quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

OS CÃES LADRAM E OS GREGOS VOTAM



Nuno Ramos de Almeida – jornal i, opinião

Governantes alemães e comentadores amestrados portugueses abanam a cauda e pedem, babando-se estes últimos, que a Europa castigue os gregos pela sua liberdade

O secretário de Estado Henry Kissinger, o poderoso chefe da diplomacia norte-americana nos anos de fogo da revolução portuguesa, que esteve na administração de Nixon e Gerald Ford, ficou famoso pela sua teoria da vacina. Se Portugal caísse nas mãos dos comunistas - uma espécie de Cuba no velho continente -, isso serviria de exemplo, evitando que outros países do Sul da Europa seguissem o mesmo caminho. Segundo documentos revelados recentemente, numa reunião na Casa Branca em Abril de 75 com o presidente Ford e o conselheiro nacional de segurança Brent Scowcroft, o homem que vaticinava que Mário Soares se tornaria o Kerenski português [primeiro-ministro russo derrubado por Lenine] até arriscou uma previsão: "Em 1980 podemos ter comunistas a governar Portugal, a Grécia e talvez Itália."

A 27 de Março, quando Ford e Kissinger receberam o ex-chanceler alemão Willy Brandt, na altura presidente da Internacional Socialista, o secretário de Estado norte-americano declarou: "Os europeus estabeleceram dois objectivos [quanto a Portugal]: a realização de eleições e evitar a tomada do poder pelos comunistas. Acho que podemos conseguir esses dois objectivos e mesmo assim "perder" o país, porque os comunistas "governam" através do MFA. O que vamos fazer se este tipo de governo quiser manter o país na NATO? Quais os efeitos disso em Itália? E em França? Provavelmente temos que atacar Portugal, qualquer que seja o resultado, e expulsá-lo da NATO."

Normalmente, segundo uma conhecida frase de Marx comentando Hegel, a história repete-se, primeiro como tragédia e depois como comédia. A ideia de um conjunto de governantes alemães e comentadores portugueses de que vai ser possível usar a Grécia como vacina contra a mudança de atitude dos povos do Sul da Europa é uma ideia peregrina mas pouco inteligente.

É verdade que a Grécia deve dinheiro à troika, mas esse laço económico serve para o país devedor como para os países credores. Pensar que é possível castigar Atenas sem que isso se repercuta na economia da União Europeia é ignorar completamente a dinâmica da economia. No início da crise grega também se dizia que este país pesava menos de 1% na economia europeia, e não foi por isso que a inacção da UE e da Alemanha não levou ao contágio a grande parte dos países europeus.

Como diz o Nobel Joseph Stiglitz, as reivindicações dos gregos, agora governados pelo Syriza, são muito mais sensatas do ponto de vista económico que as medidas da troika, que apenas conduziram à destruição da economia e da sociedade grega e ao aumento do seu endividamento.

Se Bruxelas e Berlim se recusarem a negociar a dívida com a Grécia, apenas estarão a cavar a sepultura desta União Europeia, tão expedita a salvar bancos de amigos poderosos e tão alérgica de ajudar os povos do velho continente.

O governo de Berlim não está sozinho no mundo; de há uns anos para cá verifica-se o recrudescimento das tensões na Europa. E não será de admirar que a Rússia ou outras potências possam vir em ajuda de um país da NATO desavindo com os donos da União Europeia. As recentes quedas do preço do petróleo enfraquecem a economia russa, mas são preços de pouca dura. As reservas de combustíveis fósseis não vão aumentar, e a Rússia é poderosa do ponto de vista das suas reservas de gás natural e petróleo.

A incapacidade das medidas da troika de resolverem os verdadeiros problemas da Europa, como o desemprego e o crescimento das desigualdades, está para durar. E a vitória do Syriza é a primeira derrota significativa dos blocos de interesses ligados ao grande capital financeiro que governaram o continente. É de esperar que mais partidos ditos extremistas ganhem as eleições nos próximos anos. Espanha, França e até o Reino Unido são os próximos problemas com que a governação alemã da UE se vai debater.

Antes da integração europeia, estas tensões foram historicamente dirimidas em guerras mundiais. A vaga islamofóbica é uma tendência nesse sentido. Mas uma coisa é certa: mais que a teoria da vacina, a vitória do Syriza pode provar a teoria do dominó. A viragem começou.

Editor-executivo - Escreve à quarta-feira

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