Rui Peralta, Luanda
I - Após a morte do Profeta, em
632, iniciou-se o processo da sucessão do líder e das linhas programáticas do
movimento e da direcção político-religiosa da comunidade dos crentes (umma).
Optou a comunidade pela solução do lugar-tenente, o califa, decisão que não foi
pacífica. Os problemas da sucessão já se tinham feito sentir na discussão sobre
o local da sepultura do Profeta. A discussão revelou três tendências,
camufladas em três distintas cidades: Medina (defendida pelos velhos
companheiros do Profeta), Meca (defendida pelos "assimilados",
convertidos ao Islão, após a rendição da cidade ás hostes de Maomé) e Jerusalém
(para que o Profeta ficasse sepultado junto aos Profetas que o precederam).
Prevaleceu Medina (cidade onde Muahmmed ben Abdullah bin Hachem, vulgo Maomé,
faleceu), embora Meca alegasse ser o local de origem do seu clã (Maomé
pertencia ao ramo Hachemita do clã Quraychita).
Estas três tendências revelaram-se
no processo da sucessão e disputaram a liderança, originando cismas e cisões,
escolas teológicas e jurídicas e seitas. Tudo correu de forma pacífica
até ao terceiro califa, Otman, entre 644 a 656, ano em que foi assassinado pelos
partidários de Ali, genro do Profeta (casado com Fátima, filha de Maomé e pai
dos dois netos varões, logo sucessores, do Profeta, Hussein e Hassan). Ali e o
seu partido (ou facção) o shiat, ou ash-shia, governaram a umma até 661, ano em que Ali foi morto,
sucedendo-lhe Abi Suyfan (governador da Síria, líder do clã Omíada, tal como o
terceiro califa, Otman). Com ele o califado tornou-se hereditário, embora a
nomeação fosse formalizada por um conselho de notáveis. Com Ali e o seu
partido, que liderava a coligação fátimida (coligação dos clãs de Bagdade,
apoiada por Medina), deu-se o primeiro cisma islâmico, o Xiismo. Dos Omíadas,
clã dominante (liderou uma coligação de clãs de Damasco e contava com o apoio
dos "assimilados" de Meca) nasceu o bloco maioritário, o sunismo
(fidelidade á tradição, á "sunna"). Afirmou-se, ainda, um terceiro partido,
os "dissidentes", carijitas, uma dissensão do partido de Ali (e
responsáveis pela sua morte, pois Ali foi acusado de traição pelos carijitas,
sendo assassinado por um comando carijita), que denunciava a sucessão e acusava
os califas de "ímpios". Esta facção era minoritária e contava com
apoios em Jerusalém (a sua influencia estendeu-se pelo Afeganistão, Norte de
África e África Oriental).
O xiismo (e todas as suas
fragmentações) permaneceu contestatário, mesmo quando aparentava uma atitude
imobilista. Algumas das suas ramificações tiveram acesso ao poder politico,
como os Ismaelitas entre os séculos X a XII, dominando um vasto território que
abrangia parte da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irão, estendendo-se pelas
áreas montanhosas da fronteira afegã-paquistanesa, da actual Caxemira e
estendendo-se pela Ásia Central. O núcleo central xiita, por sua vez, tornou-se
dominante no Irão desde inicio do século XVI, assumindo-se como religião do
Estado, no período sefévida. A fragmentação politica do mundo islâmico foi
contida entre os séculos XVI e finais do XVIII, pela emergência de três grandes
potências: a Pérsia (de predominância xiita) a Índia do Grão-Mongol
(predominantemente sincrética) e o Império Otomano (predominância sunita, mas
berço de muitas escolas sofistas e sincréticas), mas o século XIX representou a
hegemonia do Ocidente e o século XX inicia-se com profundas alterações
politicas no mundo islâmico, que acentuaram a hegemonia politica (e económica)
ocidental.
Liberalismo e socialismo foram as
duas lanças que penetraram a epiderme ideológica do Islão. A modernização das
sociedades islâmicas iniciou-se nesse instante, em que as pontas das lanças
perfuraram a dura crosta...
II - Em termos orgânicos o
fascismo no mundo islâmico remonta aos anos 20 do século passado e sempre
esteve mais presente nas dinâmicas externas (sendo manipulado e utilizado tanto
pelo Ocidente como pelo Oriente, nas ofensivas efectuadas contra a comunidade
islâmica, sempre que tentasse sair do seu posicionamento económico periférico).
