quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O CALIFADO (1)




Rui Peralta, Luanda

I - Após a morte do Profeta, em 632, iniciou-se o processo da sucessão do líder e das linhas programáticas do movimento e da direcção político-religiosa da comunidade dos crentes (umma). Optou a comunidade pela solução do lugar-tenente, o califa, decisão que não foi pacífica. Os problemas da sucessão já se tinham feito sentir na discussão sobre o local da sepultura do Profeta. A discussão revelou três tendências, camufladas em três distintas cidades: Medina (defendida pelos velhos companheiros do Profeta), Meca (defendida pelos "assimilados", convertidos ao Islão, após a rendição da cidade ás hostes de Maomé) e Jerusalém (para que o Profeta ficasse sepultado junto aos Profetas que o precederam). Prevaleceu Medina (cidade onde Muahmmed ben Abdullah bin Hachem, vulgo Maomé, faleceu), embora Meca alegasse ser o local de origem do seu clã (Maomé pertencia ao ramo Hachemita do clã Quraychita).

Estas três tendências revelaram-se no processo da sucessão e disputaram a liderança, originando cismas e cisões, escolas teológicas e jurídicas e seitas.  Tudo correu de forma pacífica até ao terceiro califa, Otman, entre 644 a 656, ano em que foi assassinado pelos partidários de Ali, genro do Profeta (casado com Fátima, filha de Maomé e pai dos dois netos varões, logo sucessores, do Profeta, Hussein e Hassan). Ali e o seu partido (ou facção) o shiat, ou ash-shia, governaram a umma até 661, ano em que Ali foi morto, sucedendo-lhe Abi Suyfan (governador da Síria, líder do clã Omíada, tal como o terceiro califa, Otman). Com ele o califado tornou-se hereditário, embora a nomeação fosse formalizada por um conselho de notáveis. Com Ali e o seu partido, que liderava a coligação fátimida (coligação dos clãs de Bagdade, apoiada por Medina), deu-se o primeiro cisma islâmico, o Xiismo. Dos Omíadas, clã dominante (liderou uma coligação de clãs de Damasco e contava com o apoio dos "assimilados" de Meca) nasceu o bloco maioritário, o sunismo (fidelidade á tradição, á "sunna"). Afirmou-se, ainda, um terceiro partido, os "dissidentes", carijitas, uma dissensão do partido de Ali (e responsáveis pela sua morte, pois Ali foi acusado de traição pelos carijitas, sendo assassinado por um comando carijita), que denunciava a sucessão e acusava os califas de "ímpios". Esta facção era minoritária e contava com apoios em Jerusalém (a sua influencia estendeu-se pelo Afeganistão, Norte de África e África Oriental).

O xiismo (e todas as suas fragmentações) permaneceu contestatário, mesmo quando aparentava uma atitude imobilista. Algumas das suas ramificações tiveram acesso ao poder politico, como os Ismaelitas entre os séculos X a XII, dominando um vasto território que abrangia parte da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irão, estendendo-se pelas áreas montanhosas da fronteira afegã-paquistanesa, da actual Caxemira e estendendo-se pela Ásia Central. O núcleo central xiita, por sua vez, tornou-se dominante no Irão desde inicio do século XVI, assumindo-se como religião do Estado, no período sefévida. A fragmentação politica do mundo islâmico foi contida entre os séculos XVI e finais do XVIII, pela emergência de três grandes potências: a Pérsia (de predominância xiita) a Índia do Grão-Mongol (predominantemente sincrética) e o Império Otomano (predominância sunita, mas berço de muitas escolas sofistas e sincréticas), mas o século XIX representou a hegemonia do Ocidente e o século XX inicia-se com profundas alterações politicas no mundo islâmico, que acentuaram a hegemonia politica (e económica) ocidental.

Liberalismo e socialismo foram as duas lanças que penetraram a epiderme ideológica do Islão. A modernização das sociedades islâmicas iniciou-se nesse instante, em que as pontas das lanças perfuraram a dura crosta...

