O
ex-combatente Carlos Reis ensinou na Escola-Piloto do PAIGC. E estava em
Conacri aquando da invasão portuguesa, em 1970, e da morte de Cabral, dois
momentos marcantes na vida do antigo ministro da Educação.
Carlos
Reis juntou-se à luta de libertação nacional quando era ainda estudante. O
antigo combatente e histórico do Partido Africano para a Independência da Guiné
e Cabo Verde (PAICG) foi o primeiro quadro do partido a trocar Conacri por São
Vicente, onde chegou no início de maio de 1974.
Tinha
apenas 28 anos quando assumiu a pasta da Educação entre 1975 e 1981, nos
primeiros anos da independência de Cabo Verde.
O
histórico do PAIGC participou também na criação do Partido Africano da
Independência de Cabo Verde (PAICV), em 1980. Atualmente é investigador e um
dos administradores da Fundação Amílcar Cabral, na Cidade da Praia.
Nesta
entrevista à DW África, Carlos Reis relembra os dias em que dava aulas na
Escola-Piloto do PAIGC, a invasão portuguesa de Conacri, em 1970, e a morte de
Amílcar Cabral, entre outros momentos que mais o marcaram durante a luta de
libertação.
DW
África: Quando estava em Portugal enviava muito material informativo para Cabo
Verde. Como é que conseguia ludibriar a Polícia Internacional e de Defesa do
Estado (PIDE)?
Carlos
Reis (CR): A maior parte das vezes trazia eu próprio o material - por
vezes, até de boleia de avião militar! Enfim, eram situações que se viviam
porque havia motivação, havia juventude e acreditava-se numa causa. Acreditava-se
na necessidade de levar as informações contidas nesses documentos a um número
alargado de jovens, sobretudo a jovens que se encontravam aqui nas ilhas,
tentando demonstrar que a luta era possível e que era possível a independência
nacional.
DW
África: A mobilização de novos militantes era difícil, sobretudo numa altura em
que se temia o comunismo?
CR: Foi
sempre difícil porque se temia o comunismo, mas sobretudo porque se temia a
PIDE! De cada vez que julgávamos ter um determinado grau de eficácia
organizacional havia uma redada de prisões e, na verdade, ia abaixo a
organização.
DW
África: Além de Lisboa também passou por Argel. E, em 1970, surge a
oportunidade de descer até à Guiné-Conacri e integrar a luta armada. Esse era o
maior desejo de um combatente da liberdade naquela altura?
CR: Foi-se
encontrando o caminho, caminhando. Havia, de facto, uma vontade muito grande da
minha parte. Eu queria mesmo entregar-me a esta causa, fazer aquilo que
estivesse ao meu alcance e aprender a fazer coisas que não sabia para ser útil
a uma causa que eu acreditava que era necessária.
DW
África: Foi professor na Escola-Piloto do PAIGC, em Conacri. Que
ensinamentos e valores procurava transmitir aos seus alunos?
CR: O
próprio trabalho político ensinou-me que o cerne principal da luta está
efetivamente na superação constante, no estudo constante, naquilo a que, ao fim
e ao cabo, se chama a educação. Por coincidência, comecei por ser professor
mesmo antes de ir, porque exerci um ano aqui como professor.
Os
jovens nessa época eram obrigados a fazer o serviço militar. Eles eram
obrigados por lei a fazer a guerra colonial e, portanto, era preciso uma
atitude política clara de rejeição dessa guerra. Era preciso fazer um trabalho
político junto dos jovens que corriam esse risco.
Os
representantes do regime colonial tentavam passar a mensagem que Portugal não
tinha colónias, tinha era províncias ultramarinas. Tentavam esconder realidades
como, por exemplo, a Lei do Indigenato, que permitia que os chefes de posto e
os administradores recorressem ao trabalho forçado.
DW
África: Acreditava então que a "arma da teoria" era tão importante
quanto a luta armada?
CR: Absolutamente.
Ou até mais importante, porque a luta armada, em princípio, é cronologicamente
limitada. Felizmente que era vista apenas como recurso de última instância,
como algo que apenas serviu para responder à violência do inimigo.
Os
aviões bombardeavam as populações e deixavam tabancas, crianças e culturas
agrícolas destruídas. Eles envenenavam os territórios com desfolhantes tóxicos.
Há fotografias que documentam pessoas, incluindo crianças e mulheres, que
ficaram com marcas de queimaduras. Portanto, era preciso mostrar que este era
um povo que estava de pé na sua própria terra, disposto a dar resposta a
provocações e a atos criminosos desse género.
Tentou-se
demonstrar que os africanos nacionalistas é que eram os terroristas. Mas, numa
das suas últimas intervenções, Amílcar Cabral refere-se ao ataque que as forças
militares colonialistas fizeram à delegação das Nações Unidas que em 1972
visitou as regiões libertadas da Guiné-Bissau. E Cabral falou do terrorismo
praticado sobre essa delegação.
DW
África: Também vários grupos de jovens europeus, incluindo alguns alemães,
chegaram a visitar as zonas libertadas. Como é que foram as reações perante
esta sociedade "sui generis" que tinha sido aí criada?
CR: Era
de facto uma inovação na época. Um grupo de homens, a quem as autoridades
coloniais insistiam em apelidar de terroristas, aparecer tão preocupado com
causas como a educação e a saúde. As zonas libertadas, do ponto de vista
conceptual, são uma espécie de contribuição teórica de alguém que pensou o
movimento de libertação nacional e que tentou demonstrar e ensinar que não se
bate pela independência apenas para se ter ministros, uma bandeira ou um hino
nacional. Como o próprio Cabral dizia, as independências só têm razão de ser se
servirem para a melhoria das condições de vida das pessoas.
