quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O SEU MEDO MATA: COMO ACABAR COM A VIOLÊNCIA NO BRASIL



Fred Di Giacomo, do Glück Projectem Revista Fórum, 27 agosto 2014

2005, eu era um jovem universitário em Bauru.

Naquela noite, estava voltando para o meu apartamento sozinho e parei rapidamente na frente da casa de uma “ex” para ver se ela estava. Luzes apagadas, um carro diferente estacionado. “Putz, me dei mal!” Desanimado, segui em frente pensando se deveria cozinhar Miojo, cachorro-quente ou ir dormir porque tinha aula no dia seguinte. Sorrateiramente, uma viatura de polícia apareceu atrás, ligou a sirene e me mandou encostar na parede aos berros. Botaram uma arma na minha cabeça, me revistaram e pediram meus documentos. Naquela hora, tenso, achei que podia morrer. “E se essa arma dispara? O cara tá nervoso… É o policial puxar o gatilho por engano que eu danço. Não tem uma testemunha, nada.” Tive uma sensação que muita gente deve ter vivenciado quando é assaltado. Por sorte, nada aconteceu. O PM ainda disse “se a gente tivesse achado alguma ferramenta, alguma coisa, a história seria diferente”. A história seria diferente… E a grande suspeita deles era eu ter parado cinco segundos para olhar o carro estacionado na rua. Justo eu que nem sabia dirigir.

Já havia sido abordado pela polícia antes, na minha cidade natal, duas vezes. Não haviam sido tão agressivos. O problema naquela época eram as camisetas de bandas punk, as calças rasgadas e os bairros (pobres) onde morávamos ou circulávamos. Que bom que éramos nerds o suficiente para sermos abordados em situações como “jogar RPG na praça” ou “jogar rosas nas casas de meninas bonitas”. Coincidência ou não, quando eu comecei a trabalhar na editora Abril, passei a só andar em bairros de elite/classe média e mudei meu visual – trocando as camisetas do Ratos de Porão e Pavilhão 9  pelo blazer da Zara – eu nunca mais fui abordado pela polícia. Mesmo que antes eu fosse tão inocente e honesto como sempre. (Aliás, quando eu morava em Penápolis, nem beber eu bebia.)

Mas é esquisito e triste imaginar que eu podia não estar aqui escrevendo esse texto hoje. Que eu podia nunca ter casado com a Karin, não ter publicado um livro ou visto os filhos dos meus amigos nascerem.

Era só o PM ter puxado o gatilho. Mesmo que acidentalmente.

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Brasil, 2013 – 2014

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Em geral, as vítimas de violência policial são muito mais pobres do que eu fui e tem a pele mais escura do que a minha pode ser. O que no Brasil só aumenta as estatísticas de você ser assassinado. Somos um dos 35 países com mais assassinatos do mundo. 21 a cada 100 mil habitantes. Morei um ano na Alemanha, onde matam 0,8 pessoas a cada 100 mil habitantes. Mas você, meu amigo do Facebook, que assim como eu é branco de classe média, não precisa ficar preocupado. 70% dos assassinados no Brasil são negros. Isso mesmo. SETENTA POR CENTO. A gente reclama, pede Rota, pede bala nos delinquentes, pede mais segurança e o que estamos conseguindo é matar os pobres, os negros e os pardos. Isso é dado estatístico do Ipea. Não foi inventado por nenhum comunista maluco, tá?

“Em termos absolutos, os 50 mil casos de homicídios por ano correspondem a um nada honroso segundo lugar mundial. Temos a terceira maior população carcerária do mundo (e a que  mais cresce), com aproximadamente 540 mil presos; e, ao mesmo tempo, elevada impunidade (com uma  média de 8% dos homicídios dolosos investigados com êxito).”, diz a PEC que pede a desmilitarização da PM.

Precisamos entender a violência no Brasil antes de pedirmos para a polícia matar em nosso nome. Sim, por que a polícia age em defesa de quem? Você acha que não é responsável pela violência policial? Que a polícia é um órgão autônomo que não representa a mentalidade de grande parte população brasileira? O ex-delegado da polícia civil  fluminense Hélio Luz já lançou a  pertinente pergunta: “há interesse na sociedade em ter uma polícia que não seja corrupta?”

Como o ex-delegado bem explica, uma polícia que não é corrupta não serve para reprimir e espancar pobres. Ela deve agir dentro da lei e não fazer diferença entre uns e outros. Isso quer dizer que para termos uma polícia eficiente teremos que parar de subornar guardas de trânsito,aceitar que nossos filhos mimados sejam presos por atropelar e matar ciclistas, fazer teste de bafômetro quando dirigirmos bêbados, etc. Existe interesse numa polícia efetiva ou é mais cômodo que ela aja ad infinitum como capitã-do-mato? Quando pedimos uma “polícia de primeiro mundo”, pedimos para que ela proteja toda população ou para que proteja apenas nossos interesses?

