Fred Di Giacomo, do Glück Project – em Revista Fórum , 27 agosto
2014
2005,
eu era um jovem universitário em Bauru.
Naquela
noite, estava voltando para o meu apartamento sozinho e parei rapidamente na
frente da casa de uma “ex” para ver se ela estava. Luzes apagadas, um carro
diferente estacionado. “Putz, me dei mal!” Desanimado, segui em frente pensando
se deveria cozinhar Miojo, cachorro-quente ou ir dormir porque tinha aula no
dia seguinte. Sorrateiramente, uma viatura de polícia apareceu atrás, ligou a
sirene e me mandou encostar na parede aos berros. Botaram uma arma na minha
cabeça, me revistaram e pediram meus documentos. Naquela hora, tenso, achei que
podia morrer. “E se essa arma dispara? O cara tá nervoso… É o policial puxar o
gatilho por engano que eu danço. Não tem uma testemunha, nada.” Tive uma sensação
que muita gente deve ter vivenciado quando é assaltado. Por sorte, nada
aconteceu. O PM ainda disse “se a gente tivesse achado alguma ferramenta,
alguma coisa, a história seria diferente”. A história seria diferente… E a
grande suspeita deles era eu ter parado cinco segundos para olhar o carro
estacionado na rua. Justo eu que nem sabia dirigir.
Já
havia sido abordado pela polícia antes, na minha cidade natal, duas vezes. Não
haviam sido tão agressivos. O problema naquela época eram as camisetas de
bandas punk, as calças rasgadas e os bairros (pobres) onde morávamos ou
circulávamos. Que bom que éramos nerds o suficiente para sermos abordados em
situações como “jogar RPG na praça” ou “jogar rosas nas casas de meninas
bonitas”. Coincidência ou não, quando eu comecei a trabalhar na editora Abril,
passei a só andar em bairros de elite/classe média e mudei meu visual –
trocando as camisetas do Ratos de Porão e Pavilhão 9 pelo blazer da Zara
– eu nunca mais fui abordado pela polícia. Mesmo que antes eu fosse tão inocente
e honesto como sempre. (Aliás, quando eu morava em Penápolis, nem beber eu
bebia.)
Mas
é esquisito e triste imaginar que eu podia não estar aqui escrevendo esse texto
hoje. Que eu podia nunca ter casado com a Karin, não ter publicado um
livro ou visto os filhos dos meus amigos nascerem.
Era
só o PM ter puxado o gatilho. Mesmo que acidentalmente.
***
Brasil, 2013 – 2014
Brasil, 2013 – 2014
1)
PMs (acusados de violência sexual) foram identificados por meio das câmeras
internas da viatura que registraram o estupro
2) Após ser baleada em ação policial, trabalhadora é arrastada por viatura da PM e morre
3) Pintor é torturado e morto pela polícia militar do Rio de Janeiro
4) Mãe de jovem trabalhador morto em SP diz que ele perguntou por que PM atirou
2) Após ser baleada em ação policial, trabalhadora é arrastada por viatura da PM e morre
3) Pintor é torturado e morto pela polícia militar do Rio de Janeiro
4) Mãe de jovem trabalhador morto em SP diz que ele perguntou por que PM atirou
Em geral, as vítimas de violência policial são muito mais pobres do que eu fui
e tem a pele mais escura do que a minha pode ser. O que no Brasil só aumenta as
estatísticas de você ser assassinado. Somos um dos 35 países com mais
assassinatos do mundo. 21 a
cada 100 mil habitantes. Morei um ano na Alemanha, onde matam 0,8 pessoas a
cada 100 mil habitantes. Mas você, meu amigo do Facebook, que assim como eu é
branco de classe média, não precisa ficar preocupado. 70% dos assassinados no
Brasil são negros. Isso mesmo. SETENTA POR CENTO. A gente reclama, pede Rota,
pede bala nos delinquentes, pede mais segurança e o que estamos conseguindo é
matar os pobres, os negros e os pardos. Isso é dado estatístico do Ipea. Não
foi inventado por nenhum comunista maluco, tá?
“Em
termos absolutos, os 50 mil casos de homicídios por ano correspondem a um nada
honroso segundo lugar mundial. Temos a terceira maior população carcerária do mundo
(e a que mais cresce), com aproximadamente 540 mil presos; e, ao mesmo
tempo, elevada impunidade (com uma média de 8% dos homicídios dolosos
investigados com êxito).”, diz a PEC que pede a desmilitarização da PM.
Precisamos
entender a violência no Brasil antes de pedirmos para a polícia matar em nosso
nome. Sim, por que a polícia age em defesa de quem? Você acha que não é
responsável pela violência policial? Que a polícia é um órgão autônomo que não
representa a mentalidade de grande parte população brasileira? O ex-delegado da
polícia civil fluminense Hélio Luz já lançou a pertinente pergunta:
“há interesse na sociedade em ter uma polícia que não seja corrupta?”