A Alemanha nazi utilizou unidades islâmicas bósnias, egípcias e magrebinas. O
Japão utilizou em diversas situações a extrema-direita islâmica. Na Turquia a
extrema-direita (Lobos Cinzentos) movimenta-se nos meios militares e no Egipto
surgem elementos fascistas associados á Irmandade Muçulmana, nos anos 30. Após
a II Guerra Mundial a extrema-direita islâmica retrai-se, embora permaneça
activa e organizada. Ressurge nos finais da década de 50 e na década de 60 na
Turquia, Indonésia, Malásia e Paquistão. Os estados do golfo e as suas
petro-monarquias foram um refúgio para muitos notáveis teólogos ou juristas da
extrema-direita e acabaram por ser os centros ideológicos do movimento fascista
no mundo islâmico contemporâneo (sem escamotear a importância que alguns
regimes nacionalistas socializantes tiveram, após o falhanço modernizador, nas
derivas ideológicas nacionalistas, que representaram um contributo teórico não
tradicionalista para o pensamento fascista islâmico). No entanto foi com a
guerra afegã que o fascismo islâmico adquiriu uma nova capacidade organizativa,
assente em inovadoras redes logísticas e de financiamento. Com o apoio da CIA,
cobertura e financiamento dos Estados do Golfo e dos USA a estrutura fascista
cresce, mobilizando massas descontentes, marginalizadas.
O fascismo islâmico actual irrompe
na comunidade sunita, exactamente por esta ser a maioritária. Existem fascistas
islâmicos xiitas, mas as suas audiências são minoritárias e mal recebidas nos
meios xiitas, bastante diversificados e pluralistas, embora nos seus meios mais conservadores seja notório um resvalar para o fascismo (observável em alguns
fenómenos sociais iranianos - e bastante acentuado na revolução iraquiana - ou
o Exército Mahdi, liderado por Moqtada al-Sadre, do clã Sadre, cujo tio-avô era
amigo pessoal do Ayatollah Khomeini (figura que poderemos anexar ao pensamento
fascista de raiz xiita) e que foi enforcado sob as ordens de Saddam Hussein. De
qualquer forma estamos a referir vestígios e não uma estrutura orgânica e
programática, consequência do discurso fundamentalista e conservador.
A rede fascista que tem como
centro neural a Al-Qaeda - por sua vez núcleo central da Frente Islâmica
Mundial para a Guerra Santa contra os Judeus e Cruzados - aglomera grupos diversos,
anteriores uns, gerados pela rede outros. Em Caxemira e nas regiões
fronteiriças Índia/ Paquistão, Paquistão/ China, Paquistão/Afeganistão, actuam
os Combatentes Islâmicos da Liberdade, os Lutadores do Profeta e o Exército dos Puros, três organizações formadas nos novos moldes organizativos, mas
representativas de velhos interesses e aspirações (Caxemira, ou o problema das
minorias islâmicas na região). No Sudoeste Asiático, é na Indonésia que actua a
principal organização, o Jemaha Islamiah (JI), com células em todo o território
indonésio e na Austrália. Este grupo poderoso financia e coordena o Rabitatul
Mujahidin (Coligação Combatente Islâmica), que actua nas Filipinas, Malásia,
Singapura e Tailândia. Um dos seus ramos expandiu-se para o Bangladesh. A
JI foi criada nos anos 90 e tem como objectivo a formação de um grande Estado
pan-islâmico que englobe toda a região. Muitos dos seus militantes combateram
na Chechénia e a organização recebe muitos financiamentos da Arábia Saudita e
Estados do Golfo, devido ás suas fundações e associações de caridade.
