sexta-feira, 28 de novembro de 2014

PORTUGAL, BRASIL: RACISTAS SÃO OS OUTROS



Fernando Conceição - Público

Quanto tempo perdurará a mentalidade racista das instituições de mando, das quais, no conjunto, o negro é mantido afastado, sofrendo vexações e toda ordem de violências?

Racismo é praga difícil de combater. Particularmente em sociedades construídas sobre sua negação. Que condenam as que reconhecem a existência do problema, a partir dos conflitos que ali comumente emergem. Isto é: racistas são os outros. Temática de seminário que ocorre neste 27/11 na FCSH da Universidade Livre de Lisboa, às 18h.

A escola, livros didáticos e meios de comunicação inculcam-nos um ideário. O Brasil é herdeiro dessa visão luso-tropicalista, tão cultuada por Salazar. Seu mais importante ideólogo, Gilberto Freyre (1900-1987). Autor de O Mundo Que o Português Criou. E de Casa Grande & Senzala, obra fundamental no modo de se conceber a sociedade brasileira. Nela, mal-intencionados encontram justificativa para o mito da “democracia racial”.

O português seria melhor no trato dos serviçais escravos, que outros escravocratas. Uma qualidade inata. Será? A hipocrisia se converteu em norma relacional. Mercê da violência a exterminar toda uma geração de jovens negros nas periferias.

Questionar o mito é difícil. Onde o racista não se admite como, combate-se o quê? Fantasmas. Resultado: inação dos discriminados e inferiorizados. É assim no Brasil. E em Portugal?

Desde os anos 1980, por iniciativa de setores sociais do ativismo político denominado Movimento Negro – em essência heterogêneo e multifacetado –, no Brasil se erigiu novembro como o “Mês da Consciência Negra”. Iniciou-se a desconstrução do mito.

Documentos e relatos históricos estabelecem que a 20 de novembro de 1695 teria sido morta a personagem que desde 1995 está incorporada ao panteão oficial dos heróis nacionais da República. Seu nome: Zumbi. Zumbi dos Palmares.

Palmares é o mais importante de centenas de quilombos, territórios livres de refúgio de escravos no período do colonialismo escravocrata nas Américas. Para lá, por um século, acorreram indígenas e párias sociais diversos. Muitos brancos.

Travou guerra permanente com as tropas armadas coloniais, constituindo-se em evidente ameaça à ordem. Situado no nordeste, em área localizada hoje no Estado de Alagoas, existiu do final do século XVI – sob o comando de líderes bantus – até seu último líder, Zumbi, ter sucumbido.

O Brasil foi que mais recebeu mão de obra escravizada no mundo moderno. Para aí foram destinados mais de 95% do total de africanos traficados sob o comando de Portugal, prepostos e aliados, de 1701 a 1830 (Caldeira, 2013, p.244).

O volume varia segundo a fonte. De 3 milhões e 600 mil a até 6 milhões de “peças”, carga transportada como coisa. Em torno de 2 milhões teriam morrido nos porões dos tumbeiros na travessia.

Ainda que formalmente autônomo, desde o início do século XVII Portugal dependeu da proteção do aliado britânico. Contra pretensões da Espanha, por exemplo. Tal dependência, econômica e política, se acentuou no passar dos anos. Seu ápice se deu na invasão napoleônica à península ibérica. Como se sabe, os ingleses patrocinaram a transferência da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1807.

Por treze anos, sob o comando do príncipe-regente D. João VI, como reino unido de Portugal e Algarves, o Brasil incorporou em suas instituições políticas e sociais toda a mentalidade escravagista. E todo o parasitismo cortesão.

A permanência e longevidade de tal mentalidade, e do próprio trabalho escravo, trouxeram consequências à unidade do império português. Seu domínio tropical foi interrompido – embora sem traumáticas rupturas –, como uma guerra de secessão.

Em 1822, articulada por poderosos senhores escravagistas, brasileiros e portugueses, a independência é ato contra os acordos de submissão da metrópole às exigências de Londres.

É que ali o trabalho e o negro submetido ao regimen escravista são sinônimo. O Brasil era o negro, de importância maior que o indígena e o português (Freyre, CG&S, p. 284). Não seria possível conceber o projeto colonial português apenas com o escasso de gente, característico da demografia lusitana. E sem a submissão da escravatura.

Tarda o país, pois, a declarar o tráfico ilegal (1850). Mais ainda a extinguir o trabalho escravo (1888). A abolição é feita indenizando-se os senhores. Busca-se eliminar física e simbolicamente a presença, agora incômoda, de africanos e seus descendentes.

Hoje, 51% dos brasileiros são não-brancos. Mas quanto tempo perdurará a mentalidade racista das instituições de mando, das quais, no conjunto, o negro é mantido afastado, sofrendo vexações e toda ordem de violências? É discussão em aberto no Brasil. E em Portugal, como andam as coisas?

*Jornalista, estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e professor na Universidade Federal da Bahia (Brasil); fernconc@ufba.br

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