Fernando
Conceição - Público
Quanto
tempo perdurará a mentalidade racista das instituições de mando, das quais, no
conjunto, o negro é mantido afastado, sofrendo vexações e toda ordem de
violências?
Racismo
é praga difícil de combater. Particularmente em sociedades construídas sobre
sua negação. Que condenam as que reconhecem a existência do problema, a partir
dos conflitos que ali comumente emergem. Isto é: racistas são os outros.
Temática de seminário que ocorre neste 27/11 na FCSH da Universidade Livre de
Lisboa, às 18h.
A
escola, livros didáticos e meios de comunicação inculcam-nos um ideário. O
Brasil é herdeiro dessa visão luso-tropicalista, tão cultuada por Salazar. Seu
mais importante ideólogo, Gilberto Freyre (1900-1987). Autor de O Mundo
Que o Português Criou. E de Casa Grande & Senzala, obra fundamental no
modo de se conceber a sociedade brasileira. Nela, mal-intencionados encontram
justificativa para o mito da “democracia racial”.
O
português seria melhor no trato dos serviçais escravos, que outros
escravocratas. Uma qualidade inata. Será? A hipocrisia se converteu em norma
relacional. Mercê da violência a exterminar toda uma geração de jovens negros
nas periferias.
Questionar
o mito é difícil. Onde o racista não se admite como, combate-se o quê?
Fantasmas. Resultado: inação dos discriminados e inferiorizados. É assim no
Brasil. E em Portugal?
Desde
os anos 1980, por iniciativa de setores sociais do ativismo político denominado
Movimento Negro – em essência heterogêneo e multifacetado –, no Brasil se
erigiu novembro como o “Mês da Consciência Negra”. Iniciou-se a desconstrução
do mito.
Documentos
e relatos históricos estabelecem que a 20 de novembro de 1695 teria sido morta
a personagem que desde 1995 está incorporada ao panteão oficial dos heróis
nacionais da República. Seu nome: Zumbi. Zumbi dos Palmares.
Palmares
é o mais importante de centenas de quilombos, territórios livres de refúgio de
escravos no período do colonialismo escravocrata nas Américas. Para lá, por um
século, acorreram indígenas e párias sociais diversos. Muitos brancos.
Travou
guerra permanente com as tropas armadas coloniais, constituindo-se em evidente
ameaça à ordem. Situado no nordeste, em área localizada hoje no Estado de
Alagoas, existiu do final do século XVI – sob o comando de líderes bantus – até
seu último líder, Zumbi, ter sucumbido.
O
Brasil foi que mais recebeu mão de obra escravizada no mundo moderno. Para aí
foram destinados mais de 95% do total de africanos traficados sob o comando de
Portugal, prepostos e aliados, de 1701 a 1830 (Caldeira, 2013, p.244).
O
volume varia segundo a fonte. De 3 milhões e 600 mil a até 6 milhões de
“peças”, carga transportada como coisa. Em torno de 2 milhões teriam morrido
nos porões dos tumbeiros na travessia.
Ainda
que formalmente autônomo, desde o início do século XVII Portugal dependeu da
proteção do aliado britânico. Contra pretensões da Espanha, por
exemplo. Tal dependência, econômica e política, se acentuou no passar dos
anos. Seu ápice se deu na invasão napoleônica à península ibérica. Como se
sabe, os ingleses patrocinaram a transferência da corte de Lisboa para o Rio de
Janeiro em 1807.
Por
treze anos, sob o comando do príncipe-regente D. João VI, como reino unido de
Portugal e Algarves, o Brasil incorporou em suas instituições políticas e
sociais toda a mentalidade escravagista. E todo o parasitismo cortesão.
A
permanência e longevidade de tal mentalidade, e do próprio trabalho escravo,
trouxeram consequências à unidade do império português. Seu domínio tropical
foi interrompido – embora sem traumáticas rupturas –, como uma guerra de
secessão.
Em
1822, articulada por poderosos senhores escravagistas, brasileiros e
portugueses, a independência é ato contra os acordos de submissão da metrópole
às exigências de Londres.
É
que ali o trabalho e o negro submetido ao regimen escravista são sinônimo. O
Brasil era o negro, de importância maior que o indígena e o português (Freyre,
CG&S, p. 284). Não seria possível conceber o projeto colonial português
apenas com o escasso de gente, característico da demografia lusitana. E sem a submissão
da escravatura.
Tarda
o país, pois, a declarar o tráfico ilegal (1850). Mais ainda a extinguir o
trabalho escravo (1888). A abolição é feita indenizando-se os senhores.
Busca-se eliminar física e simbolicamente a presença, agora incômoda, de africanos
e seus descendentes.
Hoje,
51% dos brasileiros são não-brancos. Mas quanto tempo perdurará a mentalidade
racista das instituições de mando, das quais, no conjunto, o negro é mantido
afastado, sofrendo vexações e toda ordem de violências? É discussão em aberto
no Brasil. E em Portugal, como andam as coisas?
*Jornalista,
estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
professor na Universidade Federal da Bahia (Brasil); fernconc@ufba.br
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