Psicanalista
belga relaciona competição selvagem, que marca capitalismo pós-moderno, com
comportamentos antiéticos dos “vencedores” e frustração da imensa maioria.
“Sejamos desgarrados”, ele sugere
George
Manbiot – Outras Palavras - Tradução Eduardo Sukys - Imagem: John Bellany
Estar
em paz com um mundo atormentado: não é uma meta sensata. Ela pode ser
conquistada apenas negando tudo aquilo que cerca você. Estar em paz com você
mesmo dentro de um mundo atormentado: essa é, ao contrário, uma aspiração
nobre. Este texto é para as pessoas que estão em conflito com a vida. Ele
faz um apelo para você não se envergonhar disso.
Senti
o ímpeto de escrevê-la ao ler um livro notável de Paul
Verhaeghe, um professor belga de psicanálise. What
About Me? The Struggle for Identity in a Market-Based Society [E
quanto a mim? A luta por identidade em uma sociedade baseada no mercado,sem
tradução em português] é uma dessas obras que, ao fazer conexões entre
fenômenos aparentemente distintos, fomenta novos insights sobre o que
está acontecendo conosco e porquê.
Somos
animais sociais, argumenta Verhaeghe, e nossas identidades são formadas pelas
normas e valores que absorvemos de outras pessoas. Toda sociedade define e
molda sua própria normalidade e sua própria anormalidade, de acordo com
narrativas dominantes, e busca fazer com que as pessoas obedeçam — caso
contrário as exclui.
Hoje,
a narrativa dominante é do fundamentalismo de mercado, amplamente conhecido na
como neoliberalismo. O conto é que o mercado pode resolver quase todos os
problemas sociais, econômicos e políticos. Quanto menos o Estado nos controlar
e taxar, melhor será nossa condição. Os serviços públicos devem ser
privatizados, os gastos públicos devem ser reduzidos e os negócios devem ser
liberados do controle social. Em países como o Reino Unido e os EUA, essa
história molda as normas e valores há cerca de 35 anos: desde que Thatcher e
Reagan chegaram ao poder. E rapidamente está colonizando o restante do planeta.
Verhaeghe
indica que o neoliberalismo se apoia na ideia grega de que nossa ética é inata
(e regida por um estado de natureza que chama de mercado) e na ideia cristã de
que a humanidade é inerentemente egoísta e gananciosa. Em vez de tentar
suprimir essas características, o neoliberalismo as exalta: essa doutrina
afirma que a competição irrestrita, guiada pelo interesse próprio, conduz à
inovação e ao crescimento econômico, melhorando o bem estar de todos.
Toda
essa história gira em torno da noção de mérito. A competição irrestrita
recompensaria as pessoas talentosas, que trabalham duro e inovam. Ela rompe com
as hierarquias e cria um mundo de oportunidades e mobilidade.
Mas
a realidade é bem diferente. Mesmo no início do processo, quando os mercados
foram desregulamentados pela primeira vez, não começamos com oportunidades
iguais. Algumas pessoas já estavam bem à frente antes de ser dada a largada.
Foi assim que as oligarquias russas conseguiram acumular tanta riqueza quando a
União Soviética chegou ao fim. Eles não eram, em sua maioria, os mais
talentosos, trabalhadores ou inovadores, mas sim os menos escrupulosos, os mais
grosseiros e com os melhores contatos, frequentemente na polícia secreta — a
KGB.
Mesmo
quando os resultados resultam de talento e trabalho duro, a lógica não se
mantém por muito tempo. Assim que a primeira geração de empresários
liberados conquista seu dinheiro, a meritocracia inicial é substituída por uma
nova elite, que isola seus filhos da competição por meio da herança e da melhor
educação que o dinheiro pode comprar. Nos locais onde o fundamentalismo de
mercado foi aplicado com mais vigor, em países como os EUA e o Reino Unido, a mobilidade social diminui bastante.
Se
o neoliberalismo não fosse uma trapaça egoísta, e se seus gurus e thinktanks não
fossem financiados desde o início por algumas das pessoas
mais ricas do mundo (os multimilionários americanos Coors, Olin, Scaife e
Pew, entre outros), seus apóstolos teriam exigido, como precondição para uma
sociedade baseada no mérito, que ninguém deveria começar a vida com uma
vantagem injusta — seja riqueza herdada ou educação determinada economicamente.
Porém, eles nunca acreditaram em sua própria doutrina. O empreendimento, como
resultado, rapidamente deu lugar à renda.
Tudo
isso é ignorado, e o sucesso ou a falha da economia de mercado são atribuídos
unicamente aos esforços do indivíduo. Segundo esta crença, os ricos são os
novos justos; os pobres são os novos desviados, que fracassaram econômica e
moralmente e hoje são classificados como parasitas sociais.
O
mercado deveria nos libertar, oferecendo autonomia e liberdade. Em vez disso,
entregou atomização e solidão.
O
local de trabalho foi envolvido por uma estrutura louca, kafkiana, de
monitoramento, medição, vigilância e auditorias, orientada centralmente,
planejada de forma rígida e cujo objetivo é recompensar os vencedores e punir
os perdedores. Ela destrói a autonomia, o empreendimento, a inovação e a
lealdade e gera frustração, inveja e medo. Por meio de um paradoxo incrível,
ela nos levou até o renascimento de uma antiga tradição soviética conhecida na
Rússia como tufta. Ela significa falsificação de estatísticas com o
objetivo de atender aos ditames do poder irresponsável.
As
mesmas forças afetam aqueles que não conseguem encontrar trabalho. Agora, eles
precisam disputar, além de sofrer as outras humilhações do desemprego, com um
nível totalmente novo de vigilância e monitoramento. Tudo isso, de acordo com
Verhaeghe, é fundamental para o modelo neoliberal, que sempre insiste na
comparação, avaliação e quantificação. Somos tecnicamente livres, mas
incapacitados. Quer seja no trabalho ou fora dele, devemos viver com base nas
mesmas regras ou perecer. Todos os principais partidos políticos as promovem —
então não temos poder político também. Em nome da autonomia e da liberdade,
acabamos controlados por uma burocracia esmagadora e anônima.
Verhaeghe
escreve que essas mudanças vieram acompanhadas de um aumento espetacular em
certas condições psiquiátricas: automutilação, distúrbios de alimentação,
depressão e distúrbios de personalidade.
Dentre
os distúrbios de personalidade, os mais comuns são ansiedade por desempenho e
fobia social: ambos refletem um medo da outra pessoa, que é percebida tanto
como avaliadora quanto como competidora, as únicas funções que o
fundamentalismo de mercado admite para a sociedade. Somos
atormentados pela depressão e pela solidão.
Os
ditames infantilizadores do local de trabalho destroem nosso respeito próprio.
Aqueles que terminam no fim da fila são acometidos por culpa e vergonha. A
falácia da autoatribuição tem dois lados: assim como nos regozijamos por nosso
sucesso, nos culpamos por nosso fracasso, mesmo se não tivermos qualquer
responsabilidade por isso.
Portanto,
se você não se encaixa ou se sente um estranho no mundo, se sua identidade está
perturbada ou rompida, se você se sente perdido e envergonhado, talvez seja
porque você manteve os valores humanos que deveria ter descartado. Você é um
desgarrado. Orgulhe-se.
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Como se desperta o pior que
há em nós - Sociedades meritocráticas de mercado corroem autoestima. Estimulam, como
defesa, superficialidade, oportunismo e mesquinhez. Tornam-nos “livres” porém
impotentes. Saberemos reagir?
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