Como
o ex-delegado bem explica, uma polícia que não é corrupta não
serve para reprimir e espancar pobres. Ela deve agir dentro da lei e não fazer
diferença entre uns e outros. Isso quer dizer que para termos uma polícia
eficiente teremos que parar de subornar
guardas de trânsito,aceitar
que nossos filhos mimados sejam presos por atropelar e matar ciclistas,
fazer teste de bafômetro quando dirigirmos bêbados, etc. Existe interesse numa
polícia efetiva ou é mais cômodo que ela aja ad infinitum como
capitã-do-mato? Quando pedimos uma “polícia de primeiro mundo”, pedimos
para que ela proteja toda população ou para que proteja apenas nossos
interesses?
Aí,
você vai me dizer: “Ih, lá vem mais um petralha comunista defensor de Direitos
Humanos querer acabar com a polícia. E sem a polícia, amigo, quem vai nos
defender? O Batman?”
Bom,
primeiro que quem duvida que os comunistas gostem de forças militares e policiais pode estudar um
pouco de história. Comunismo não significa necessariamente pacifismo ou
movimentos liberais. Segundo, eu não estou aqui propondo nenhuma revolução
estrutural. Não estou pedindo agora o fim da polícia – hoje, não existe nenhuma
proposta executável no Brasil de estado sem qualquer força de segurança. Mas
sejamos razoáveis: nós precisamos, no mínimo, de uma polícia que funcione. No
mínimo de uma polícia bem treinada, bem paga e sem licença para matar, que aja
defendendo a sociedade – toda a sociedade. É provável que isso passe pela
desmilitarização. Afinal, existem até muitos PMs
que defendem a desmilitarização como forma de acabar com o violento assédio
moral que eles sofrem de oficiais; e o mais comum no mundo todo (Estados
Unidos, inclusive, que todo mundo usa como exemplo de “dureza policial”) é que
as polícias sejam civis.
No
entanto, meus amigos, existe uma mudança de mentalidade urgente que precisa
acontecer pelo bem da própria PM e sua credibilidade junto à população. (Vale
lembrar que o número
de policiais mortos no Brasil também é alto) A polícia precisa se
recordar que seu objetivo é proteger a população e cumprir a lei. Só isso.
Polícia não julga bandido, nem executa pena. Aliás, pena de morte no Brasil não
existe. A polícia não foi criada para lutar numa guerra; para isso foi
criado o exército. Com a fala, mais uma vez o ex-delegado Hélio Luz: “Essa
guerra contra o tráfico não existe, porque não há um inimigo. A polícia não tem
que matar o cara, tem que punir de forma efetiva, com uma cadeia dura.” E o
policial aposentado resume bem: “Polícia deve proteger a sociedade e não o
estado ou a elite”. Quem inventou que nós estamos numa guerra do bem contra o
mal em que o inimigo tem que ser exterminado? Bandido tem que ser preso.
A quem interessa que a
população brasileira viva com medo? A quem interessa que entreguemos o
máximo poder a um grupo, caso contrário seremos “mortos por marginais amanhã”?
E quem é “inimigo de quem” quando repetidas vezes são tornados públicos acertos
entre policiais e bandidos ou até mesmopoliciais
e ex-PMs liderando o tráfico através de milícias? O grande problema do
Brasil não é a corrupção da polícia, mas um dos problemas da polícia é a corrupção do
Brasil. Nossa polícia é um reflexo da nossa sociedade e da sociedade que
queremos.
Ciência
no combate à violência
Vale abrir um pequeno parênteses aqui para analisar um pouco os dados de violência do Brasil e as medidas que funcionaram no combate aos crimes ao redor do mundo. Nosso país tem números altíssimos de violência, mas engana-se quem pensa que nossas mortes são cometidas todas por ladrões. Grande parte dos assassinatos que ocorrem no Brasil são cometidos em brigas, em questões de honra, em conflitos familiares. Por exemplo o número de homicídios dolosos no Brasil em 2012 foi de 47.094. Alto, né? Sabe quantas dessas mortes foram cometidas em assaltos (latrocínio)? Só 1.803. Algo como 3,8%, ou seja, mesmo que todos os bandidos que roubam e depois matam fossem presos, nós ainda teríamos 96,2% dos assassinatos ocorrendo no Brasil. E sabe quanto as polícias civis e militares mataram em 2012? Usando os dados do Fórum de Segurança (onde vários estados nem notificaram esse número), nós chegamos a assustadores 1.354 pessoas. Fora 46 pessoas mortas por policiais fora de serviço. E os policiais mortos? Segundo os dados oficiais foram 75 assassinados em serviço e 235 mortos fora de serviço. Mesmo sendo um número alto e somando os dois, é bastante desproporcional ver que a polícia tenha matado 1400 pessoas, enquanto morreram 310 policiais – a grande maioria fora de serviço. (Entram aí policiais assassinados quando estavam de folga, mas também muitos que morrem em bicos de segurança, etc). Mas o que mais chama a atenção são as mortes causadas por impulso e motivos fúteis (brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito). 100% dos assassinatos do Acre* foram causados por brigas e violência domésticas, 83% dos assassinatos
Então,
por que o foco do combate à violência está tão voltado para a falida guerra às
drogas? Por que
tantos policiais perdem suas vidas subindo o morro e atirando para matar,
levando a vida de muitos inocentes nessas ações?