DW
África: As Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), o braço armado do
PAIGC, passaram por fases de esmorecimento moral. Aliás, quando António de
Spínola chegou à Guiné vivia-se esta fase de desgaste militar e psicológico,
que duraria até ao assassinato de Amílcar Cabral, em janeiro de 1973. Como é
que viveu este período?
CR: Efetivamente.
Não é por acaso que os principais aliados que as autoridades coloniais
encontraram na época foram agentes da polícia francesa. Os franceses tentaram
vários projetos de derrube e creio mesmo de assassinato de Sékou Touré [então
Presidente da Guiné], cuja radicalização era, para eles, um desafio. Creio que
isso também está relacionado com a aproximação dos franceses às autoridades
portuguesas e à PIDE, na procura de elementos e na criação de condições para
organizar o desembarque de Conacri [operação "Mar Verde"].
Os
agentes da PIDE e da segurança militar portuguesa foram apoiados largamente por
agentes da polícia francesa. Aliás, um dos projetos de assassinato de Cabral
também envolveu um agente francês. E, naturalmente, o desembarque de Conacri só
foi possível porque os que desembarcaram foram convencidos de que havia
elementos que os apoiavam.
Foi
essencialmente graças à reação das tropas do PAIGC que foi possível responder,
em parte, contrariando os objetivos da tropa de desembarque, que consegue
libertar alguns presos, mas não sem deixar de atacar o secretariado do partido.
DW
África: Estava presente no porto de Conacri quando se deu a invasão portuguesa?
CR: Sim,
já estava no porto de Conacri. Era um jovem recém-chegado, não era um recruta,
mas quase. Era um subordinado. Mas já lá estava, assim como estava aquando do
assassinato de Amílcar Cabral.
DW
África: A invasão portuguesa de Conacri e a morte de Amílcar Cabral foram dois
dos momentos que mais o marcaram durante a luta de libertação?
CR: Sim, de maneiras diferentes. O meu primeiro encontro com Amílcar Cabral marcou-me imenso. É algo que ainda hoje me suscita algum encantamento. Naturalmente a invasão de Conacri mobilizou-me, obrigou-me a amadurecer muito mais como combatente porque ajudou a demonstrar a natureza do inimigo. Mas sobretudo o assassinato de Cabral foi algo que buliu profundamente com qualquer um de nós, qualquer um que se tivesse entregue com sinceridade à causa da luta.
CR: Sim, de maneiras diferentes. O meu primeiro encontro com Amílcar Cabral marcou-me imenso. É algo que ainda hoje me suscita algum encantamento. Naturalmente a invasão de Conacri mobilizou-me, obrigou-me a amadurecer muito mais como combatente porque ajudou a demonstrar a natureza do inimigo. Mas sobretudo o assassinato de Cabral foi algo que buliu profundamente com qualquer um de nós, qualquer um que se tivesse entregue com sinceridade à causa da luta.
DW
África: Estava em Libreville (Gabão) quando recebeu a notícia do 25 de Abril de
1974 em Portugal. Foi
uma surpresa ou o PAIGC já contava que acontecesse alguma coisa, até porque
tinha reforçado os ataques contra os quartéis portugueses?
CR: O
PAIGC não desistiu de ir fazendo campanhas de mobilização junto das comunidades
onde havia cabo-verdianos. E eu tinha ido [de Conacri] com uma mensagem de
Aristides Pereira – já secretário-geral-adjunto ainda não eleito do PAIGC –
junto do Presidente [Agostinho] Neto solicitando apoio para me deslocar nos
locais onde houvesse concentrações de cabo-verdianos.
Vinha
já de Ponta Negra, tinha estado com Lúcio Lara e com elementos militares,
guerrilheiros do MPLA, na base de Dolizi, junto da fronteira com Cabinda.
Quando regressava de Ponta Negra, ele recebeu a notícia do 16 de Março e que um
destacamento militar nas Caldas da Rainha, comandado por Almeida Bruno,
interpreta mal um sinal que ele julgou que tinha sido dado para o 25 de Abril e
desata a marchar. E ouvi isso de Lúcio Lara vindo de Ponta Negra para
Brazzaville.
Mas
os que sabiam que o 25 de Abril podia não ser aquilo que se dizia tinham de
continuar a luta. Porque uma coisa eram os objetivos da democracia em Portugal,
outra coisa, embora tivesse de haver necessariamente alguma articulação, era o
processo da independência - no caso concreto, de Cabo Verde, mas também em
relação às outras colónias.
DW
África: E depois de Libreville volta a Conacri?
CR: Volto
a Conacri e encontro o Aristides Pereira, já com notícias do 25 de Abril.
Entretanto já se tinham passado duas semanas. Encontrei-me com um grupo de
camaradas na Holanda, onde já tínhamos também uma base de apoio importante. E
decidimos que devíamos começar já a apalpar o terreno e que não devíamos
esperar mais tempo. Lembro-me ainda do dia em que passei a fronteira em Lisboa. Na verdade,
havia muita desorientação. E vim para Cabo Verde numa quarta-feira, num voo da
TAP, na semana que se seguiu ao 19 de maio.
DW
África: O que é que sentiu quando pisou Cabo Verde depois de tantos anos de
luta e de vida na clandestinidade?
CR: Estava
emocionado. Mas tinha a certeza de que era só uma questão de tempo até sermos
independentes e que íamos conseguir que a maioria das pessoas abraçasse a causa
da independência.
DW
África: Quase quatro décadas depois da independência de Cabo Verde, a luta
valeu a pena?
CR: Acho
que os cabo-verdianos, de uma maneira geral, consideram que sim, que valeu a
pena. E hoje a independência é um património, é um bem, é um valor que
naturalmente é de todos nós.
Madalena
Sampaio - Deutsche Welle
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