salário mínimo — pois o salário mínimo no Brasil (pouco mais de US 300) é
risível para quem ocupa uma das dez maiores economias do mundo —, os grandes
capitais ganharam muito dinheiro com os governos Lula e Dilma. O triste e
recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da
Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo
precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem,
ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a
esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo.
IHU On-Line –
Considerando-se que Lula vem do movimento operário, esperava-se dele iniciativas
mais ousadas?
Ricardo Antunes –
Se olharmos para o passado de Lula, anos 1970 e 1980, esperávamos
atividades um pouco mais corajosas. Lula foi eleito, em 2002, com uma votação
expressiva e teria condições, em tese, de tomar medidas mais fortes em defesa
do trabalho e de mudanças estruturais. O Brasil se mantém como um país marcado
pela insegurança e pela superexploração do trabalho. Apesar de a China e outros
países da Ásia, a Zona Franca da América Central — Haiti, República Dominicana
— e cidades do México terem níveis de superexploração mais intensos que os
nossos, isso não elimina o fato de que temos intensa exploração do trabalho.
Isto o governo
Lula não enfrentou, e não o fez em razão dos grandes capitais, do
agronegócio, da produção de commodities; mais ainda, o ex-presidente não só
abriu o nosso país a uma transnacionalização da economia, como pegou o
empresariado pela mão — as empreiteiras, por exemplo — e transnacionalizou,
permitindo que essas grandes empresas possam fazer outros trabalhos na América
Latina, na África e em outros continentes. Isto é, o governo Lula foi uma
surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos
setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o
governo.
Quando o Lula e
o PT ganharam as eleições em 2002, sabíamos que nem o Lula nem o PT
eram os mesmos e, tampouco, o Brasil era o mesmo. Eles já tinham padecido de um
trágico processo de desertificação neoliberal, que nos atingiu na década de
1990. Inicialmente com Collor e depois com Fernando Henrique
Cardoso.
IHU On-Line – Onde
houve avanços e quais pontos da agenda do trabalho permaneceram como estavam,
ou pior, recuaram?
Ricardo Antunes –
A melhora se deu fundamentalmente no emprego, que decorre do crescimento da economia
e da relativa contenção do processo de informalização do trabalho. Mas há
coisas negativas. Aumentou enormemente o processo de cooptação das entidades
sindicais pelo governo Lula e depois houve mudanças com a Dilma,
porque ela não tem um centésimo da experiência sindical do Lula —
este foi o grande líder sindical do século XX no Brasil, e que sabia negociar
com os sindicatos como ninguém.
Em seu governo,
criou-se uma espécie de sindicalismo negocial de Estado, em que esta cooptação,
esta servidão voluntária não foi por acaso. Lula expandiu uma medida
tomada por Getúlio Vargas no final dos anos 1930, estendendo às
centrais sindicais o recolhimento de imposto sindical, o que faz com que
algumas centrais sindicais ganhem muito dinheiro do Estado, ao qual
a Central Única dos Trabalhadores – CUT sempre disse ser contra, mas
aceita, recebe e utiliza tais recursos.
Esse é um ponto
muito nefasto do sindicalismo, quer de base, quer das centrais sem autonomia
política, sindical e financeira, pois cria um sindicalismo negocial que depende
do Estado, e se amanhã muda o governo, essa medida cai, o sindicalismo chapa
branca vai ficar sem recursos.
Esse foi um ponto
muito negativo, sem falar dos aspectos mais gerais, por suposto, que são
decisivos. Lula preservou o superávit primário que marca a política
econômica neoliberal, abriu a produção dos transgênicos, incentivou a produção
de commodities; houve uma espécie de regressão do Brasil à produção da nova
divisão internacional do trabalho, em que aceitamos e nos sujeitamos à produção
de commodities, minérios, etanol e soja.
Evidentemente, as
rebeliões de junho mostraram que a “res pública” no Brasil tornou-se uma “res
privada”. Há uma diferença: o tucanato realiza a privatização selvagem; o PT
realiza a privatização branda. Por exemplo, a Petrobras e sua crise com o
pré-sal, os aeroportos. O tom é diferente, mas no substantivo ambos os governos
privatizam. Essa é a triste realidade e conta como déficit do governo do PT.
IHU On-Line – O PT
surge no movimento sindical. Nesse sentido, de que maneira esses 12 anos de
Lula e Dilma reorganizaram a forma de atuação dos sindicatos? Os movimentos
perderam força de oposição ou seguem firmes na defesa aos trabalhadores?
Ricardo Antunes –
Primeiramente, gostaria de repetir que o governo Lula conseguiu um complexo
processo de cooptação das centrais sindicais, especialmente a CUT, e
também, em um primeiro momento, a Força Sindical; no entanto, agora com a
Dilma, ensaia movimentos de contestação. Há um problema mais de fundo, que é
uma mudança profunda no mundo do trabalho, uma nova morfologia do trabalho, uma
classe trabalhadora mais jovem em muitos setores, há um novo proletariado no
campo dos serviços que se expande sem parar. Este novo proletariado mais jovem
está muito mais à margem da representação sindical. Por exemplo, enquanto
há sindicatos fortes, como dos metalúrgicos e dos bancários, não há essa força
nos call centers, no telemarketing, nos setores de fast food e supermercados,
entre outros. Isto cria uma dificuldade muito grande, que é um certo
descolamento entre o sindicalismo de uma era na qual imperava o operariado
herdeiro da fase taylorista-fordista para um outro proletariado que não se vê
representado na estrutura dura da forma de organização sindical. Isto ocorre,
inclusive, porque muitos destes serviços são terceirizados e quase a totalidade
destes trabalhadores está fora dos marcos da representação sindical. É um
problema complexo que os sindicatos vão ter que enfrentar, mas não só no
Brasil, é um fenômeno que marca o sindicalismo dessa virada do século XX para o
XXI em escala global.