II - Em termos orgânicos o fascismo no mundo islâmico remonta aos anos 20 do século passado e sempre esteve mais presente nas dinâmicas externas (sendo manipulado e utilizado tanto pelo Ocidente como pelo Oriente, nas ofensivas efectuadas contra a comunidade islâmica, sempre que tentasse sair do seu posicionamento económico periférico). A Alemanha nazi utilizou unidades islâmicas bósnias, egípcias e magrebinas. O Japão utilizou em diversas situações a extrema-direita islâmica. Na Turquia a extrema-direita (Lobos Cinzentos) movimenta-se nos meios militares e no Egipto surgem elementos fascistas associados á Irmandade Muçulmana, nos anos 30. Após a II Guerra Mundial a extrema-direita islâmica retrai-se, embora permaneça activa e organizada. Ressurge nos finais da década de 50 e na década de 60 na Turquia, Indonésia, Malásia e Paquistão. Os estados do golfo e as suas petro-monarquias foram um refúgio para muitos notáveis teólogos ou juristas da extrema-direita e acabaram por ser os centros ideológicos do movimento fascista no mundo islâmico contemporâneo (sem escamotear a importância que alguns regimes nacionalistas socializantes tiveram, após o falhanço modernizador, nas derivas ideológicas nacionalistas, que representaram um contributo teórico não tradicionalista para o pensamento fascista islâmico). No entanto foi com a guerra afegã que o fascismo islâmico adquiriu uma nova capacidade organizativa, assente em inovadoras redes logísticas e de financiamento. Com o apoio da CIA, cobertura e financiamento dos Estados do Golfo e dos USA a estrutura fascista cresce, mobilizando massas descontentes, marginalizadas.

O fascismo islâmico actual irrompe na comunidade sunita, exactamente por esta ser a maioritária. Existem fascistas islâmicos xiitas, mas as suas audiências são minoritárias e mal recebidas nos meios xiitas, bastante diversificados e pluralistas, embora nos seus meios mais conservadores seja notório um resvalar para o fascismo (observável em alguns fenómenos sociais iranianos - e bastante acentuado na revolução iraquiana - ou o Exército Mahdi, liderado por Moqtada al-Sadre, do clã Sadre, cujo tio-avô era amigo pessoal do Ayatollah Khomeini (figura que poderemos anexar ao pensamento fascista de raiz xiita) e que foi enforcado sob as ordens de Saddam Hussein. De qualquer forma estamos a referir vestígios e não uma estrutura orgânica e programática, consequência do discurso fundamentalista e conservador.

A rede fascista que tem como centro neural a Al-Qaeda -  por sua vez núcleo central da Frente Islâmica Mundial para a Guerra Santa contra os Judeus e Cruzados - aglomera grupos diversos, anteriores uns, gerados pela rede outros. Em Caxemira e nas regiões fronteiriças Índia/ Paquistão, Paquistão/ China, Paquistão/Afeganistão, actuam os Combatentes Islâmicos da Liberdade, os Lutadores do Profeta e o Exército dos Puros, três organizações formadas nos novos moldes organizativos, mas representativas de velhos interesses e aspirações (Caxemira, ou o problema das minorias islâmicas na região). No Sudoeste Asiático, é na Indonésia que actua a principal organização, o Jemaha Islamiah (JI), com células em todo o território indonésio e na Austrália. Este grupo poderoso financia e coordena o Rabitatul Mujahidin (Coligação Combatente Islâmica), que actua nas Filipinas, Malásia, Singapura e Tailândia. Um dos seus ramos expandiu-se para o Bangladesh.  A JI foi criada nos anos 90 e tem como objectivo a formação de um grande Estado pan-islâmico que englobe toda a região. Muitos dos seus militantes combateram na Chechénia e a organização recebe muitos financiamentos da Arábia Saudita e Estados do Golfo, devido ás suas fundações e associações de caridade.
 