O
psicólogo e cientista americano Steven Pinker passou 15 anos estudando a
violência no mundo e escreveu o genial livro “Os
anjos bons da nossa natureza”. Nesse livro Pinker prova que a violência vem
caindo no mundo, apesar de estamos constantemente achando que “nunca vivemos em
meio a tanta barbárie”. Essa queda no número de assassinatos é puxada pela
Europa, EUA e parte da Ásia, mas são muito interessantes as descobertas de
Pinker. Ele também fala bastante sobre as mortes por motivos fúteis e crimes
ligados à honra e ao machismo.. Em sua pesquisa, o psicólogo levanta 5 causas
que atribui para o declínio desses assassinatos:
1)
Estado eficiente
Idealizado por Rousseau, Locke e Hobbes (de quem Pinker toma diversas ideias emprestadas, especialmente do livro “O Leviatã”), um estado eficiente é uma forma voluntária dos cidadãos viverem em sociedade, abrindo mão da vingança e do olho por olho primitivos e confiando que a punição aos criminosos ficará nas mãos da justiça do Estado. Para Pinker e Hobbes, sem poder confiar no estado, os homens vivem numa situação de guerra constante e numa sucessão de viganças violentas que nunca acaba. Por isso, quando a polícia e a justiça perdem a credibilidade com a população, se cria um estado caótico perfeito para justiceiros e linchadores. E, por isso também, os policiais devem lembrar que são representantes do Estado e tem a obrigação de agir dentro da lei, não podendo se comparar em crueldade ou número de mortos com os criminosos.
2)
Feminização
Pinker destaca a importância da maior participação das mulheres na sociedade e nos governos para a redução da violência, a criação de uma cultura de paz e também um menor culto à honra e à virilidade que são responsáveis tanto por guerras e grandes conflitos, como por mortes cotidianas em brigas entre gangues ou jovens embriagados. O empoderamento das mulheres e a liberdade para que elas possam escolher seus parceiros e decidirem se querem ou não terem filhos, também tende a diminuir o conflito entre os homens. Muitos países, como Índia e China, ainda têm uma cultura de assassinar bebês do sexo feminino, o que faz com que existam nessas locais uma massa de homens jovens e solteiros, mais propensa à violência.
3)
Comércio Gentil
Pinker defende fortemente que quando as nações passaram a fazer comércio e não mais resolver seus problemas através de guerras, conquistas e imperialismo, o mundo se tornou mais pacífico. O mesmo serve para os indivíduos. Quando o outro país ou outro ser humano pode produzir algo de meu interesse, eu penso duas vezes antes de atacá-lo e destruí-lo.
4)
Círculo Expandido (de simpatia)
Historicamente nosso primeiro círculo de simpatia e cuidado foi a família. Inicialmente, só nossas famílias importavam e o resto do mundo era composto de inimigos
5)
A escada rolante da razão
Esse fator apontado por Pinker está ligado ao Círculo Expandido. Ele destaca que sociedades que abraçaram o humanismo, o iluminismo e o raciocínio lógico tornaram-se menos violentas. A educação e a divulgação de informações é fundamental para um mundo mais pacífico e menos apegado a dogmas, misticismos e tabus que levam a comportamentos violentos, guerras religiosas e conflitos ideológicos que não fazem o menor sentido.
Em
resumo, a redução da violência não depende apenas de uma polícia que “extermine
todos os bandidos do mundo”. Esqueça os filmes do Robocop e de Charles Bronson.
A solução da violência não estará nas mãos do Capitão Nascimento ou do Chuck
Norris. Heróis do mundo real são os que constroem um país mais racional e
menos movido pelo ódio e o sentimentalismo; um país onde as pessoas se
enxerguem como seres humanos semelhantes e não como “outros” ou inimigos; um
país onde as mulheres tenham voz e onde não se mate por honra e por orgulho; e
– principalmente – um país onde as pessoas confiem nas instituições, na justiça
e em uma polícia honesta e eficiente que proteja sua população e não apenas uma
pequena parcela dela. Ou, então, continuaremos como dizia o já citado Hélio Luz
sendo um país onde “Todos são iguais perante a lei dependendo de quanto cada um
ganha”.
Na
foto: Imagem do projeto 100 vezes Cláudia produzida para o site Think Olga pelo
Pedro Magalhães
Sem comentários:
Enviar um comentário