Aí, você vai me dizer: “Ih, lá vem mais um petralha comunista defensor de Direitos Humanos querer acabar com a polícia. E sem a polícia, amigo, quem vai nos defender? O Batman?”

Bom, primeiro que quem duvida que os comunistas gostem de forças militares e policiais pode estudar um pouco de história. Comunismo não significa necessariamente pacifismo ou movimentos liberais. Segundo, eu não estou aqui propondo nenhuma revolução estrutural. Não estou pedindo agora o fim da polícia – hoje, não existe nenhuma proposta executável no Brasil de estado sem qualquer força de segurança. Mas sejamos razoáveis: nós precisamos, no mínimo, de uma polícia que funcione. No mínimo de uma polícia bem treinada, bem paga e sem licença para matar, que aja  defendendo a sociedade – toda a sociedade. É provável que isso passe pela desmilitarização. Afinal, existem até muitos PMs que defendem a desmilitarização como forma de acabar com o violento assédio moral que eles sofrem de oficiais; e o mais comum no mundo todo (Estados Unidos, inclusive, que todo mundo usa como exemplo de “dureza policial”) é que as polícias sejam civis.

No entanto, meus amigos, existe uma mudança de mentalidade urgente que precisa acontecer pelo bem da própria PM e sua credibilidade junto à população. (Vale lembrar que o número de policiais mortos no Brasil também é alto) A polícia precisa se recordar que seu objetivo é proteger a população e cumprir a lei. Só isso. Polícia não julga bandido, nem executa pena. Aliás, pena de morte no Brasil não existe.  A polícia não foi criada para lutar numa guerra; para isso foi criado o exército.  Com a fala, mais uma vez o ex-delegado Hélio Luz: “Essa guerra contra o tráfico não existe, porque não há um inimigo. A polícia não tem que matar o cara, tem que punir de forma efetiva, com uma cadeia dura.” E o policial aposentado resume bem: “Polícia deve proteger a sociedade e não o estado ou a elite”. Quem inventou que nós estamos numa guerra do bem contra o mal em que o inimigo tem que ser exterminado? Bandido tem que ser preso.  A quem interessa que a população brasileira viva com medo? A quem interessa que entreguemos o máximo poder a um grupo, caso contrário seremos “mortos por marginais amanhã”? E quem é “inimigo de quem” quando repetidas vezes são tornados públicos acertos entre policiais e bandidos ou até mesmopoliciais e ex-PMs liderando o tráfico através de milícias? O grande problema do Brasil não é a corrupção da polícia, mas um dos problemas da polícia é a corrupção do Brasil. Nossa polícia é um reflexo da nossa sociedade e da sociedade que queremos.

Ciência no combate à violência

Vale abrir um pequeno parênteses aqui para analisar um pouco os dados de violência do Brasil e as medidas que funcionaram no combate aos crimes ao redor do mundo. Nosso país tem números altíssimos de violência, mas engana-se quem pensa que nossas mortes são cometidas todas por ladrões. Grande parte dos assassinatos que ocorrem no Brasil são cometidos em brigas, em questões de honra, em conflitos familiares. Por exemplo o número de homicídios dolosos no Brasil em 2012 foi de 47.094. Alto, né? Sabe quantas dessas mortes foram cometidas em assaltos (latrocínio)? Só 1.803. Algo como 3,8%, ou seja, mesmo que todos os bandidos que roubam e depois matam fossem presos, nós ainda teríamos 96,2% dos assassinatos ocorrendo no Brasil. E sabe quanto as polícias civis e militares mataram em 2012? Usando os dados do Fórum de Segurança (onde vários estados nem notificaram esse número), nós chegamos a assustadores 1.354 pessoas. Fora 46 pessoas mortas por policiais fora de serviço. E os policiais mortos? Segundo os dados oficiais foram 75 assassinados em serviço e 235 mortos fora de serviço. Mesmo sendo um número alto e somando os dois, é bastante desproporcional ver que a polícia tenha matado 1400 pessoas, enquanto morreram 310 policiais – a grande maioria fora de serviço. (Entram aí policiais assassinados quando estavam de folga, mas também muitos que morrem em bicos de segurança, etc). Mas o que mais chama a atenção são as mortes causadas por impulso e motivos fúteis (brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos no trânsito). 100% dos assassinatos do Acre* foram causados por brigas e violência domésticas,  83% dos assassinatos em São Paulo82% dos de Santa Catarina. Os estados com menores índices foram Rio Grande do Sul: 43% e Rio de Janeiro: 
27%. Agora você entendeu por que as feministas vivem dizendo que o machismo mata? Por que nós repetimos aqui que existe uma cultura da violência no Brasil? Mata-se por ciúme, mata-se por batidas no trânsito, mata-se por briga de marido e mulher, por traições, etc.