No Iraque a rede Al-Tawhid (AT), integrante da AQ, tornou-se conhecida dos serviços ocidentais devido a degolar os reféns ocidentais. Organização criada nos meios da fragmentada resistência armada á invasão norte-americana (maioritariamente formada por facções do BAAS iraquiano e por grupos sunitas de extrema-direita) liderada por Abu Zarqawi - morto em 2006, numa operação coordenada pela CIA - e que tem no Sheik Abu-Omar, um jordano-palestiniano conhecido pelo MI5 (residiu em Londres desde 1994, até 2001) por Abu Qatada, o seu principal ideólogo. A AT e a Frente al-Nusra (FAN) síria (integrante da AQ, responsável por massacrar aldeias e torturar mulheres e crianças) formaram o Estado Islâmico (ISIL), nascida dos escombros gerados pelos conflitos nestes países e em ultima análise, originados pela intervenção ocidental nas dinâmicas internas de ambos os países. Na Palestina as células fascistas funcionam no âmbito das mesquitas, infiltradas no Hamas (embora com alguma descrição) ou assumindo estruturas fantasmas,
voláteis. O mesmo tipo de actuação surge no Líbano, embora aqui existam estruturas fascistoides na Falange Libanesa (formada na comunidade cristã maronita) e nas Milícias cristãs do sul do Líbano (formadas por Israel, para actuarem nas fronteiras entre os dois países). Na Jordânia os fascistas utilizam as mesquitas e a infiltração em partidos políticos conservadores.

No Irão não existem dados sobre actividades destes grupos, embora eles existam e actuem de forma discreta e camuflada. Não encontram eco na oposição e não surgem, abertamente, nas manifestações oposicionistas. Já na Turquia o panorama é outro. Muitos destes grupos actuam na Síria, mesmo que sejam formados por militantes turcos. A Turquia tem uma extrema-direita histórica (os Lobos Cinzentos) que participou directamente na repressão, ao lado das ditaduras militares (embora este convívio nem sempre fosse pacifico). A extrema-direita turca é formada por duas tendências, uma tradicionalista, defensora dos valores do Império Otomano e a outra que acompanhou o movimento nacionalista e modernizador de Ata Turk. Neste sentido o fascismo islâmico actual vê nos tradicionalistas um aliado natural e assume-se como sucessor desta tendência. 

Nos Estados do Golfo os fascistas islâmicos encontram-se numa situação aparente de clandestinidade. Aparente porque as petro-monarquias têm de demonstrar serviço aos seus parceiros norte-americanos, aliança necessária para a sua sobrevivência no poder. As ligações entre sectores da aristocracia e as redes fascistas são profundas, muitas vezes ao nível do clã. Por outro lado as relações entre os teólogos e juristas desta região e o movimento fascista são uma consequência da contradição entre os puristas e a governação aliada do Ocidente. O discurso fundamentalista religioso e jurídico, a rigidez dos seus preceitos e a forma como convivem com o Ocidente (através dos negócios) é uma situação potencialmente explosiva.          

No Iémen vive-se uma situação social muito mais linear, menos complexa ao nível do relacionamento com o Ocidente, mas muito mais explosiva nas ruas. Também aqui existe uma parceria com os USA no combate ao terrorismo, mas é em Sanaa, a capital, que existe o mais importante centro ideológico do fascismo islâmico: a Universidade de al-Iman, fundada em 1993 pelo Sheik Abd al-Majid al-Zindani, reitor, formado em farmacologia na década de 50 na Universidade do Cairo, onde tornou-se conhecido pela sua actividade anti-comunista. Foi professor, nos anos 80, de Bin-Laden e combateu com este no Afeganistão. Publicou 14 livros e é uma referência nos meios fundamentalistas e integristas. Procurado pelos USA e a ONU colocou-o na lista dos "terroristas globais".

É, no entanto, em África que o fascismo islâmico surge como factor político de encruzilhada, explorando as dinâmicas internas e aproveitando a situação internacional.

