sexta-feira, 5 de setembro de 2014

SUFRÁGIO UNIVERSAL EM HONG KONG: O COLAPSO DAS EXPECTATIVAS




anúncio pela China do novo modelo de eleição do Chefe de Executivo para Hong Kong, em 2017, lançou ondas de choque na ex-colónia britânica traduzindo-se na frustração das expectativas dos que esperavam uma efectiva abertura do sistema de representação no sentido de uma eleição livre, democrática e competitiva do Chefe de Executivo da Região Administrativa de Hong Kong e depois do LEGCO.

Durante meses o debate político centrou-se na definição dos critérios de apuramento dos candidatos que a China se recusou a explicitar e na possibilidade das forças democráticas apresentarem o seu próprio candidato, a escrutínio. A luta política tomou um fácies radical com o movimento Occupy Central a perturbar, durante algum tempo, a circulação de pessoas na zona central da ilha e a abrir os noticiários das televisões. O que foi acompanhado de tomadas de posição de confronto directo com o governo chinês por parte da ala esquerdista e ‘filibuster’ do movimento democrático .

No essencial, a resolução da Comissão Permanente da Assembleia Popular Nacional (CP-APN) determina a realização de eleições para o Chefe do Executivo, em 2017, através do voto directo dos cidadãos quanto aos candidatos que tenham sido previamente seleccionados por um Comité Eleitoral ‘amplamente representativo’. Comité formado a partir dos 1200 membros do actual Comité Eleitoral conforme o que resulta do artigo 45.o da Lei Básica e do seu anexo I. De acordo com a regra de escrutínio ora estabelecida na resolução, os candidatos com o máximo de 3 terão de recolher mais de 50% dos apoios do Comité Eleitoral para poderem ser submetidos à votação dos 7.2 milhões de cidadãos de Hong Kong e à aprovação do Governo Central.

No entendimento das forças democráticas e dos observadores internacionais, a solução arquitectada destina-se a afunilar as escolhas para Chefe do Executivo restringindo as alternativas aos lealistas pró-Pequim e preterindo qualquer hipótese de candidatura da área democrática. Li Fei (
李飛) , o enigmático presidente do Comité da Lei Básica do Governo Central (e vice-secretário-geral da CP-APN) na conferência de imprensa que deu em Pequim (e repetiu em Hong Kong no final do mês de Agosto) foi muito claro ao afirmar que o critério de que os candidatos ‘amem o país e amem Hong Kong protegerá a estabilidade de Hong Kong agora e no futuro’. Trata-se de um critério ideológico de conformidade política com o regime comunista que vigora no continente que terá encontrado inspiração no modelo de eleição de dirigentes dos países da Europa de Leste, antes de 1989.

A resolução de Pequim apenas surpreenderá os mais desatentos. O homem do Governo Popular Central esteve em Hong Kong, em 22 de Novembro de 2013, onde teve consultas, à porta fechada, com membros do LEGCO pró-Pequim e com representantes de Hong Kong na Comissão Política e Consultiva do Povo Chinês, o órgão ‘rubber-stamp’ que legitima as decisões tomadas pela Assembleia Popular Nacional. A imprensa pró-comunista de Hong Kong não deixou passar a ocasião para classificar o encontro como ‘um significativo avanço’ que permitira ‘escrever na parede’ (China Daily, Wen Wei Po, Ta Kung Pao).

Não passou despercebido que o Sr. Li Fei, ex-membro da Liga Comunista da Juventude a que é associado, também, o Primeiro-Ministro Le kejiang, tenha tirado partido da visibilidade da sua visita para acusar os legisladores democratas de ‘enganarem a sociedade’ e de ‘fomentarem a confusão’ ao exigirem que as eleições sigam o modelo internacional o que nas suas palavras ‘iria criar uma sociedade caótica’. Na retórica leninista do homem da APN ‘muitas pessoas de Hong Kong têm perdido muito tempo a discutir coisas que não são apropriadas e a não discutir o que é apropriado”(sic) .


A solução avançada por Pequim não caiu do céu e há muito era defendida por Jasper Tsang Yok-sing (已登入), o fundador do partido Aliança Democrática para o Aperfeiçoamento e Progresso de Hong Kong (DAB em inglês), político sempre associado à organização ‘clandestina’ do Partido Comunista Chinês em Hong Kong e actual presidente da mesa do LEGCO. Esta era, aliás, uma das três propostas que haviam sido avançadas pelos partidos pró-Pequim (e pelo Partido Liberal). Propostas que nunca mereceram particular resposta dos pan-democratas que preferiam o estardalhaço das acções de rua, dos ‘happenning’ e do apoio ao movimento radical do Occupy Central . O relatório de C Y Leung (梁振英) sobre a reforma do processo eleitoral daria cobertura à posição dos sectores tradicionais e empresariais assustados com a desestabilização de Hong Kong, cerceando, definitivamente, uma possível abertura a eleições directas e universais com base em candidaturas abertas e competitivas. Nesse relatório, C Y Leung afiançou de que ‘não há necessidade de alterar o método para selecção do CE em 2017 de forma a garantir o sufrágio universal’ . Em abono da posição oficial de Pequim C Y Leung veio declarar que o sufrágio universal ‘é um passo decisivo no desenvolvimento de Hong Kong’.