IHU On-Line – Na
opinião do senhor, quem ocupa esse espaço forte de mobilização e pressão social
que antes era exercido pelos sindicatos?
Ricardo Antunes –
São duas alternativas. A primeira vem de um vazio (lembre-se de que pesquisas
apontaram que mais de 70% dos jovens que participaram dos levantes do Brasil
eram de estudantes que trabalham, trabalhadores e jovens que estudam) de
representação, e a rua, como praça pública, tornou-se o espaço cotidiano da
revolta. O segundo espaço que se ampliou foi ante a ausência de sindicatos e o
nascimento de movimentos sociais, que, de certo modo, são muito mais livres do
que a estrutura sindical atrelada ao Estado. Nos anos 1990 e 2000 surgiu uma
miríade de movimentos dos sem-teto, barrageiros, pessoas da periferia, que têm
representado a organização não propriamente no espaço de trabalho, mas dos
assalariados. A atuação desses cidadãos oscila entre o vácuo, a praça pública e
os movimentos sociais, o que mostrou a explosão belíssima dos movimentos
sociais do ano passado e que vão voltar agora — porque não pararam de vez — por
ocasião da Copa do Mundo.
IHU On-Line – Qual
o grande desafio do mundo do trabalho no século XXI?
Ricardo Antunes –
O mundo do trabalho é uma espécie de anatomia da sociedade. O trabalho que
estrutura o capital, ou seja, aquele que é desenvolvido para estruturar tal
sistema, desestrutura a humanidade, o social do trabalho. Portanto, o trabalho,
se quiser reestruturar a vida humana — tendo um ponto de partida para que nós
possamos ter um tempo livre dotado de sentido, com fruição, tudo aquilo que é
desejável e necessário para além do trabalho —, precisa destruir o capital.
Esta é a chave. É por isso que há rebeliões do trabalho em Portugal, na Grécia,
na Espanha, no Leste Europeu e nos países asiáticos. Há importantes greves do
setor automobilístico na Índia, há greves diariamente na China. Li,
recentemente, na imprensa que a China pretende devolver milhões de
trabalhadores ao campo, mas eles não têm o que fazer no campo. Como um jovem
que saiu do campo e foi viver nas cidades chinesas vai aceitar voltar para o
campo? Tudo isso faz parte do primeiro desafio.
O segundo desafio é
que o capitalismo fez com que a precarização, pela via da informalidade e da
terceirização, que são fenômenos aproximados, mas não idênticos, se tornasse a
regra e não a exceção. É preciso, aqui e agora, impedir esta regra, evitando
que a terceirização se amplie, e mais, lutar pelo fim dela. Nenhum trabalhador em
uma escola ou universidade pública, por exemplo, prefere ver o outro
trabalhador com mais direitos. Temos que impedir que a terceirização, a
precariedade e a informalização sejam a regra. Isso implica a reorganização dos
trabalhadores, para os quais os sindicatos não são carta fora do baralho.
Do século XIX para
o XX, o mundo do capitalismo mudou profundamente. Nasceu e se desenvolveu a
grande indústria, que já era visível na segunda metade do século XIX, e que se
expandiu no século XX com o taylorismo e o fordismo de grande
intensidade. Aquele antigo sindicato do século XIX, herdeiro de um trabalhador
dos ofícios, das manufaturas, se mostrou incapacitado, e surgiu o sindicalismo
de massa. Nós transitamos do século XX para o XXI, em que esta indústria taylorista-fordista,
que se mantém em vários setores, não é mais a tendência dominante, pois o que é
dominante atualmente são as empresas flexibilizadas e liofilizadas, que
nasceram com o toyotismo no Japão e a chamada acumulação flexível.
Este tipo de empresa,
que se expandiu pelo Ocidente, estruturada nas cadeias produtivas globais,
sofreu um processo de desterritorialização e fragmentação, em que uma empresa
com mais de 20 mil trabalhadores está divida em centenas de unidades
esparramadas pelo mundo. Isso cria a necessidade de um novo sindicalismo mais
aparentado com os movimentos sociais, que seja consentâneo com a nova
morfologia do trabalho no século XXI. Não é possível que a humanidade social
que trabalha veja a destruição de seus direitos, construídos ao longo de
séculos, e se renda. Ainda bem que estamos vendo que a temperatura das
manifestações sociais no mundo inteiro está aumentando continuamente.
*Professor titular
de sociologia na Unicamp. É autor de “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”
e “Os Sentidos do Trabalho”.
(Publicado
originalmente na IHU
On-Line)
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