III - No continente africano existem diversos níveis organizativos. A táctica de infiltração em diversos movimentos e associações já produziu efeitos na estrutura magrebina do movimento, que adquiriu uma considerável estrutura autónoma (a AQM, Al-Qaeda do Magrebe). O Grupo Salafista de Predicação e Combate (GSPC), da Argélia, que em 2007, pela voz do seu líder, o emir Abdelmalek Droukdal, proclamou a adesão do grupo á AQM (o GSPC já pertencia á Frente Islâmica Mundial). Em Marrocos actua o Ansar al-Mahdi, infiltrado nas forças armadas e na policia e com apoios na classe média marroquina. A Mauritânia é palco de acções diversas da AQM e na Tunísia a AQM utiliza os grupos e associações fundamentalistas e está infiltrada nos partidos conservadores. Também as milícias que espancam sindicalistas e trabalhadores nas greves e meetings, atacam manifestações femininas e provocam distúrbios diversos. Na Líbia, que vive um processo de desintegração, os fascistas estão infiltrados nas milícias tribais, movimentando-se cada vez com maior facilidade, utilizando o arsenal financiado pela NATO, na guerra de agressão.   

O Egipto é outro "viveiro" que convive com o fascismo desde a I Guerra Mundial, não somente no interior dar tendências mais direitistas da IM, como no movimento nasserista (em consequência das linhas germanófilas desenvolvidas na luta contra a ocupação britânica). Por outro lado a "plataforma egípcia" é sensível aos movimentos desenvolvidos na Palestina (principalmente em Gaza), península arábica e Turquia. Na Somália, completamente desestruturada, o fascismo islâmico tem rédea solta, apresenta-se sob a forma de movimento de aplicação da sharia e defronta as forças etíopes e da U. A. ou utiliza a pirataria marítima para obter fundos (mesmo que tenha de competir com bandos diversos e clãs poderosos, ou partilhar recursos e lucros. São quatro os grupos mais importantes de pirataria marítima somali, com ligações á AQ e aos tribunais islâmicos: Marines Somalis, Guarda Costeira Voluntária Nacional, Combatentes de Merca - localidade a 70 km a sul de Mogadíscio - e os Combatentes de Puntland). A Somália foi palco da derrota dos USA, situação humilhante para o Ocidente que os fascistas, os integristas e senhores da guerra somalis aproveitaram a seu favor. ONG's islâmicas promoveram a entrada no país de operacionais vindos do Médio-Oriente tornando a milícia dos tribunais islâmicos uma força bem equipada. No entanto é de lembrar que as milícias dos tribunais não são uma estrutura da Al-Qaeda, mas sim uma aliada e este fenómeno é extensivo ao Sudão, Mali, Nigéria, Republica Centro-Africana e a África Oriental (excepto o Quénia e algumas regiões do Mali, onde a AQ age de forma directa, não recorrendo a camuflagem, ou a outra estrutura politica. No Quénia este fenómeno é devido a dois factores: as especificidades do islamismo no país e ao fascismo banto que sempre esteve presente - e diluído - no movimento de libertação nacional e na direita queniana. No Mali a questão tem raízes históricas mais profundas - as caravanas, o Império do Mali, as rotas comerciais intercontinentais, as rotas culturais - raízes que ao cruzarem-se com a recente agressão á Líbia - que provocou instabilidade em toda a região - a uma economia fragilizada, a politicas ineficazes e ao nacionalismo irrealista, fascistoide, das elites bantos no poder desde a independência do país, provocam desastres inevitáveis que terminam com as patrulhas da Policia Islâmica, milícia da AQ, a vergastarem as mulheres nas ruas e a eliminarem os que resistem), cujas milícias e organizações fascistas mantém contactos a vários níveis com a AQ mas com uma grande autonomia de actuação e de objectivos, devido a representarem interesses históricos, ou situações históricas adiadas pelas respectivas independências, que acabaram por degenerar em situações de grande conflitualidade.

Os países africanos que não pertencem ao mundo islâmico, ou onde a penetração islâmica foi travada pelos colonizadores (a colonização portuguesa em Angola, por exemplo, utilizou o catolicismo como ideologia da colonização, com grande sucesso, embora fosse contrariada pelo protestantismo, entrado no território através dos alemães e holandeses e utilizado pelos norte-americanos nos finais da década de 50 para penetrarem no movimento de libertação nacional, também com sucesso), são utilizados como plataformas de financiamento e lavagem de dinheiro.

(continua)

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