quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO EM ANGOLA



Prefácio

Declaração Universal dos Direitos do Homem

Artigo 26

1. Toda a pessoa tem direito á educação. A educação deverá ser gratuita, ao menos no que pertence á instituição elementar e fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar patente a todos com plena igualdade, em função das aptidões individuais.

2. A educação deve atender ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos étnicos ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

3. Os pais têm direito de preferência na escolha do género de educação a dar aos seus filhos.

Rui Peralta, Luanda

I - A educação, o ensino, a formação, a instrução, não são luxos de privilegiados, mas sim necessidades de todos os homens e mulheres, crianças, adultos e idosos. Condenar alguém á ignorância é roubar uma parte maior do seu direito á vida. O direito á liberdade e á dignidade se saber, escolher e criar é uma das condições de uma vida condigna, completada pelo direito á saúde, ao pão, ao trabalho e á habitação.

Um homem ou uma mulher que não tenha acesso á Educação, é um ser alienado, brutalizado, explorado, violado, iludido por aqueles a quem fornece o seu trabalho e pelo governo ao qual fornece o seu voto, enganado pela máquina propagandística e que acaba por servir de carne para canhão, seja nos campos se batalha da guerra ou nos coliseus da vida.

A educação é, assim, uma arma que auxilia o Homem a escolher, criar e gerir a sua própria vida, ao invés de a suportar como um fardo agonizante. É um instrumento de transformação, uma ferramenta de esperança.

II - A Educação é, assim, uma determinação da vida e não pode existir separada dela. Existem, no universo das panaceias pedagógicas, duas plataformas complementares que reúnem as respectivas panaceias: uma que defende extensão e ampliação e a outra que reduz a educação a função. Ambas as plataformas são nefastas e contra elas oponho a concentração à extensão e ampliação e o fortalecimento e soberania da Educação contra a tese redutora da função.

A educação não é uma questão burocrática, como a medíocre ortodoxia dominante pretende fazer crer á massa de eventuais utilizadores do sistema. Não é uma questão, apenas, de quadros, horários, regulamentos, normas, despachos e decretos, nem, tampouco, deveriam os educadores lidar com essas questões e os educandos serem por elas constrangidos.

Há um dogma da economia politica que é o da "criação de homens comuns" (à imagem de quem?), voltados para a busca de felicidade (identificada com dinheiro e futilidade), para as demandas do mercado, que transforma as instituições de ensino em viveiros e aviários produtores de pseudo-inteligencia (um subproduto barato das linhas de montagem educativas) ao serviço da propriedade e do lucro. Ora a expansão da Educação, consequência da democratização do ensino, revindicação das massas urbanas, é habilmente manipulada, através do aparelho de Estado, das parcerias e do sector privado, de forma a produzir a "barbárie especializada", contrariando os objectivos da democratização: Cultura elevada, Cultura Democrática, Humanista, cívica e formadora do Homem Pluridimensional, pleno. Ao contrário, gera-se um homúnculo acrítico, amputado e alienado, um subproduto de múltiplas funções, completamente descartável e reciclável.

Os que reduzem a Educação a uma função obedecem á logica da actual divisão de trabalho. E essa é uma logica que ganha corpo no actual "desordenamento" capitalista. A Educação especializada que afasta a visão do conjunto impondo a figura do especialista como um "xamã" infalível, que não conhece o espirito com que comunica mas apenas um elemento desse espirito. Por isso o especialista afasta-se da Humanidade e torna-se o veículo para a barbárie. Não por ser especialista ou de comportar conhecimento especializado, mas por ignorar o objecto sobre o qual aplica a especialização.

A Educação exige antes de mais uma visão de conjunto. Essa visão de conjunto tem uma fonte: a Filosofia. Ora esta é matéria morta nos actuais programas dos sistemas de Educação. Não cabe na plataforma extensiva e não tem qualquer utilidade para a plataforma funcional. E aqui estamos perante a pobreza de espirito da pedagogia dominante, seja estruturalista ou funcionalista. As técnicas de formação actuais espelham essa " miséria da pedagogia".

Vejamos o ensino médio. Este deveria ser o centro motriz do processo pedagógico (o ensino pré-primário deveria ser um factor de socialização e o ensino primário um factor de descoberta). E porquê? Porque é uma ponte, primeiro, e porque, segundo, no ensino médio o estudante encontra-se num caminho que vai desembocar numa encruzilhada: ensino técnico-profissional ou Universidade. Existe ainda uma terceira razão: o estudante, no ensino médio, é já um Homem em cultivo. Por isso o ensino médio assume uma importância estratégica, onde algumas disciplinas assumem papéis determinantes, como por exemplo (no caso de Angola), a língua oficial, a língua nacional e a língua estrangeira. Estas devem ser uma preocupação primeira dos processos didáticos-pedagógicos, não podendo ser ensinadas de forma leviana e grosseira.

Uma Educação que promova o raciocínio crítico e a Individualidade, a criatividade e a visão holística, é fundamental para que o especialista compreenda o todo em que está envolvido. Do neurocirurgião ao canalizador esta é uma peça fundamental da Educação.