Então, por que o foco do combate à violência está tão voltado para a falida guerra às drogas? Por que tantos policiais perdem suas vidas subindo o morro e atirando para matar, levando a vida de muitos inocentes nessas ações?

O psicólogo e cientista americano Steven Pinker passou 15 anos estudando a violência no mundo e escreveu o genial livro “Os anjos bons da nossa natureza”. Nesse livro Pinker prova que a violência vem caindo no mundo, apesar de estamos constantemente achando que “nunca vivemos em meio a tanta barbárie”. Essa queda no número de assassinatos é puxada pela Europa, EUA e parte da Ásia, mas são muito interessantes as descobertas de Pinker. Ele também fala bastante sobre as mortes por motivos fúteis e crimes ligados à honra e ao machismo.. Em sua pesquisa, o psicólogo levanta 5 causas que atribui para o declínio desses assassinatos:

1) Estado eficiente

Idealizado por Rousseau, Locke e Hobbes (de quem Pinker toma diversas ideias emprestadas, especialmente do livro “O Leviatã”), um estado eficiente é uma forma voluntária dos cidadãos viverem em sociedade, abrindo mão da vingança e do olho por olho primitivos e confiando que a punição aos criminosos ficará nas mãos da justiça do Estado. Para Pinker e Hobbes, sem poder confiar no estado, os homens vivem numa situação de guerra constante e numa sucessão de viganças violentas que nunca acaba. Por isso, quando a polícia e a justiça perdem a credibilidade com a população, se cria um estado caótico perfeito para justiceiros e linchadores. E, por isso também, os policiais devem lembrar que são representantes do Estado e tem a obrigação de agir dentro da lei, não podendo se comparar em crueldade ou número de mortos com os criminosos.

2) Feminização

Pinker destaca a importância da maior participação das mulheres na sociedade e nos governos para a redução da violência, a criação de uma cultura de paz e também um menor culto à honra e à virilidade que são responsáveis tanto por guerras e grandes conflitos, como por mortes cotidianas em brigas entre gangues ou jovens embriagados. O empoderamento das mulheres e a liberdade para que elas possam escolher seus parceiros e decidirem se querem ou não terem filhos, também tende a diminuir o conflito entre os homens. Muitos países, como Índia e China, ainda têm uma cultura de assassinar bebês do sexo feminino, o que faz com que existam nessas locais uma massa de homens jovens e solteiros, mais propensa à violência.

3) Comércio Gentil

Pinker defende fortemente que quando as nações passaram a fazer comércio e não mais resolver seus problemas através de guerras, conquistas e imperialismo, o mundo se tornou mais pacífico. O mesmo serve para os indivíduos. Quando o outro país ou outro ser humano pode produzir algo de meu interesse, eu penso duas vezes antes de atacá-lo e destruí-lo.

4) Círculo Expandido (de simpatia)

Historicamente nosso primeiro círculo de simpatia e cuidado foi a família. Inicialmente, só nossas famílias importavam e o resto do mundo era composto de inimigos em potencial. Depois essa empatia se expandiu para a tribo, para o grupo religioso, a nação… A criação da imprensa fez com que ideias fossem compartilhados ao redor do mundo através de livros e jornais. Quando um homem branco lê um livro sobre a tragédia de uma mulher africana, ele passa a entender o que se passa na cabeça da mulher, passa a se colocar em seu lugar e passa a reconhecê-la como um ser humano. Alfabetização, televisão e internet aceleraram esse processo rumo à uma “aldeia global” onde a compaixão faz com que enxerguemos  toda a humanidade como uma família.

5) A escada rolante da razão

Esse fator apontado por Pinker está ligado ao Círculo Expandido. Ele destaca que sociedades que abraçaram o humanismo, o iluminismo e o raciocínio lógico tornaram-se menos violentas. A educação e a divulgação de informações é fundamental para um mundo mais pacífico e menos apegado a dogmas, misticismos e tabus que levam a comportamentos violentos, guerras religiosas e conflitos ideológicos que não fazem o menor sentido.

Em resumo, a redução da violência não depende apenas de uma polícia que “extermine todos os bandidos do mundo”. Esqueça os filmes do Robocop e de Charles Bronson. A solução da violência não estará nas mãos do Capitão Nascimento ou do Chuck Norris. Heróis do mundo real são os que constroem um país mais racional e menos movido pelo ódio e o sentimentalismo; um país onde as pessoas se enxerguem como seres humanos semelhantes e não como “outros” ou inimigos; um país onde as mulheres tenham voz e onde não se mate por honra e por orgulho; e – principalmente – um país onde as pessoas confiem nas instituições, na justiça e em uma polícia honesta e eficiente que proteja sua população e não apenas uma pequena parcela dela. Ou, então, continuaremos como dizia o já citado Hélio Luz sendo um país onde “Todos são iguais perante a lei dependendo de quanto cada um ganha”.


Na foto: Imagem do projeto 100 vezes Cláudia produzida para o site Think Olga pelo Pedro Magalhães

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