No Iraque a rede Al-Tawhid (AT),
integrante da AQ, tornou-se conhecida dos serviços ocidentais devido a degolar
os reféns ocidentais. Organização criada nos meios da fragmentada resistência
armada á invasão norte-americana (maioritariamente formada por facções do BAAS
iraquiano e por grupos sunitas de extrema-direita) liderada por Abu Zarqawi -
morto em 2006, numa operação coordenada pela CIA - e que tem no Sheik Abu-Omar,
um jordano-palestiniano conhecido pelo MI5 (residiu em Londres desde 1994, até
2001) por Abu Qatada, o seu principal ideólogo. A AT e a Frente al-Nusra (FAN)
síria (integrante da AQ, responsável por massacrar aldeias e torturar mulheres
e crianças) formaram o Estado Islâmico (ISIL), nascida dos escombros gerados
pelos conflitos nestes países e em ultima análise, originados pela intervenção
ocidental nas dinâmicas internas de ambos os países. Na Palestina as células
fascistas funcionam no âmbito das mesquitas, infiltradas no Hamas (embora com
alguma descrição) ou assumindo estruturas fantasmas,
voláteis. O mesmo tipo de actuação surge no Líbano, embora aqui existam estruturas fascistoides na Falange Libanesa (formada na comunidade cristã maronita) e nas Milícias cristãs do sul do Líbano (formadas por Israel, para actuarem nas fronteiras entre os dois países). Na Jordânia os fascistas utilizam as mesquitas e a infiltração em partidos políticos conservadores.
voláteis. O mesmo tipo de actuação surge no Líbano, embora aqui existam estruturas fascistoides na Falange Libanesa (formada na comunidade cristã maronita) e nas Milícias cristãs do sul do Líbano (formadas por Israel, para actuarem nas fronteiras entre os dois países). Na Jordânia os fascistas utilizam as mesquitas e a infiltração em partidos políticos conservadores.
No Irão não existem dados sobre
actividades destes grupos, embora eles existam e actuem de forma discreta e
camuflada. Não encontram eco na oposição e não surgem, abertamente, nas
manifestações oposicionistas. Já na Turquia o panorama é outro. Muitos destes
grupos actuam na Síria, mesmo que sejam formados por militantes turcos. A Turquia
tem uma extrema-direita histórica (os Lobos Cinzentos) que participou
directamente na repressão, ao lado das ditaduras militares (embora este
convívio nem sempre fosse pacifico). A extrema-direita turca é formada por duas
tendências, uma tradicionalista, defensora dos valores do Império Otomano e a
outra que acompanhou o movimento nacionalista e modernizador de Ata Turk. Neste
sentido o fascismo islâmico actual vê nos tradicionalistas um aliado natural e
assume-se como sucessor desta tendência.
Nos Estados do Golfo os fascistas
islâmicos encontram-se numa situação aparente de clandestinidade. Aparente
porque as petro-monarquias têm de demonstrar serviço aos seus parceiros
norte-americanos, aliança necessária para a sua sobrevivência no poder. As
ligações entre sectores da aristocracia e as redes fascistas são profundas,
muitas vezes ao nível do clã. Por outro lado as relações entre os teólogos e
juristas desta região e o movimento fascista são uma consequência da
contradição entre os puristas e a governação aliada do Ocidente. O discurso
fundamentalista religioso e jurídico, a rigidez dos seus preceitos e a forma
como convivem com o Ocidente (através dos negócios) é uma situação
potencialmente explosiva.
No
Iémen vive-se uma situação social muito mais linear, menos complexa ao nível do
relacionamento com o Ocidente, mas muito mais explosiva nas ruas. Também aqui
existe uma parceria com os USA no combate ao terrorismo, mas é em Sanaa, a
capital, que existe o mais importante centro ideológico do fascismo islâmico: a
Universidade de al-Iman, fundada em 1993 pelo Sheik Abd al-Majid al-Zindani,
reitor, formado em farmacologia na década de 50 na Universidade do Cairo, onde
tornou-se conhecido pela sua actividade anti-comunista. Foi professor, nos anos
80, de Bin-Laden e combateu com este no Afeganistão. Publicou 14 livros e é uma
referência nos meios fundamentalistas e integristas. Procurado pelos USA e a
ONU colocou-o na lista dos "terroristas globais".
É, no entanto, em África que o
fascismo islâmico surge como factor político de encruzilhada, explorando as
dinâmicas internas e aproveitando a situação internacional.
