José
Maria Castro Caldas – As Minhas Leituras
«Não é exagero
dizer que na Eurozona quem hoje detém os instrumentos mais poderosos da
governação – quem tem o poder de dizer “não há dinheiro” – é uma entidade não
eleita, não sujeita ao escrutínio democrático, na realidade dependente do
sistema financeiro e dos seus interesses.»
Nada há de menos
transparente do que a origem e o fluxo do dinheiro numa economia. A opacidade
não resulta só dos segredos que são a alma do negócio, mas também de uma má
compreensão, teórica e prática, dos mecanismos de criação monetária, que afeta
tanto o comum dos mortais, como os supostos especialistas.
Parte da opacidade
é deliberada. Uma frase, atribuída a Henry Ford, dá conta disso mesmo: «Ainda
bem que a maior parte dos Americanos não sabe como na realidade funciona a banca,
porque se soubesse havia uma revolução amanhã de manhã.» Outra parte é
consequência de ideias e teorias económicas erradas.
Opacidade
deliberada e ideias erradas concorrem para que a atividade financeira,
incluindo a do Banco Central, decorra longe do escrutínio público. As decisões
dos bancos privados e do Banco Central condicionam o destino coletivo, mas são
tomadas à margem de qualquer controlo democrático porque são difíceis de
entender e porque as instituições foram desenhadas para as eximir desse
controlo.
Ideias erradas
Começarei pelas
ideias erradas. O que se ensina e as pessoas pensam saber acerca da moeda, do
crédito e do sistema bancário, na maioria das Faculdades de Economia, não
corresponde pura e simplesmente à realidade. [1]
Na maior parte dos
livros de economia ensina-se que os bancos atuam como simples intermediários
entre os aforradores e os investidores. Os depósitos seriam criados pelas
decisões de aforro das famílias. Os bancos, ao concederem crédito, emprestariam
parte destes depósitos a outras famílias, a empresas e ao Estado.
Na maior parte dos
livros ensina-se também que o Banco Central determina o montante global do
crédito, controlando a quantidade de moeda. O Banco Central obrigaria os bancos
a constituir reservas e dessa forma restringiria a sua capacidade de concessão
de crédito.
Ambas as ideias são
erradas.
Na realidade, as
decisões de poupança não aumentam o montante de depósitos nos bancos. Os novos
depósitos dos aforradores são feitos à custa de pagamentos de bens e serviços
que teriam aumentado os depósitos das empresas caso a poupança não tivesse
ocorrido.
Na realidade, o
montante dos depósitos nos bancos aumenta quando os bancos concedem crédito,
abrindo novas contas ou incrementando o montante depositado em contas
existentes. Os bancos não emprestam o dinheiro que têm em depósitos. O ato de
conceder crédito cria depósitos. O contrário, portanto, do que se ensina e a
maior parte das pessoas acredita.
Na realidade, as
reservas no Banco Central são o que se ajusta ao crédito concedido e não o
contrário. Primeiro os bancos decidem quanto emprestam. Quando emprestam criam
depósitos. Depois decidem a fração desses depósitos que querem manter em
reserva no Banco Central para garantir os levantamentos dos clientes, fazer
pagamentos a outros bancos, ou assegurar rácios de liquidez legais. As reservas
são constituídas pelos bancos comerciais com empréstimos do Banco Central a uma
taxa que o próprio Banco Central determina. Primeiro, o crédito criado pelos
bancos comerciais, depois, as reservas constituídas com dinheiro emprestado
pelo Banco Central. As reservas não limitam a capacidade de concessão de crédito
dos bancos comerciais.
Os bancos
comerciais criam moeda. Quando um banco concede crédito não entrega normalmente
um maço de notas ao cliente. Credita a sua conta. É tudo. Desta forma cria
moeda. Por outro lado, um devedor que amortiza dívidas destrói moeda.
Os bancos,
incluindo o Banco Central, também criam moeda quando compram ativos ao setor
privado não financeiro ou ao Estado, creditando as suas contas de depósito.
Quando vendem ativos destroem moeda.