É, pois, importante que os parâmetros e as diretrizes educacionais não tenham origem em estruturas burocráticas (ministérios, secretarias e direcções) nem sejam matéria de discussão de burocratas, mas sim dos agentes activos do universo educacional: professores, alunos, encarregados de educação, formadores, funcionários escolares, directores de estabelecimentos, conselhos pedagógicos, reitores, etc. Educação viva implica escolas vivas, livres e autónomas, que recusem submissão ao Estado e ao mercado, de ruptura com o imediatismo, a mediocridade, a miopia estruturalista e a acefalia funcionalista.

Mas em Angola esta questão faz sentido? Ou melhor, reformulando a pergunta, atingiu a Educação em Angola um patamar quantitativo e qualitativo onde seja possível discutir a Educação? Não...muito longe disso! Existiram transformações quantitativas, mas não qualitativas, no ensino primário, no secundário, no técnico-profissional e no superior. As plataformas continuam as mesmas: a extensão e a funcionalidade. E isto nada tem a ver com a necessidade de quadros. O que interessa formar quadros que não estão aptos para pensar, para ultrapassar obstáculos profissionais (e as armadilhas do mercado, ou as agruras da vida) porque não estão apetrechados de raciocínio crítico, nem de conhecimento geral, de refinamento cultural ou de educação cívica? E o panorama das Artes, Letras e Filosofia, no meio da panaceia utilitarista? É, no seu melhor, agonizante.

No entanto a este nível não pode haver, ainda, aprofundadas discussões porque urge resolver questões mais básicas e prementes como a vigarice, a burla, o roubo e a delapidação do erário publico.

III - Os negócios criados em torno da Educação, em Angola, são de índole diversa. Uns representam soluções e outros, caminhos a explorar. Existem também (e em grande numero) os negócios que geram factores negativos, contrario â praxis educativa democrática, baseados em critérios de distinção social geradores de apartheid social e de alienação cultural (as escolas para ricos, para estrangeiros, para filhos do corpo diplomático, etc., que afastam as crianças estrangeiras e os filhos das elites da cultura nacional, do conhecimento histórico e geográfico do país e das realidades sociais angolanas.

Mas há outro tipo de problemas a que urge responder de forma firme e eficaz. São os relacionados com os livros escolares. E não estou a referir-me ao conteúdo pedagógico dos mesmos (miserável e abjecto, são os termos mais leves que podem caracterizar os livros escolares para o ensino primário e secundário em Angola), mas a algo muito mais elementar: o exercício do direito de adquirir os livros gratuitos e a dificuldade de encontrar os restantes, ou pelo menos de pagar o preço indicado dos livros não gratuitos.

Este é um drama que alunos e encarregados de educação sentem todos os anos. É uma trama que obedece á sazonalidade da abertura do novo ano lectivo e que tornou-se "norma", ou seja, é "normal" que os cidadãos não possam exercer os seus direitos e que sejam roubados todos os anos. E é "normal" que exista uma casta que possa usufruir, de forma impune, os "kumbus" que mete ao bolso, produto da vigarice, da burla e do furto. Assim como é "normal" que este cenário seja, afinal, o "pais real" (conceito que substituiu a fascizante concepção savimbista da "Angola Profunda"). A gravidade maior desta "negociata" efectuada pelo clãs mancomunados ao neocolonialismo é o facto de estar socialmente enraizada, pelo que tornou-se "normal".

O combate pela Educação é um combate pela democracia. É um pilar do Estado Democrático de Direito e um dos valores dos heróis do 4 de Fevereiro que quebraram as algemas para vencer o colonialismo e criar uma Angola renovada. A Educação é o resgate do Futuro e não se pode pôr em causa o futuro da nação e ficar de braços cruzados a ver alguém espoliar os nossos filhos. Urge, então, erradicar estes bandos sem escrúpulos que não hesitam em bloquear aos nossos filhos o direito que é a Educação.

Erradicar estes bandos neocolonialistas, eliminar esta escória de lacraus, é um combate a travar, sem tréguas, de Cabinda ao Cunene, porque somos um só Povo e uma só Nação, forjada na continuidade da Luta e na certeza da Vitória!

Estamos juntos!

Posfácio

Constituição da Republica de Angola

Titulo I - Princípios Fundamentais

Artigo 21.° (Tarefas fundamentais do Estado)

(...)
g) promover políticas que assegurem o acesso universal ao ensino obrigatório gratuito, nos termos definidos por lei.

(...)
i) efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes, no capital humano, com destaque para o desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, bem como na educação, (...)

Titulo II - Direitos e Deveres Fundamentais

Capitulo III - Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais

(...)
Artigo 79.° (Direito ao ensino, cultura e desporto)

1. O Estado promove o acesso de todos à alfabetização, ao ensino, á cultura e ao desporto, estimulando a participação dos diversos agentes particulares na sua efectivação, nos termos da lei.
(...)


OBS. Sempre que a Constituição remete para lei específica, esta tem de obedecer aos parâmetros constitucionais conforme Titulo I - Princípios Fundamentais, Artigo 6.° (Supremacia da Constituição e legalidade) 3. "As leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição."

Bibliografia
Declaração Universal dos Direitos do Homem, Assembleia Geral da ONU, resolução 217 A (III), 10 de Dezembro de 1948.
Constituição da Republica de Angola, Imprensa Nacional - EP, Luanda, 2010.
Nietzsche, F. Escritos sobre Educação Ed. Loyola. S.Paulo,2003

Sem comentários:

Mais lidas da semana