III - No continente africano
existem diversos níveis organizativos. A táctica de infiltração em diversos
movimentos e associações já produziu efeitos na estrutura magrebina do
movimento, que adquiriu uma considerável estrutura autónoma (a AQM, Al-Qaeda do
Magrebe). O Grupo Salafista de Predicação e Combate (GSPC), da Argélia, que em
2007, pela voz do seu líder, o emir Abdelmalek Droukdal, proclamou a adesão do
grupo á AQM (o GSPC já pertencia á Frente Islâmica Mundial). Em Marrocos actua
o Ansar al-Mahdi, infiltrado nas forças armadas e na policia e com apoios na
classe média marroquina. A Mauritânia é palco de acções diversas da AQM e na
Tunísia a AQM utiliza os grupos e associações fundamentalistas e está
infiltrada nos partidos conservadores. Também as milícias que espancam
sindicalistas e trabalhadores nas greves e meetings, atacam manifestações
femininas e provocam distúrbios diversos. Na Líbia, que vive um processo de desintegração, os fascistas estão infiltrados nas milícias tribais,
movimentando-se cada vez com maior facilidade, utilizando o arsenal financiado
pela NATO, na guerra de agressão.
O Egipto é outro
"viveiro" que convive com o fascismo desde a I Guerra Mundial, não
somente no interior dar tendências mais direitistas da IM, como no movimento
nasserista (em consequência das linhas germanófilas desenvolvidas na luta
contra a ocupação britânica). Por outro lado a "plataforma egípcia" é
sensível aos movimentos desenvolvidos na Palestina (principalmente em Gaza),
península arábica e Turquia. Na Somália, completamente desestruturada, o
fascismo islâmico tem rédea solta, apresenta-se sob a forma de movimento de
aplicação da sharia e defronta as forças etíopes e da U. A. ou utiliza a
pirataria marítima para obter fundos (mesmo que tenha de competir com bandos
diversos e clãs poderosos, ou partilhar recursos e lucros. São quatro os grupos
mais importantes de pirataria marítima somali, com ligações á AQ e aos
tribunais islâmicos: Marines Somalis, Guarda Costeira Voluntária Nacional,
Combatentes de Merca - localidade a 70 km a sul de Mogadíscio - e os Combatentes de
Puntland). A Somália foi palco da derrota dos USA, situação humilhante para o
Ocidente que os fascistas, os integristas e senhores da guerra somalis
aproveitaram a seu favor. ONG's islâmicas promoveram a entrada no país de
operacionais vindos do Médio-Oriente tornando a milícia dos tribunais islâmicos
uma força bem equipada. No entanto é de lembrar que as milícias dos tribunais
não são uma estrutura da Al-Qaeda, mas sim uma aliada e este fenómeno é
extensivo ao Sudão, Mali, Nigéria, Republica Centro-Africana e a África
Oriental (excepto o Quénia e algumas regiões do Mali, onde a AQ age de forma
directa, não recorrendo a camuflagem, ou a outra estrutura politica. No Quénia
este fenómeno é devido a dois factores: as especificidades do islamismo no país
e ao fascismo banto que sempre esteve presente - e diluído - no movimento de
libertação nacional e na direita queniana. No Mali a questão tem raízes
históricas mais profundas - as caravanas, o Império do Mali, as rotas
comerciais intercontinentais, as rotas culturais - raízes que ao cruzarem-se
com a recente agressão á Líbia - que provocou instabilidade em toda a região -
a uma economia fragilizada, a politicas ineficazes e ao nacionalismo
irrealista, fascistoide, das elites bantos no poder desde a independência do
país, provocam desastres inevitáveis que terminam com as patrulhas da Policia Islâmica,
milícia da AQ, a vergastarem as mulheres nas ruas e a eliminarem os que resistem),
cujas milícias e organizações fascistas mantém contactos a vários níveis com a
AQ mas com uma grande autonomia de actuação e de objectivos, devido a
representarem interesses históricos, ou situações históricas adiadas pelas
respectivas independências, que acabaram por degenerar em situações de grande
conflitualidade.
Os países africanos que não
pertencem ao mundo islâmico, ou onde a penetração islâmica foi travada pelos
colonizadores (a colonização portuguesa em Angola, por exemplo, utilizou o
catolicismo como ideologia da colonização, com grande sucesso, embora fosse
contrariada pelo protestantismo, entrado no território através dos alemães e
holandeses e utilizado pelos norte-americanos nos finais da década de 50 para
penetrarem no movimento de libertação nacional, também com sucesso), são
utilizados como plataformas de financiamento e lavagem de dinheiro.
(continua)
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