Conceder crédito é
o negócio dos bancos comerciais. Por sua vontade não haveria limites para a
concessão de crédito. No entanto, os limites existem: o nível das taxas de juro
de que depende a rentabilidade dos bancos, os riscos de emprestar a quem pode
não ser capaz de pagar e a política regulatória do Banco Central. Mas em
períodos de euforia em que a concessão de crédito resulta no crescimento,
aparentemente continuo, do preço dos ativos reais e financeiros em que o
crédito é aplicado, os bancos tendem a levar a concessão de crédito para lá de
todos os limites. Só quando a escalada do preço dos ativos atinge o cume e
começa a dar sinais de inversão é que os bancos se retraem na concessão de
crédito. Essa retração alimenta mais a deflação dos preços dos ativos e
precipita o que tendo começado por ser uma crise financeira se transforma
rapidamente numa crise económica e social.
Isso mesmo foi o
que aconteceu. Perfuradas as “«bolhas», a destruição de moeda passa a
predominar sobre a sua criação. É preciso então que o Banco Central intervenha.
O Banco Central pode
tentar contrariar a destruição de moeda e a retração do crédito baixando a taxa
de juro que cobra aos bancos comerciais pelas suas reservas. Isso permitiria
aos bancos comerciais reduzir as suas próprias taxas de juro e dessa forma
aumentar o crédito. Mas quando a taxa de juro do Banco Central é reduzida quase
a zero, como atualmente acontece, é preciso recorrer a outros meios: compras de
ativos, nomeadamente obrigações do Estado, diretamente pelo Banco Central, como
tem sido feito nos EUA e em Inglaterra, ou indiretamente, através dos bancos
comerciais, como tem sido feito pelo BCE.
Com estas compras
os vendedores dos ativos verão os seus depósitos nos bancos comerciais
aumentar. Tenderão então a procurar aplicações mais vantajosas do que um
depósito, por exemplo, obrigações e ações. Essa procura de obrigações e de
ações contrariará a tendência de deflação destes ativos e disponibilizará às
empresas uma fonte de financiamento mais barato. Supõe-se deste modo que o
investimento voltará a crescer, criando emprego, e que os negócios voltarão
progressivamente aos velhos hábitos.
Que intervenções
deste tipo do Banco Central tendem a suster a queda do preço dos ativos reais e
financeiros não há qualquer dúvida. Nesta crise, passado o choque inicial, ao
mesmo tempo que os índices de preços no consumidor indiciam deflação, as
cotações dos ativos nos mercados financeiros não têm parado de subir.
A dúvida reside na
transmissão desse efeito ao conjunto da economia. A razão é simples: o
investimento financeiro só propicia o investimento «real» – o que cria emprego
– se existir procura para os bens e serviços gerados por esse investimento. Mas
como a moeda criada pelas intervenções do Banco Central está a afluir para as
contas dos agentes que detinham ativos financeiros, e não para as dos
trabalhadores ou dos consumidores em geral, a procura continua insolvente e o
dinheiro criado permanece em circulação no setor financeiro, inflacionando o
preço dos ativos sem gerar investimento capaz de criar emprego.
A quem serve esta
política do Banco Central?
Compreender melhor
como na realidade os bancos criam moeda ajuda a ver para lá das aparências.
Conhecendo os mecanismos da criação monetária, quando ouvimos dizer que «não há
dinheiro» devemos pelo menos sorrir. Na realidade, dinheiro é o que não falta.
E quando falta, faz-se. E assim como se faz encaminha-se. Quando não são os
bancos comerciais a fazê-lo pode ser o Banco Central.
A política dos
Bancos Centrais ao longo desta crise tem servido principalmente os detentores
de ativos financeiros [2]. Impede que a sua riqueza se evapore. O
encaminhamento do dinheiro criado pelo Banco Central para a compra de ativos
financeiros conserva ou aumenta o valor de mercado dos ativos que constituem a
riqueza financeira de quem os detém.
É certo que este
dinheiro podia ser encaminhado de outra forma. Podia financiar o Tesouro e
propiciar investimento público e criação de emprego, em momentos em que poucos
privados querem correr esses riscos. No entanto, este tipo de encaminhamento
não é o que predomina. O Banco Central Europeu está mesmo impedido de o fazer
pelos tratados.
Se as pessoas
soubessem que o dinheiro criado pelos bancos, incluindo o Banco Central, podia
financiar a criação de emprego, e não os detentores de ativos financeiros, haveria
uma revolução amanhã de manhã? Não sabemos. O que sabemos é que o sistema
bancário moderno, provavelmente ainda mais do que no tempo de Henry Ford, tende
a sobrepor os interesses dos donos do capital financeiro ao interesse público.