A questão agora é o que fazer quanto à resolução do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional que será transformada em proposta (bill) da Administração de C Y Leung ao LEGCO. Sendo evidente que o sector pró-Pequim se alinhará na defesa da proposta de Pequim constitui uma desonestidade intelectual dizer-se que o sistema fica mais democrático agora que o Chefe do Executivo irá ser eleito pelo voto directo dos cidadãos. O líder da Coreia do Norte é eleito por voto directo dos cidadãos e não é por isso que se trata de uma eleição democrática. Os presidentes da República do Estado Novo, em Portugal, foram sempre eleitos por voto directo dos cidadãos e só por ridículo se pode afirmar que essas eleições foram sempre democráticas.

A natureza democrática de um processo eleitoral não é determinada pela amplitude dos eleitores mas pela abertura do sistema e a competitividade dos programas e das candidaturas postas a sufrágio.

O sistema agora protagonizado é bem pior do que existe neste momento. Nas últimas eleições para Chefe do Executivo da RAEHK, o apoio da Comissão Eleitoral necessário à apresentação de uma candidatura era de 12.5% dos 1200 membros e por essa via apareceu a candidatura de Albert Ho (
何俊仁), o então presidente do Partido Democrata. Com a exigência de um rácio de 50% de votos do Comité Eleitoral para a viabilização de uma candidatura essa possibilidade não pode ser repetida e, portanto, o sistema é um retrocesso. Ainda que fosse possível e o candidato da oposição fosse eleito Pequim recusar-se-ia a investi-lo nas funções por o considerar ‘anti-patriota’.

Também é de todo improvável que o Comité Eleitoral para 2017 seja constituído de forma diferente do actual onde têm peso decisivo os representantes do primeiro e segundo sectores, isto é, os ‘tycoon’, os grandes empresários e industriais, os banqueiros. Gente que não quer perder, de forma alguma, o poder de determinar a evolução política e económica de Hong Kong e de ver satisfeitos pelo governo os seus projectos de negócio, bem como o acesso privilegiado aos contratos públicos.

Como dizia o director da Faculdade de Direito da Universidade de Tsinghua, no Clube de Jornalistas de Hong Kong, Wang Zhenming (
王振民), o sufrágio directo e universal significaria a redistribuição dos interesses económicos pela sociedade o que implicaria que ‘as fatias do bolo teriam de ser partilhados com outros”. O que desagradaria à casta que acede aos negócios, situação que terá encontrado particular audição em Pequim.

Do ponto de vista dos democratas dois caminhos e cinco acções são extrapoláveis. De um lado, a agudização das acções de rua, a repetição do estardalhaço do Occupy Central, o corte cerce com Pequim. Do outro a centralização da estratégia política no governo de C Y Leung. O primeiro caminho parece prejudicado porque a sua eficácia foi nula e se traduziu na hostilização da classe média que olha toda esta agitação como perturbadora. O segundo mais longo e fiável centra o combate político dentro do sistema e de acordo com as suas regras.

Desde logo o chumbo da proposta de C Y Leung, no LEGCO, por força da maioria qualificada de dois terços exigível e o presumível bloco de 27 legisladores democratas que se irá agrupar para que ela não passe. Também manter a luta pela democracia visível na imprensa internacional, alimentando a simpatia que ela desperta junto da opinião pública. Por outro explorar as fissuras que com o tempo acontecerão no grupo pró-Pequim que integra desde militantes comunistas, à alta burguesia da indústria e da finança passando pelos pequeno e médio empresariado do partido liberal. Finalmente a integração e federalização do movimento democrático num partido unificado mas que conserve a pluralidade de opiniões através da formação de alas como acontece nos partidos social-democratas na Europa.

Há 60 anos apenas um terço dos países eram democracias. Neste momento, de acordo com os dados da Freedom House apenas 25% dos 195 países do planeta são ditaduras ou sistemas autoritários. O movimento para a democracia tem sido, nestas seis décadas, notável sob qualquer ponto de vista. Hong Kong não está arredado deste movimento e o tempo joga a seu favor. O que se exige é paciência, resistência e determinação.

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