Os Bancos Centrais
foram transformados nos últimos anos em entes muito estranhos. Dizia-se que não
podiam ser controlados pelo poder político democrático porque governos
democraticamente eleitos não resistiriam à tentação de financiar despesa
pública com criação monetária pelo Banco Central, gerando deste modo tensões
inflacionistas e dívidas públicas incontroláveis.
Os Bancos Centrais
foram então tornados «independentes». As suas administrações deixaram de ter de
seguir orientações ou prestar contas aos poderes democraticamente constituídos.
No caso do BCE, foi determinado que não financiassem a despesa pública, nem se
preocupassem com o desemprego. O seu mandato incluía apenas o controlo da
inflação.
Acontece, no
entanto, que a prática dos Bancos Centrais, a sua obsessão com resgates
bancários e intervenções orientadas para a sustentação do preço dos ativos
financeiros, a própria origem e circulação do seu pessoal dirigente, sugerem
que longe de se terem tornados independentes, os Bancos Centrais se tornaram
num conselho de administração de um poder financeiro dotado do poder de criar,
destruir e encaminhar dinheiro.
Isento de qualquer
forma de controlo democrático este poder financeiro constitui-se hoje numa
ameaça à democracia.
Finança e
democracia
Longe de serem
instrumentos de controlo da sociedade sobre a atividade bancária, os Bancos
Centrais transformaram-se em instrumentos de controlo da sociedade pelo sistema
financeiro.
Em parte alguma,
como na Europa, o Banco Central, e o sistema bancário a ele associado, assumiu
tantos poderes. Além dos poderes de criar, destruir e encaminhar dinheiro, o
Banco Central Europeu assumiu poderes diretamente políticos. Quem não se lembra
das cartas do seu governador aos primeiros-ministros de Espanha e da Itália (e
outras pressões dirigidas à Irlanda e Chipre) impondo-lhes políticas de
«ajustamento estrutural» e «consolidação orçamental» que nada têm a ver com o
seu mandato, sob pela de deixar de intervir nos mercados secundários de títulos
de dívida pública e deixar as taxas de juro da dívida dispararem?[3] Nenhum
destes primeiros-ministros ficou muito tempo no seu posto depois disso. Em
Espanha perdeu as eleições, em Itália foi substituído, sem eleições, por um
banqueiro de confiança, como já tinha sucedido na Grécia.
Não é exagero dizer
que na Eurozona quem hoje detém os instrumentos mais poderosos da governação –
quem tem o poder de dizer «não há dinheiro» – é uma entidade não eleita, não
sujeita ao escrutínio democrático, na realidade dependente do sistema financeiro
e dos seus interesses.
Devemos admirar-nos
com o crescente divórcio entre sistema político e os cidadãos? Votar ou não
votar nos que se apresentam para fazer «o que é possível» parece fazer pouca
diferença. No quadro do que parece ser possível, quem manda, independentemente
dos governos de turno, não chega sequer a ser uma senhora Merkel qualquer. Quem
manda é o sistema financeiro.
Passados mais de
cinco anos do início da crise provocada pelo negócio bancário levado para lá de
todos os limites, desviados biliões públicos para resgates bancários, há um
resgate que ficou por fazer – o resgate da democracia do cativeiro do poder
financeiro. Isso é o «impossível» que é preciso fazer.
__________
[1] Isso
mesmo é o que nos vem agora dizer o Banco de Inglaterra num boletim que pode
ser facilmente encontrado na internet emhttp://www.bankofengland.co.uk/publications/Documents/quarterlybulletin/2014/qb14q102.pdf.
O boletim é acompanhado por um vídeo que pode ser encontrado em http://www.bankofengland.co.uk/publications/Documents/quarterlybulletin/....
[2] 4,5 biliões de
‘ajuda’ entre Outubro de 2008 e Outubro de 2011, istp é 36,7% do PIB da UE
(Relatório do High-level Expert Group on reforming the structure of the EU
banking sector, Presido por Erkki Liikanen , Bruxelas, 2 outubro 2012.http://ec.europa.eu/internal_market/bank/docs/high-level_expert_group/re...
[3] http://www.forbes.com/sites/karlwhelan/2012/08/17/the-ecbs-secret-letter-to-ireland-some-questions/
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